Gladstone Chaves de Melo
Filólogo ou Lingüista?
Márcia Sipavicius Seide (UNIOESTE e USP)
Introdução
A maior parte de sua produção bibliográfica data de entre o fim da década de 40 e começo da década de 80. Percebe-se, entretanto, que foi entre a década de 50 e meados da década de 60 que Melo elaborou a parte mais significativa de sua produção intelectual. Em A Pesquisa Lingüística no Brasil (1968 - 1988), publicada em 1998, Cristina Altman informa que, segundo Coseriu, a lingüística latino-americana caracterizou-se, até meados da década de 60, pela adesão a correntes teóricas européias em detrimento da Lingüística Norte-Americana (doravante LNA).
Na obra de Altman, esta preferência é explicada pelos seguintes fatores: formação em universidades européias de muitos lingüistas latino-americanos; presença de professores visitantes europeus em universidades da América Latina; incompatibilidade programática com a LNA: a adoção do antimentalismo norte-americano acarretaria o abandono das áreas mais produtivas da lingüistica latino-americana como a Lexicologia, a Filologia e a Estilística; hostilidade da LNA com relação à tradição européia a qual, se não era totalmente ignorada, era combatida.
Com relação a Gladstone Chaves de Melo, informa Altman, ele foi considerado por Coseriu como um dos que constituíram a segunda geração brasileira de lingüistas, ao lado de Mattoso Câmara Jr., Celso Cunha, Ismael de Lima Coutinho e Antonio Houaiss, entre outros.
Altman adverte, contudo, que seus contemporâneos o viam não como lingüista, mas como filólogo. Este julgamento ocorria porque, segundo autora, “A rigor, nos anos sessenta, no Brasil, sob a designação de lingüistas, se colocavam apenas os chamados estruturalistas” (ALTMAN, 1998: 121).
Neste artigo, retomamos esta polêmica com o intuito de explicitar o que a tornou possível, abstração feita à disputa acadêmica que, à época, a Lingüística, devido à necessidade de se firmar como disciplina autônoma, travava com a Filologia.
Com este intuito, buscamos, na edição de 1981 da Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa, indícios cuja interpretação, dependente do referencial teórico adotado, é responsável pela divergência avaliativa apontada por Altman.
Essa obra, convém esclarecer, foi escolhida em detrimento de outras por ter sido ao mesmo tempo a de revisão mais recente e a que teve mais sucesso editorial e, provavelmente, mais divulgação em nível nacional. A obra está organizada em três partes: Parte Geral, Perspectiva Histórica e Diretrizes. Ao longo do texto, são feitas referências pontuais a essas partes denominadas simplesmente como primeira, segunda e terceira partes.
O ponto de vista estruturalista - radical
Haja vista a avaliação de Coseriu, é de se estranhar que seus contemporâneos descrevessem Melo como sendo um filólogo. Tínhamos comentado que, para Altman, isto se explicaria pela maneira como a Lingüística era entendida: era lingüista quem fosse estruturalista. O fato de seus colegas não o virem como tal pode indicar qual era concepção que se tinha sobre o que era ser estruturalista. A seguinte citação da obra de Altmann é reveladora a este respeito:
A separação entre os dois programas de investigação começava aos poucos a se fazer mais clara para a comunidade acadêmica da época: de um lado, colocavam-se, sob a designação de Filologia, os trabalhos de edição crítica de textos literários e os de dialetologia; de outro, sob a designação de Lingüística, os trabalhos de descrição sincrônica de outras modalidades de língua que não a literária. (ALTMAN, 1998: 122)
Percebe-se, neste trecho, que a dicotomia sincronia- diacronia não era vista como sendo constituída por termos complementares, mas sim como termos opostos : a sincronia era reduto da Lingüística e a diacronia da Filologia, logo, quem se dedicasse à diacronia não era estruturalista, portanto, não era lingüista.
A dialetologia preocupava-se com os fatores de mutabilidade do signo e era considerada uma parte de Filologia. Inferindo-se desta afirmação que cabia à Lingüistica tratar da imutabilidade, percebe-se que a questão da mutabilidade e da imutabilidade do signo também foi polarizada, isto é, a dicotomia complementar tornou-se uma dicotomia antagônica.
Ainda a respeito desse trecho, percebe-se que outra dicotomia polar fora criada entre literário e não literário, cabendo o último à Lingüística e o primeiro à Filologia.
Utilizando o mesmo raciocínio para as demais dicotomias saussurianas, entende-se que, para ser considerado um estruturalista, o pesquisador deveria dedicar-se à língua e não à fala, à mutabilidade do signo e não a sua imutabilidade, à sincronia e não à diacronia.
Convém destacar que Melo não concebia a Lingüística nestes termos radicais e estritos. Para ele, ao contrário, o campo a que esta ciência devia dedicar-se era mais amplo e abarcava a totalidade das dicotomias saussurianas. É o que o seguinte trecho e respectiva nota de rodapé revelam:
O pai da Lingüística Moderna, Ferdinand de Saussure, no livro- chave da nossa ciência. que é o seu Cours de Linguistique Générale (aliás, compilado e redigido por discípulos do sábio), (..)especifica as tarefas da Lingüística: (7)
(7) Da “Lingüística da Língua”, bem entendido, a qual se deve distinguir da “Lingüística da Palavra”, ou Estilística, de que não trata Saussure. Veja-se a propósito o rico capítulo de SÍLVIO ELIA “A natureza do fato lingüístico”, em O Problema da Língua Brasileira, (...) e o capítulo “A lingüística geral” de Orientações da Lingüística Moderna. (MELO, 1981: 9)
Infelizmente, esta interpretação mais equilibrada e justa das propostas de Saussure não foi a que prevaleceu. Até hoje, parte considerável dos lingüistas associa ao Estruturalismo a versão radical divulgada pelos contemporâneos de Melo.
Algumas considerações tecidas por Camacho numa coletânea organizada por Mussalin e Bentes, publicada em 2001, demonstram a atualidade desta versão radical.
Num capítulo dessa coletânea, Camacho explica que certa interpretação da dicotomia língua - fala teve, por conseqüência, a exclusão dos fatores de mutabilidade do signo como objeto da Lingüística:
O desenvolvimento na teoria lingüística de um sentimento de aversão ao caos, à variação, cuja conseqüência foi gerar uma concepção monolítica de linguagem, baseia-se na suposição metodológica de que a estrutura lingüística é necessariamente homogênea. Esse postulado, que emergiu originalmente do recorte metodológico sobre o fenômeno lingüístico que Saussure (1916-1977) criou ao cunhar a famosa dicotomia língua-fala, radica no fato de que a língua, o sistema gramatical, é extraída da turbulência vertiginosa em que emerge a fala com os usos sociais da linguagem. (CAMACHO, 2001: 62)
Depreende-se do texto que o modo como a dicotomia foi entendida criou uma oposição entre a Sociolingüística e o Estruturalismo, oposição que ignora o fato de o estudo da mutabilidade do signo ter sido parte dos postulados saussurianos.
Camacho informa também que os paradigmas da Lingüistica de até meados do século XX estavam orientados “para a criação de um objeto de estudos estável e uniforme, desligado da realidade social” (CAMACHO, 2001:65); tal orientação refletiria uma concepção de língua como “isolada, fechada e monológica, desvinculada de seu contexto lingüístico real” (CAMACHO, 2000:65).
Considerando a definição de Estruturalismo conforme esta concepção radical, a avaliação de Melo como lingüista ou filólogo deve ser feita seguindo-se parâmetros rígidos. De acordo com este ponto de vista, para ser considerado estruturalista, o estudioso deve considerar a língua como sendo algo isolado da fala, abstrair de suas análises os fenômenos social e historicamente determinados, se negar a admitir a variabilidade lingüística, desconsiderar a existência de relações entre língua e sociedade, limitar-se ao estudo sincrônico da língua. Se não preenchesse todos estes requisitos, não seria considerado um estruturalista, portanto, não seria avaliado como lingüista, mas sim como filólogo.
Melo não considerava a língua como sendo algo isolado da fala e tão pouco fazia abstração dos fenômenos sociais e históricos em sua análise lingüística. No trecho abaixo, extraído do capítulo II da 2ª parte da obra, percebe-se que o autor faz referência aos usos concretos da língua e à variação que lhe é decorrente:
O latim ponto de partida dos idiomas românicos é o latim vulgar ou, por melhor nome, latim coloquial, isto é, a língua viva do povo romano e dos povos romanizados, língua instrumento de comunicação diária, com finalidades práticas e imediatas. É bem de ver que tal latim não se mostrava absolutamente uniforme por toda a parte e em todas as camadas sociais, do mesmo modo que a linguagem coloquial do Rio de Janeiro não é inteiramente igual à do Ceará ou à de Minas; do mesmo modo que, dentro da cidade do Rio de Janeiro, um malandro não usa a linguagem de um professor universitário ou de um balconista que atende a senhoras. (MELO, 1981:65)
Este outro trecho, extraído da terceira parte da obra, demonstra que Melo também considerava os aspectos social e histórico em suas análises lingüísticas:
Grande importância se tem atribuído, e não sem razão, ao estado político e social da comunidade, como elemento de atuação na relativa fixidez ou na fluidez do material sonoro das línguas. (MELO, 1981:193)
A mera leitura do índice evidencia, por sua vez, que Melo não se limitava à lingüística sincrônica já que seu interesse também se voltava à diacronia. Logo após a Parte Geral, há uma parte intitulada Perspectiva Histórica com os seguintes capítulos: 1- As línguas indo-européias; 2- A formação das línguas românicas; 3- História da Língua Portuguesa; 4- Geografia das línguas românicas da Europa; 4- A língua portuguesa no Brasil e 5 - A língua-padrão do Brasil.
Pelo índice também é possível perceber que a mutabilidade do signo também era estudada por Melo, é o que indica o título do terceiro capítulo da terceira parte: “Causas e efeitos da evolução fonética: fixidez e mobilidade fonética.”
Por fim, entre as referências bibliográficas citadas e utilizadas por Melo, há menção a autores hoje conhecidos por utilizarem um viés sociolingüístico em suas análises. É o caso de Vendryes, Sapir e Meillet, citados na mesma coletânea em que o texto de Camacho foi publicado, num capítulo imediatamente anterior ao dele: o capítulo introdutório à Sociolingüística elaborado por Alkmim para quem Meillet destaca-se por ter sido discípulo de Saussure, ter utilizado um viés diacrônico em seus estudos lingüísticos e ter enfatizado a relação a história das línguas e a história da cultura e da sociedade.
A leitura do índice, a observação das referências bibliográficas citadas ao longo do livro bem como certos trechos da obra são evidências de que Melo nunca foi adepto de um estruturalismo radical. De fato, todos os que compartilham a crença de que o estruturalismo resume-se a sua versão radical, seriam levados a ver, em Melo, um não-estruturalista, isto é um filólogo e não um lingüista.
O ponto de vista filológico
Se para os estruturalistas radicais, Melo não pode ser considerado um adepto, é necessário averiguar se os filólogos o aceitariam entre suas fileiras.
É comum definir-se a Filologia como uma ciência que se dedica ao estabelecimento e à interpretação de textos antigos. É uma ciência que se caracteriza, fundamentalmente, pela interdisciplinariedade e pela concepção dos estudos lingüísticos como instrumentos através dos quais é possível resolver questões como a autenticidade, a autoria, a datação e a decifração de um texto. A Lingüística, ao contrário, vê, nos estudos lingüísticos, um fim em si mesmo, e não está limitada ao estudo de textos escritos.
Dado um texto antigo, tanto o filólogo quanto o lingüista estudariam suas características lingüísticas, entretanto, enquanto o segundo concluiria seus estudos tão logo fossem esclarecidas as características lingüísticas em apreço, o primeiro continuaria suas investigações em busca da interpretação conforme a época em foi escrito. Para alcançá-la, o filólogo dedica-se também a outras disciplinas como a História, a Literatura, a Antropologia e, em certos casos à ciência cujo conhecimento é necessário para que se entenda em profundidade um determinado texto.
Na Introdução à Filologia e à Lingüística há três capítulos que revelam em que medida Melo pode ser considerado um filólogo: “Filologia e Lingüística” e “Da formação filológica e lingüística”, da primeira parte, e “ O papel da analogia na língua”, da terceira.
No capítulo “Filologia e Lingüistica”, Melo define uma e outra de modo semelhante a que propomos inicialmente. A parte em que há a definição de Lingüística é nitidamente maior que a dedicada à definição de Filologia : há oito parágrafos sobre a primeira e apenas quatro para a segunda. Há duas longas citações para ilustrar o que se entende por Lingüistica: uma de Meillet e outra de Saussure, já, no tocante à Filologia, há apenas menção a trabalhos de Augusto Magne e de Sousa da Silveira.
O fato de a Lingüistica merecer mais atenção do autor frustra a expectativa levantada pelo título da obra: quem o lê conclui que o livro destina-se tanto à Filologia quanto à Lingüística, o que sugere que ambas as disciplinas são vistas como pertencentes a um mesmo plano e são consideradas como igualmente importantes.
Ao contrário de o que o título sugere, a leitura do capítulo sobre Filologia e Lingüística indica que o autor está mais interessado em assuntos de Lingüística. Esta preferência é perceptível também em certas passagens do referido capítulo.
À página 7, há a exposição do objetivo do texto: distinguir a Lingüística da Filologia: “Aqui voltamos a tratar da Lingüística(...)buscaremos distingui-la da Filologia” (MELO, 1981: 7)
Considerando que distinguir é diferenciar de modo a transformar um todo heterogêneo em duas partes homogêneas, percebe-se a intenção do autor: separar da Filologia o que é devido à Lingüística, diminuir o alcance da primeira, tornando-a mais específica.
À página 10, Melo admite a precedência histórica da Filologia, em seguida, contudo, e ainda que indiretamente, propõe que o Estruturalismo tornou a Lingüística uma disciplina à parte que, por ser mais científica, torna-se superior à Filologia. Comenta, então, a existência de certa confusão terminológica que fazia do lingüista um filólogo:
A Lingüística nasceu da Filologia e dela não pode prescindir. Só agora, depois dos estruturalismos, vem reivindicando lugar à parte e superior. Mas aqui e noutros países já se entendeu por Filologia o estudo científico da língua, ficando o texto em segundo plano. E filólogo era o especialista que tratava da língua, um como gramático mais categorizado, menos severo, mais arejado, com nível, atitude e métodos científicos. Hoje isto é matéria do lingüista, quando maneja a Lingüística Aplicada. (MELO, 1981: 10)
No capítulo imediatamente seguinte, há um capítulo no qual Melo trata da formação do filólogo e do lingüista. Esse capítulo, cujo título é “Da formação filológica e lingüística.”, consiste em sugestões de conteúdos a serem ministrados àqueles cujo objetivo é a especialização em uma ou em ambas as áreas. Os conteúdos propostos, entretanto, referem-se, exclusivamente, à Lingüística e suas disciplinas.
Comparando o ideal proposto por ele com o perfil elaborado por Silveira Bueno como sendo o ideal para o filólogo, percebe-se com maior nitidez o quanto Melo não estava voltado à Filologia.
Num dos capítulos iniciais da obra Estudos de Filologia Portuguesa, de 1963, Bueno propõe serem conhecimentos indispensáveis a quem se dedica à filologia portuguesa a Gramática, a Estilística, a Poética, a História da Língua Portuguesa e da Literatura. Elenca também disciplinas secundárias como a História da Civilização e da Mitologia e disciplinas complementares como a Epigrafia e a Edótica.
Saltam aos olhos a abrangência do elenco proposto por Bueno e a especialização do elenco sugerido por Melo que se abstém de fazer qualquer menção às disciplinas complementares e secundárias e, das disciplinas essenciais, menciona a Fonologia, a Morfologia, a Sintaxe e a Estilística, disciplinas estreitamente relacionadas à Lingüística.
Outra evidência de que o interesse principal de Melo era a Lingüistica e não a Filologia é fornecida por uma bibliografia sumária anexada ao fim desse capítulo. Nessa bibliografia, frente a apenas uma referência relacionada à Filologia - a obra Crítica Filológica e Compreensão Poética de Herculano de Carvalho - há dez sobre lingüística entre as quais destacam-se, por revelarem seu conhecimento de Lingüística Estruturalista, a Teoria da Linguagem, também de Herculano de Carvalho, o Curso de Lingüística Geral, de Saussure, e os Princípios de Lingüística Geral, de Mattoso Câmara.
As evidências textuais ora apresentadas indicam que Gladstone não era partidário do ponto de vista estritamente filológico. Se de acordo o Estruturalismo radical, Melo não seria rotulado como estruturalista, entre os filólogos ele tão pouco seria admitido.
Não se consegue sair deste impasse a não ser pela adoção de uma concepção alternativa de estruturalismo : aquela que considera os ensinamentos de Saussure em sua totalidade.
O estruturalismo propriamente saussuriano
Segundo este ponto de vista, ser estruturalista é basear-se nos princípios fundamentais expostos por Ferdinand de Saussure em seu Curso de Lingüística Geral: concepção de língua como sistema; entendimento de que a linguagem apresenta um lado social e um lado individual, consciência de que há dois métodos de estudo lingüístico - um diacrônico e outro sincrônico - , adoção da noção de signo como uma totalidade formada por significante + significado, entendimento de que o signo sofre tendências paradoxais de conservação e variação, isto é de mutabilidade e de imutabilidade.
Quem analisa a obra de Melo sob o prisma do estruturalismo não radical vê no capítulo que trata da formação do lingüista e do filólogo indícios de que Melo adotava os postulados saussurianos em sua totalidade.
A seguinte consideração sobre Fonética dá início às sugestões de Melo para a boa formação do filólogo e do lingüista: “[o mestre] Dará grande apreço ao estudo da fonética histórica (ou fonologia diacrônica, como hoje se prefere dizer)” (MELO, 1981: 13)
Neste trecho sobre fonética, chama a atenção o comentário de Melo segundo o qual o qualificativo histórico é equivalente ao qualificativo diacrônico. Esse comentário indica que o autor não poderia ser considerado como sendo alguém alheio à Lingüística Estruturalista e revela sua opinião frente esta corrente lingüística: a de que ela não era totalmente original ou inédita. Percebe-se, nesse trecho uma retórica continuísta, isto é, uma estratégia enunciativa de enfatizar o débito do Estruturalismo para com a tradição de pesquisa anterior.
Após tratar de fonética, o autor volta-se à Morfologia sobre a qual faz as seguintes prescrições nas quais é digna de nota a ênfase dada à noção de sistema posto que evidencia ser estruturalista o ponto de vista por ele adotado:
No estudo da morfologia, o professor se esforçará por fazer o aluno compreender a importância do sistema da língua, (...) Mostrará que, com o tempo, a língua adquire personalidade, adquire uma estrutura sólida e hermética, que enfeixa e relaciona as diversas formas entre si. Para fazer sentir a força do sistema, lembrará que, logo que a criança o domina, submete a ele todo o material lingüístico, dizendo, por exemplo, fazi, fazeu, escrevido, trazeu. (MELO, 1981: 13)
Logo em seguida, Melo discorre sobre sintaxe:
A sintaxe, neste nível superior, tem de ser estudada historicamente, mostrando-se como o presente se explica pelo passado e o passado por um estágio lingüístico mais remoto, o que não impede, e pelo contrário favorece, que também se faça paralelamente o estudo da sintaxe psicológica.
Percebe-se pela passagem que, para a Sintaxe, Melo propõe o estudo diacrônico, com ênfase ao que Saussure denominou como fatores de mutabilidade do signo. A referência a esses fatores permite que esta sugestão sobre o ensino de sintaxe seja definida como estruturalista. Discorrendo ainda sobre sintaxe, propõe o professor a seguinte metodologia de ensino:
Analisar-se-ão os textos - amostras cronologicamente, comentando-os, aproximando fatos semelhantes (...) Na explicação e nos comentários de textos, particular cuidado terá o professor em mostrar ao aluno o valor da expressão, as tonalidades semânticas de cada giro, para que tal aluno não se torne um mero registrador cego de fatos, mas adquira perspicácia para aplicar e desenvolver a Estilística. (MELO, 1981: 13 e 14)
Percebe-se, pela descrição da metodologia a ser adotada, que o estudo dos textos tem por objetivo, para além do estudo da evolução sintática da língua portuguesa, a análise estilística. Se considerarmos a Estilística como o estudo da linguagem no nível da “fala” e a noção de estilo como escolha entre alternativas presentes no nível da “língua”, a disciplina caracteriza-se estruturalista posto que desenvolve a dicotomia “língua” - “fala” em sua totalidade.
Outros indícios de que Melo foi um estruturalista não radical podem ser encontrados no sexto capítulo da primeira parte no qual há um conjunto de conselhos e de sugestões bibliográficas para o estudo da Lingüística e da Filologia em Língua Portuguesa.
Entre os conselhos dados há as seguintes instruções nas quais Melo propõe o estudo de Lingüística estrutural:
Do mesmo modo é indispensável ter conhecimentos básicos de Lingüística Geral, que o interessado poderá inicialmente haurir em Marouzeau (...) ou J. Câmara júnior (...), para continuar em (....)Vendryes (...) e terminar no hoje discutido e com razão criticado livro-chave o Cours de Linguistique Générale de Saussure. (MELO, 1981: 33.)
Se um estudioso recomenda certas obras, infere-se que ele as leu e as aprovou ainda que parcialmente. Isto não significa, contudo, que as utilize em suas pesquisas pessoais. Torna-se, então, necessário verificar como Melo utiliza as obras por ele citadas: assim é possível saber se, como pesquisador, ele foi adepto do estruturalismo.
Com relação à Semântica, na primeira parte do livro, havia, entre as recomendações bibliográficas, obras pré-estruturalistas - como Grammaire Historique de La Langue Française de Nyrop - , estruturalistas como a Teoria Semántica de Kurt Bakdinger e não estruturalista como o Tratado de Semântica Geral aplicada à Língua Portuguesa do Brasil, de Bueno.
No capítulo chamado “O papel da analogia na língua”, presente na última parte da obra, as referências indicam que seu estudo baseou-se, entre outros, em Bréal e em Saussure. Estas citações levam a crer que Melo utiliza mais de uma corrente lingüística no estudo da analogia, atitude que o caracterizaria como eclético e não como estruturalista, pré-estruturalista ou anti-estruturalista.
Após afirmar que a lógica da língua é uma lógica sui generis, Melo a caracteriza como “ilógica, arbitrária, obscura, inconseqüente, caprichosa, difícil ou impenetrável.” (MELO, 1981: 184).
Após esta caracterização da lógica da língua, Melo caracteriza a analogia como uma força que atua na língua no sentido de conservá-la. Distingue então, evolução fonética e analogia:
A evolução fonética é um elemento perturbador, destrutor, atentatório da unidade da língua, transformante, ao passo que a analogia a conserva, preserva, restaura, sustenta. A evolução fonética se realiza fisiologicamente e processa-se à margem da consciência; a analogia é fenômeno psicológico e se produz na consciência lingüística, o que não quer dizer consciência reflexa. (MELO, 1981: 184).
No parágrafo seguinte, após definir analogia como semelhança e dedicar seu estudo à lógica, há a afirmação de que ao lingüista e ao filólogo cabe estudar os efeitos e as conseqüências da analogia:
Analogia é semelhança, é uma realidade presente em todo o universo material e espiritual, e cujo estudo constitui um dos mais difíceis, fecundo e sedutores capítulos da Lógica. Ora, a analogia está presente e atua nas línguas segundo a natureza e modo de ser dessas línguas. Cabe então ao lingüista e ao filólogo observar os efeitos e as conseqüências da analogia neste e naquele idioma. (MELO, 1981:184)
Com esta colocação, Melo distancia-se totalmente de Bréal para quem são os motivos pelos quais os falantes recorrem à analogia que interessa investigar:
Nos livros de lingüística publicados nos últimos quinze ou vinte anos, a analogia ocupa um lugar de destaque, não sem razão, pois o homem é naturalmente imitador e, se tem de inventar alguma expressão, mais do que depressa prefere tomar por modelo um tipo já existente que se esforçar para uma criação original. Engana-se porém, se se apresenta a analogia como causa. A analogia é apenas um meio. Às verdadeiras causas, trataremos de as mostrar. As línguas recorrem à analogia: A Para evitar dificuldade de expressão (...) B Para obter mais clareza (...) C Para sublinhar uma o oposição ou uma semelhança (...) D (...) Para se ajustar a uma regra antiga ou nova. (BRÉAL, 1992: 53 a 57)
Pode-se concluir, então que, apesar de Bréal ter sido citado sua noção de analogia não foi utilizada de fato, o que indica que Melo não era eclético mais sem estruturalista.
Pouco depois, a pretexto de responder a certa questão levantada por Fábio Alves Ribeiro, há a seguinte colocação na qual o uso das noções de sistema e de oposição confirma que é o ponto de vista adotado por Melo era o saussuriano:
(...) podemos adiantar que a forma das línguas se acha no sistema, o qual é um todo fechado, de natureza social, que obriga a consciência lingüística e que se manisfesta pelo conjunto coerente de fonemas, pelas desinências, pelos tipos de formação nominal e verbal, pela ordem das palavras na frase, pela solidariedade entre as diversas partes do discurso, pela escolha e emprego dos conectivos, e, destacadamente, por uma série de linhas-de-força chamadas oposições, que fazem de cada elemento lingüístico uma peça, um corpo dentro da correlação. (MELO, 1981: 184)
Sua filiação à corrente estruturalista também é evidenciada no parágrafo seguinte no qual há o seguinte comentário elogioso a respeito de Saussure:
De fato, a analogia opera no sentido da uniformidade, da coerência, do nivelamento, do polimento das arestas, corte das pontas e das excrescências. Mas, a par dessa força imanente e permanente, para a qual os lingüistas pouco atentam, à exceção de Saussure - a par dessa força imanente e permanente que conserva a língua, tem a analogia uma outra força cujos efeitos são muito visíveis, por isso mais fáceis de observar - a força criadora -. (MELO: 185)
Mais adiante, ao explicitar em que consiste essa força criadora da analogia, Melo faz referência à quarta proporcional, operação matemática que Saussure utilizara para explicitar o modo pelo qual a analogia funciona. Tal menção é mais uma evidência de que o ponto de vista adotado por Melo é o estruturalista - saussuriano:
A analogia criadora supõe sempre um modelo, um molde sobre o qual ela talha as novas formas, procedendo a um raciocínio semelhante ao da quarta proporcional, não idêntico, porque a realidade lingüística é profundamente diversa da realidade matemática. (MELO: 185)
Conclusão
A análise pontual de trechos da última edição de Iniciação à Filologia e à Lingüística ora apresentada demonstrou de que maneiras é possível avaliar Gladstone Chaves de Melo.
Do ponto de vista da Filologia, Melo não se enquadra entre os filólogos, pois não utilizava os métodos e os conhecimentos da Lingüística como um dos instrumentais necessários à interpretação de textos antigos, mas sim como um fim em si mesmo: no estudo de um texto antigo importava-lhe sua análise diacrônica e estilística, apenas, e não questões filológicas propriamente ditas como autoria, datação, interpretação e análise crítica.
A maneira pela qual seus contemporâneos o avaliavam, isto é, como filólogo e não como lingüista, só pode ser entendida se o estruturalismo é concebido de maneira radical. De fato, se estruturalista é aquele que desconsidera as dicotomias saussurianas em sua totalidade atendo-se exclusivamente à língua, à imutabilidade do signo e à sincronia não há como afirmar ser Melo um estruturalista, o que, para os termos da época, equivalia a negar que fosse ele um lingüista.
Segundo um ponto de vista mais equilibrado e imparcial, o Estruturalismo é uma corrente que adota as dicotomias saussurianas em sua totalidade. De acordo com esta definição de estruturalismo é legítimo afirmar que Melo era um lingüista e não um filólogo.
Referências Bibliográficas
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CAMACHO, Roberto Gomes. “Sociolingüística - Parte 2.” In Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 49- 75.
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