GLADSTONE CHAVES DE MELO
O
LINGÜISTA E O FILÓLOGO

Horácio Rolim de Freitas (UERJ, ABF)

 

Falar sobre a obra de Gladstone Chaves de Melo, homem de cultura, na mais profunda acepção do termo, Mestre de minha geração, constitui momento de enlevo. De sólida formação clássica, foi professor em universidades do Brasil nas cadeiras de Lingüística, Filologia, Filologia Românica, Língua Latina, Crítica Textual, Estilística, Literatura Portuguesa, Didática Geral e Filosofia da Educação. Ministrou cursos em Portugal, Espanha, França, Bélgica e Alemanha.

Para terem uma rápida idéia da obra inestimável de Gladstone Chaves de Melo, destacarei alguns de seus estudos no campo da Lingüística e da Filologia, levando em conta a exigüidade de tempo.

Não resta dúvida de que Gladstone Chaves de Melo muito contribuiu para ambas as ciências: Lingüística e Filologia, distintas em seus objetivos específicos. Enquanto a Filologia, usado aqui o termo “stricto sensu”, tem por finalidade fixar, interpretar e comentar textos, a Lingüística tem por objetivo a língua como fato social da linguagem palavras estas que estão na obra Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa (p. 25 e 26).

Mais explícito ainda é Mattoso Câmara ao apresentar o verbete Lingüística em seu Dicionário de Filologia e Gramática:

A Lingüística sincrônica especial, referente à língua portuguesa, estuda o sistema básico de fonemas, de formas, de construções vocabulares e frasais, de que se servem os falantes em português, e suas camadas sociais, gíria, língua culta, língua literária.

Iniciemos com a contribuição de Gladstone Chaves de Melo na interpretação de um fato de lingüística diacrônica.

É comum encontrarmos nos compêndios de História da Língua a inclusão, no capítulo de empréstimos, de termos de origem germânica. Eis a lição de Gladstone (Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa, pág. 215):

A contribuição germânica e árabe deve ser compendiada na continuidade lingüística, tanto é verdade que as palavras daí advindas se alatinaram ou se romanizaram antes de existir a língua portuguesa.

Esta é a lição das maiores autoridades da história da língua portuguesa, como Serafim da Silva Neto e Sílvio Elia. O primeiro nos diz que os visigodos, ao invadirem a Hispânia, aceitaram a língua dos vencidos: o latim, nela introduzindo alguns germanismos. Logo empréstimo houve ao latim, não ao português.

Não é preciso acentuar a familiaridade de Gladstone com as obras dos mais renomados representantes da ciência da linguagem, como Vendryès, Jespersen, E. Coseriu, Martinet, para citar alguns, não excluindo os autores alemães como Max. L. Wagner, Von Wartburg e outros.

Outro fato que destacamos refere-se ao emprego do verbo ter impessoal, tratado como brasileirismo.

Na obra Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa, o autor, lembrando a lição: “quanto melhor se conhece a língua arcaica e mais se investigam os falares portugueses, menor é o número de brasileirismos”, reconhece que ele mesmo “retificou afirmação feita e mantida durante vinte anos na obra A Língua do Brasil, onde arrolou como brasileirismo o uso impessoal do verbo ter, a indicar existência de fato ou ato”.

Explica que em suas idas a Portugal, na localidade de Póvoa-do-Lenhoso, no Alto Minho, deu com o uso do verbo ter impessoal, no sentido de existência. E soube que esse emprego ocorre em outras localidades. Isto o levou a retirar as dúvidas que tinha na interpretação de passagem da obra Frei Luís de Sousa, de Almeida Garret:

Madalena – Ao menos não tenho sustos com a viagem. Mas a volta... quem sabe?

Jorge – Não, hoje, não tem perigo.

É oportuno lembrarmos que não faltam exemplos desse emprego do verbo ter em autores portugueses:

               Nos matos da costa tem muito pau-brasil

(Fernão Mendes Pinto, Peregrinação , II, 791)

               “E dentro (no paço) tinha muitos jardins

(João de Barros, Crónicas, III, 9)

—“Tem ali um pomar que dá os pêssegos mais deliciosos de Portugal.”

(Eça de Queirós, A Cidade e as Serras).

Outro mestre que se ocupou do assunto foi Cândido Jucá Filho que, em artigo intitulado Aspectos da Linguagem Brasileira, apresentado no 2º Simpósio de Língua e Literatura, 1969, depois de apresentar vários exemplos colhidos em autores portugueses, afirma:

“Parece-me assim que o uso do verbo ter por haver nas chamadas frases existenciais é uma ampliação legítima que os brasileiros fazemos dentro de critérios que nos chegaram de Portugal.”

No campo da sintaxe, Gladstone Chaves de Melo posiciona-se quanto aos conceitos de coordenação e subordinação.

É comum encontrarmos em nossos compêndios e gramáticas uma oposição entre coordenação e subordinação: as orações são coordenadas ou subordinadas.

Gladstone explica que

...são dois processos que não se opõem, são apenas diferentes. Daí haver orações subordinadas coordenadas, pois subordinação é conceito de essência, e coordenação é conceito de acidente. O oposto à oração subordinada é, portanto, a oração independente. (Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa, pág. 246)

Coordenação é o paralelismo de funções, igualdade de funções sintáticas (Manual de Análise, pág. 98).

Lembramos, de passagem, que também o grande Amado Alonso em sua Gramática Castellana, em co-autoria com Pedro Henriquez Ureña, segundo curso, pág. 33, assim ensina: “Coordenadas são orações de uma mesma classe; quer dizer que todas são independentes ou todas dependentes.”

Ainda sobre orações, o Prof. Gladstone Chaves de Melo não esposa o critério corrente de desdobramento das chamadas orações reduzidas.

Diz-nos, na pág. 247 da obra citada:

Infinitivo, gerúndio e particípio são nomes e, como tais, fazem parte de uma oração, exercendo nela uma função. Logo, não cabe desdobrá-las; será um processo de muletas, condenável, pois se analisa outra oração, equivalente, e não o que está escrito.

Gladstone aceita oração reduzida quando esta corresponde a uma oração coordenada, como no longo oceano navegavam, as inquietas ondas apartando” (Lus. I, 19), isto é : e apartavam as inquietas ondas.

Quero crer que este critério adotado por Gladstone foi haurido na obra de Rodolfo Lenz: La oración y sus partes, publicada em 1935, portanto, anterior à 1ª ed. da sua obra, de 1949.

Lenz chama a essas formas nominais de verbóides e as define comoformas verbais que se agregam a um sujeito e não formam uma proposição separável.”

Ainda no campo da morfossintaxe, podemos exemplificar um caso de idiotismo da língua portuguesa que, durante muito tempo, confundiu os desavisados nos estudos de nosso idioma: o emprego do infinitivo.

Na obra Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa assim aborda o assunto o ilustre Mestre:

Sobre o emprego do infinitivo pessoal formulou no começo do século passado Jerônimo Soares Barbosa (na Gramática Philosóphica da Língua Portuguesa, 1822) umas regras  que, apesar de cerebrinas e contraditórias, apesar de nascidas de especulação e não de observação exata dos fatos da língua, pegaram e perturbam até hoje a cabeça de muita gente, porque entraram a ser repetidas pelas gramáticas posteriores. Mais tarde, o grande romanista Frederico Diez enunciou outras regras. Quem deu o tiro de misericórdia na questão do emprego do infinitivo flexionado foi o nosso admirável Said Ali, em estudo célebre inserto desde 1908, nas Dificuldades da Língua Portuguesa.

Realmente, o nosso Said Ali não solucionou o emprego do infinitivo mas também outros casos de sintaxe nessa obra desafiadora do tempo, onde o autor cita Saussure, cujas idéias seriam veiculadas no Brasil quase duas décadas depois.

No campo da análise mórfica, se constata, também, a atualização lingüística do Prof. Gladstone Chaves de Melo.

Ao tratar dos processos de formação de palavras, assim se expressa:

quem identifique a prefixação com a composição. Andam mal tais sinonimizadores, porque a filiação, essência do processo derivativo, fica patente com os prefixos, o que não acontece na composição, em que se combinam elementos autônomos, enquanto o prefixo é elemento formativo, serve para fazer derivados: refazer, desmandar, incomum.

Em muitos casos, a palavra vem prefixada do latim ou do grego, e, então, será empréstimo ou continuidade lingüística, como: inocente (que não prejudica) [nocēre]; infante (que não fala) [fari]).( Na Ponta da Língua, nº 2, p. 164)

Vê-se que Gladstone Chaves de Melo sempre primou pela atualização dos estudos lingüísticos, esposando critérios também defendidos pelos dos mais renomados lingüistas nacionais e estrangeiros. Incluem a prefixação na derivação, entre nós, Said Ali, Olmar Guterres da Silveira e Evanildo Bechara, para citar três. E, dos estrangeiros, lembramos: Simeon Potter, Louis Guilbert, Frédéric François, Laurie Bauer, Matthews e Henri Frei.

É oportuno repetir aqui as palavras de dois Mestres:

Said Ali:

É fácil afirmar que dis-, re- e o negativo in- representam partículas inseparáveis que são ou foram preposições e advérbios. Equivale este argumento a uma nova petição de princípio. Nada se sabe da existência de tais vocábulos independentes nem em latim nem em qualquer outra língua indo-européia. Por toda parte ocorrem estes elementos funcionando sempre como prefixos. ( Manual de Gramática Histórica da Língua Portuguesa, 3ª ed., p.229).

Olmar Guterres da Silveira: “A rigor, estamos convencidos de que não existe o prefixo como forma livre; mantemos na língua, isto sim, formas livres homônimas de certos prefixos.”(Prefixos e Não-Prefixos Portugueses, p. 63, in A Obra de Olmar Guterres da Silveira, de Horácio Rolim, Metáfora Editora, 1996).

 

O FILÓLOGO

Agora apreciemos o filólogo Gladstone Chaves de Melo através de seus estudos, interpretações e comentários de textos.

Uma de suas melhores obras intitula-se Alencar e a “Língua Brasileira”. Antes do arguto estudo que Gladstone fez da obra Iracema, de José de Alencar, este autor era acusado pela crítica desavisada de:

a)     não saber empregar os pronomes oblíquos; b) abusar de brasileirismos e tupinismos; c) possuir sintaxe irregular; d) usar regências populares; e) empregar galicismos, enfim, um autor de mau estilo.

Todas essas levianas imputações foram refutadas pelo filólogo.

Sobre o assunto ouçamos as próprias palavras de Gladstone Chaves de Melo:

Um dos meus trabalhos, certamente dos menos maus, defende Alencar da mesquinharia de gramatiqueiros, de puristas caolhos e concluo, inteiramente baseado nos fatos da língua, que Alencar escreveu em requintada língua portuguesa com estilo brasileiro.

Gladstone Chaves de Melo confirma que Alencar não usou brasileirismos, tupinismos e a imagística da flora e da fauna, mas também usou expressões literárias encontradas em vários autores, inclusive em Camões. Vejamos alguns exemplos:

Alencar: “ três sóis que eles eram partidos” (vestígio da voz depoente);

Camões: “Porém cinco sóis eram passados” (Lus., V, 37)

Alencar: “crebo suspiro

Camões: “Crebos suspiros pelo ar soavam” (Lus., IX, 32)

Alencar: “Caubi vai tornar às montanhas dos tabajaras

Bernardes: “Como viu que não tornava, recolheu-se para o mosteiro” (Pão Partido em Pequenino) — tornar por voltar  

Alencar: “Ainda pouco vos vi de longe / que passáveis sobre a esplanada”(o afastamento da oração relativa é construção clássica)

Camões: “tudo aquilo obedece / que criaste”(Lus., I, 38)

Alencar: “Começou de cismar”(começar de, comum na língua clássica)

Camões: “Começa de servir outros sete anos” (Soneto)

Alencar: “Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata

Camões: “... por me lembrar que estáveis sem mim (Lus., V, 35) (sintaxe freqüente na língua literária clássica)

Alencar: “... mais lento se tornara e pesado (intercalação do verbo entre dois adjetivos)

Camões: “Tão temerosa vinha e carregada (Lus., V, 38)

Sobre a colocação de pronomes oblíquos, Gladstone cita a lição de Said Ali: “São corretos o uso geral em Portugal e o uso geral no Brasil.” É claro que em nossa entoação frasal predomina a próclise.

Enfim, conclui Gladstone Chaves de Melo que os pseudo-erros apontados são enunciados pela boca de personagens que usam a linguagem popular descuidada, e não erros do autor.

Também a obra de Vieira mereceu estudo filológico de Gladstone Chaves de Melo, como o Sermão da Sexagésima e o Sermão do Bom Ladrão. Deste último, disse Gladstone: “Riquíssimo, magnífico e de uma atualização gritante.”

Mas, deparando-se com a passagem em que Vieira diz: “Antigamente, os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones”. Gladstone corrige a etimologia apresentada pelo grande orador, ensinando:

A má etimologia tirou-a Vieira do escritor latino Marcus Terentius Varro (116 – 27 a.C.). Etimologia não é romance nem poesia, em que possa entrar a imaginação criadora: é ciência documentada, segura. Para se estabelecer uma etimologia, tem-se de conhecer a história da palavra. Latro nada tem que ver com latus, relaciona-se com látris, grego: “trabalhador assalariado”, e com o verbo latreúo: “estar em serviço, trabalhar por paga”.

Continua Gladstone:

O primeiro sentido de latro, que aparece em Plauto, é “soldado mercenário de infantaria”. em Cícero a palavra passa a designarsalteador, bandido”. Não se corrompeu a palavra, como diz Vieira, porque palavra não se corrompe, o que se corrompeu foi o homem.

Realmente, a explicação etimológica de Gladstone Chaves de Melo está confirmada por Ernout-Meillet no Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine, editado em Paris, 3ª edição, 1951.

Latro é, portanto, empréstimo do grego λάτρων.

Outra pesquisa de Gladstone refere-se ao emprego do verbo colocar fora da acepção primitiva, isto é, co + locare: pôr em algum lugar. Não aceita como corretas frases semelhantes a: Imóvel colocado à venda. Colocar árvores abaixo. Eu coloquei que ele viria, uma vez que o verbo tem por radical loc, de locus e significa “pôr cuidadosamente num lugar”.

Fazendo um estudo em Os Lusíadas, constatou que Camões usou 91 vezes o verbo pôr e nem uma vez o verbo colocar.

Explicação não menos interessante está na confirmação do gênero da palavra cólera: o cólera ou a cólera? Há algum tempo, a dúvida tomou conta dos noticiários, ouvindo-se vários locutores de rádio e de televisão pronunciarem o cólera.

O assunto mereceu artigo de vários estudiosos como Vitório Bergo, publicado na revista Confluência, e Gladstone Chaves de Melo, publicado em 15 de março de 1991, no periódico Na Ponta da Língua, nº 1, p. 112, sob o título Antes que ela chegue. Ali, diz-nos Gladstone Chaves de Melo que a masculinização do termo se deu devido à má tradução do título da obra de Gabriel Garcia Márquez: Amor en Tiempo del Cólera, para Amor em Tempo do Cólera. Enquanto em espanhol e francês o nome da doença é masculino nos compostos le choléra-morbus e el cólera-morbo, em português sempre foi feminino: a cólera.

Ensina ainda o Prof. Gladstone Chaves de Melo que a palavra vem do latim cholera (f) , empréstimo erudito do grego χολέρα, também feminina cujo radical provém de χολή, bílis, excreção do fígado, daí a idéia de ira, raiva.

Não se tratando da doença, mas do sentimento de paixão, também no francês e no espanhol o nome é feminino: la colère, la cólera.

Gladstone Chaves de Melo cita como abonação do gênero feminino em português o Dicionário de Antônio de Morais Silva: cólera (f);

A.                      Herculano: “Com a rapidez da cólera ou da peste...”(O Monge de Cister);

Almeida Garrett: “...a cólera-morbus da sociedade atual...”(Viagens na minha terra);

Camilo Castelo Branco: “O anjo levou-mo quase fulminado pela cólera-morbus” (Romance de um Homem Rico).

Devo lembrar que o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras, a partir da 2ª ed., revista em 1998, aceita os dois gêneros das palavras cólera e cólera-morbus.

Finalmente, trago mais uma contribuição de Gladstone Chaves de Melo aos estudos filológicos. Trata-se do episódio de Os Lusíadas, no Canto IV: O Velho do Restelo.

O velho aparece na praia do Restelo, local em que as mulheres restelavam a estopa com o restelo ou pente de ferro com que tiravam a estopa do linho para fazerem corda. Esse velho, à hora da partida das naus portuguesas, aparece misteriosamente, faz eloqüente discurso e desaparece sem explicação do motivo que ali o levou.

Várias interpretações foram apresentadas para justificar a presença do Velho do Restelo, como por exemplo:

Rebelo Gonçalves — no discurso a voz dos homens do norte, conservadores e apegados à terra; a voz do homem da rua, inconformado com a audácia dos reis.

Hernani Cidade diz que

Vasco da Gama, novo Ulisses ou Enéias, conta os prantos e as vozes cujo eco lhe ficou nos ouvidos. Entre todas essas vozes, com sentido mais profundo e mais largo, havia de ressoar pelos séculos a voz do Velho do Restelo.

Hernani Cidade, assim, faz-nos recordar passagem da Eneida em que Enéias vai aos Campos Elíseos encontrar o velho pai Anquises e dele ouve críticas pelos males e perigos da guerra.

Eneida, C. VI, 833:

Anquises: “Ó rapazes, não, não costumeis vossos espíritos a tão grandes guerras; nem desvieis as poderosas forças do império para as ruínas da pátria[1]

E conclui:

C.VI, 835:

“E tu, meu primeiro sangue (César Augusto), tu que tiras a origem do Olimpo, poupa a pátria, lança fora das mãos as armas.[2]

Do mesmo modo, pela boca do Velho do Restelo, Camões não poupa crítica à cobiça e vaidade dos governantes ao mandarem os povos para a guerra.

Teófilo Braga considera “protesto contra a insânia de D. João III que arrojava para a exploração da Índia os fidalgos.”

Guilherme Storck no objeto de censura os perigos e males que as possessões ultramarinas de África e da Índia acarretaram a Portugal.

Afrânio Peixoto fala da sensibilidade e juízo da multidão que murmura contra a empresa dos descobrimentos e conquistas longínquas.

Como na realidade explicar a aparente contradição entre o autor do discurso (Velho do Restelo) e o autor que, no início, exalta a dilatação da e do Império?

Gladstone Chaves de Melo propõe uma nova explicação. Eis suas palavras:

Chamei ao episódio AntiLusíadas. Aceito as várias interpretações, mas para mim tem um sentido mais profundo e mais íntimo. O Velho do Restelo é, ao mesmo tempo, o anti-herói e o maior dos heróis camonianos. Seu discurso é o mais eloqüente de todos que enchem o poema.

C. IV, 95 – Ó glória de mandar, ó vã cobiça

                  Desta vaidade, a quem chamamos fama!

................................................................

                Que mortes, que perigos, que tormentas,

                Que crueldades neles exprimentas!

 

C. IV, 97 – A que novos desastres determinas

                  De levar estes reinos e esta gente?

                  Que perigos, que mortes lhe destinas,

                   Debaixo dalgum nome preminente?

Considerando todas as interpretações insuficientes, Gladstone Chaves de Melo procura explicar como 88 versos desse episódio condenam o que os 8728 enaltecem.

Para Gladstone Chaves de Melo, o Velho do Restelo é o próprio Camões que, agora desiludido numa vida de sofrimento, de exílio, de privações, conhecendo melhor os homens, constata o falso louvor dos áulicos, a falta de espírito dos homens políticos.

No referido episódio, muda-se o narrador. Vasco da Gama vez a um velho de aspeto venerando como a pedir perdão do que, com tanto engenho e arte, dissera em estilo grandíloquo e corrente.

Esse velho com saber de experiência feito proclama que “a maior paixão humana é a paixão do mando, do domínio, da soberba, do orgulho, o “eritis sicut dii”. É o que reúnem suas veementes palavras no início: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça.”

Daí concluir Gladstone Chaves de Melo que o famoso e misterioso episódio foi escrito depois de pronto o poema e que o Canto IV, anteriormente, terminaria na estrofe 93:

Determina de assi nos embarcarmos,

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta ou fica mais magoa. (C. IV, 93)

Vão partir as naus, explica ainda Gladstone, porém a estrofe 94 inicia-se com a conjunção adversativa, forma normal de retornar uma narrativa ou de acrescentar-lhe algo inesperado. Aqui não se trata de contradição da adversativa, mas do lembrado depois.

E conclui o Prof. Gladstone:

Se a minha proposição é aceitável, diríamos que Camões alterou o início do Canto quinto, para emendá-lo com o acrescentado fecho do quarto. Daí, retornando à fala, Vasco da Gama começa, fazendo certa crítica ao velho honrado: (C. V, 1)

Estas sentenças tais o velho honrado

Vociferando estava, quando abrimos

As asas ao sereno sossegado

Vento.....................................

Enfim, para Gladstone Chaves de Melo, o episódio do Velho do Restelo traduz um Camões desiludido da vida, armado não da ciência, mas da sabedoria, conforme suas próprias palavras: “um saber de experiência feito”. Gladstone termina com estas palavras:

está, em modesta exposição, o que tenho pensado do mais eloqüente discurso camoniano e da identidade do misterioso velho, herói, sem nome e sem jaça que seria o próprio autor do magnífico poema.

Termino esta exposição sobre o lingüista e o filólogo, afirmando que a grandiosidade da obra de Gladstone Chaves de Melo não pode ser aquilatada em tão curto espaço de tempo. Leiam-lhe as obras e terão idéia de sua dimensão.


 

[1] Eneida: “Ne, pueri, ne tanta animis assuescǐte bella:

                  Neu patriae validas in viscera vertǐte vires.

[2] Eneida: “Tuque prior, tu parce patriam, genus qui ducis

                 Olympo: Proice tela manu, sanguis meus.”