GLADSTONE CHAVES DE MELO
E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Manoel Pinto Ribeiro (UERJ, SUAM e ABF)
Na Miscelânea em homenagem ao Prof. Dr. Gladstone Chaves de Melo, tem-se “uma visão completa da grandeza de um saber multifacetado e do amor ao idioma, além do intransigente compromisso com o dever e do carinho à família, aos amigos e aos alunos”.
Publicou onze livros: 1) A língua do Brasil; 2) Alencar e a “língua brasileira”; 3) Dicionários portugueses; 4) A língua e o estilo de Rui Barbosa; 5) Gladstone Chaves de Melo e Serafim da Silva Neto, conceito e método da filologia; 6) Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa; 7) Novo manual de análise sintática; 8) Gramática fundamental da língua portuguesa; 9) Ensaio de estilística da língua portuguesa; 10) Os “brasileirismos” de Frei Luís de Sousa; 11) A excelência vernácula de Gonçalves Dias. Escreveu, ainda, centenas de artigos sobre aspectos gerais de nossa língua.
Com os estudos modernos de sociolingüística, julgamos que as obras A língua do Brasil, Alencar e a “língua brasileira” e Iniciação à filologia e à lingüística portuguesa constituem três dos grandes livros de um entusiasta pela pesquisa da língua portuguesa em sua plenitude.
Esses trabalhos demonstram a ampla visão lingüística e filológica do insigne mestre, com muitas passagens que revelam a variação lingüística no Brasil e, principalmente, as diferenças entre o estilo do português do Brasil e o de Portugal.
É interessante notar que, em Sociolingüística - os níveis de fala - um estudo sociolingüístico do diálogo literário, de Dino Preti, o lingüista Isaac Nicolau Salum afirma que esse tipo de trabalho sobre variação lingüista foi precedido apenas pelo de Gladstone Chaves de Melo, no que toca a Alencar. Os dois autores, nessas obras, verificaram, no domínio da língua literária, as tendências para a diversificação lingüística. Para William Bright, a Sociolingüística vai além das simples relações entre língua/sociedade, objeto da sociologia da linguagem, pois sua finalidade seria a comparação da estrutura lingüística com a estrutura social.
Para Dino Preti, os estudos de Bright servem, pelo menos, para a abordagem da diversidade/uniformidade de uma mesma língua, condicionada por fatores extralingüísticos. Ele diz que seria o “campo do que poderíamos chamar níveis ou registros, isto é, um processo de estratificação da língua, cuja estrutura e léxico funcionariam como elementos representativos da hierarquia social”.
A mensagem pode, então, apresentar variações de escolha, ainda que essa diversidade sofra a ação de uma força repressiva, representada pela norma da mesma comunidade onde ocorre a comunicação.
Os fatores extralingüísticos envolvem diferenças geográficas, econômicas, históricas, sociológicas, estéticas, políticas. No processo da comunicação, deve-se ressaltar a importância da tríplice relação situação-ouvinte-falante.
Aqui já se vê como o nosso homenageado, não se descuidando do registro culto do português do Brasil, já possuía uma excelente visão sobre a variabilidade na língua, quando fez a defesa de nosso escritor romântico, que foi criticado indevidamente por escritores portugueses.
Vamos apenas apontar alguns aspectos dessa contenda literária, mostrando os principais argumentos utilizados por Gladstone. Foi no século XIX que alguns críticos tentaram denegrir a reputação literária de Alencar, fazendo reparos a sua obra. O escritor se defendeu, excedendo-se às vezes, pois aparentava certo desdém pelas normas da língua literária e insistia na “tendência para a transformação profunda do idioma de Portugal”, aqui no Brasil. No entanto a posição teórica de Alencar não coincide sempre com sua posição prática. Por isso devemos examinar as suas idéias e observar como ele escreveu, como ele usou a língua culta.
O escritor e crítico português Pinheiro Chagas, a propósito de Iracema, elogia o valor literário e a força do estilo, o “brilhante matiz da prosa do Sr. José de Alencar”. Lamenta, porém, a incorreção da linguagem, a preocupação de fazer do “brasileiro” uma língua diversa do “português”. Aponta neologismos arrojados e injustificáveis, além de insubordinações gramaticais. O crítico não cita exemplos e diz que só o povo - “esse ignorante sublime” - pode transformar uma língua, já que os escritores a enriquecem. Finaliza a crítica com um elogio à obra que estaria destinada a lançar no Brasil as bases de uma literatura verdadeiramente nacional.
Henriques Leal, continuador do grupo maranhense que se achava em torno de Gonçalves Dias, cioso da pureza da linguagem, fez em Lisboa comentários em que elogia a obra de Alencar, mas põe breve reparo à língua. Isso provocou uma resposta do nosso escritor no pós-escrito de Iracema. Henriques Leal voltou à carga no artigo “Questão Filológica” - a propósito da segunda edição de Iracema. Tenta mostrar problemas de emprego de pronomes átonos e falta de uniformidade na ortografia, dentre outros. Isto motivou nova defesa de Alencar.
A pior crítica partiu de uma revista-panfleto, aqui no Rio de Janeiro, - As Questões do Dia”, sob a orientação do escritor Antônio José Feliciano de Castilho, com o pseudônimo de Lúcio Quinto Cincinato. Vários colaboraram, todos com um falso nome. Saiu uma obra em dois tomos, em 1871. No trabalho há uma campanha de desmoralização e de descrédito, um ataque ao político, ao jurista, ao dramaturgo, ao romancista. Castilho e Flanklin Távora sobressaem nessa mesquinha atividade. Segundo Gladstone, algumas críticas a O Gaúcho e Iracema são procedentes, no que diz respeito à etnografia dos índios brasileiros. No entanto, o que nos interessa são as observações feitas à linguagem de nosso escritor.
Gladstone diz que, na maioria das vezes, quem errou foram os censores do escritor. Além disso, informa que Alencar, nas defesas que fez, não fala nem uma vez em “língua brasileira”, sempre se refere à língua portuguesa. Discorre sobre “dialeto brasileiro” e sobre “abrasileiramento” da língua portuguesa. Reagiu contra o purismo exagerado, contra a caturrice gramatical, contra a superstição do classicismo.
Pelo que se observa em Alencar e a “língua brasileira”, pode-se aquilatar a ampla visão lingüística do Prof. Gladstone. Sem dúvida, pode-se ver em alguns dos seus trabalhos um grande interesse pelos estudos de Sociolingüística no Brasil. Como sabemos, a Sociolingüística é uma das subáreas da Lingüística e estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala. José de Alencar tinha plena consciência das diferenças entre o falar de Portugal e o do Brasil. Por isso, reproduz, em suas obras, alguns aspectos de nossa fala cotidiana, não se importando com as censuras dos portugueses que viam a língua falada em Portugal como a única a ser utilizada nas diversas colônias lusitanas. Verifique-se, no entanto, que o escritor não se afastou tanto do registro culto, como pretendiam seus agressores. Basta ler qualquer trecho de sua obra:
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. // O favo da jati não era doce como o seu sorriso, nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Vejam que, para a literatura da época, os recursos expressivos, como a comparação e metáfora, eram enriquecedores da descrição de personagens e de ambientes. Essa feição nacionalista era uma grande característica de nosso romantismo. Alencar não podia descrever Iracema como os portugueses faziam com a figura de uma cachopa.
A segunda obra de Gladstone, a que faremos referência a seguir, é A língua do Brasil, 4.ª edição, da Padrão, Rio de Janeiro, 1981. Nela, o autor dedica um capítulo sobre a língua popular. De início, diz que não se deve falar em “língua popular”, mas em linguagens populares, pois são essencialmente variáveis e móveis, já que um mesmo dialeto apresenta, não raramente, oscilação de formas para idêntico caso: eles falô, eis falarum, eis falaro, por exemplo.
Nesta introdução já se observa como o professor Gladstone tinha conhecimento apurado das diferenças entre os diversos falares. Apesar disso, o escritor chama a atenção para uma apreciável uniformidade. Afirma que em Portugal às vezes os dialetos apresentam sensíveis diferenças, como nos Concelhos de Melgaço e de Baião: em Melgaço - perf. do ind. de andar: andei, andache, andou, andivemos, andastes, andarum; verbo querer: quijem, quijeche, quiso, quijemos, quijestes, quijerum. Em Baião: andei, andastes, andou, andémus, andastes, andaro; quis, quisestes, quis, quisimos, quisestes, quisero.
Para Gladstone, essa língua popular é, de modo geral, o português arcaico, com transformações mórficas e fonológicas causadas pelo contato da língua dos negros e de nossos índios. Estas alterações teriam o caráter de um superestrato. O professor comenta considerações de ordem histórica que explicariam essa diferença entre a fala popular de Portugal e a do Brasil.
No Brasil, ele observou que a língua de Minais Gerais representa a feição brasileira mais antiga e que, por isso, na generalidade dos casos, é o denominador-comum dos nossos falares populares. Fica excluído o vocabulário regional que é, para ele, principalmente elemento de estilo (ver p. 94). Consultando Os anais do Congresso da Língua Nacional Cantada, reunido em são Paulo em 1937, que tem 782 páginas, observou notícias sobre a linguagem da Paraíba, Ceará, Rio Grande do Sul, do Pará, de São Paulo, e do oeste do Paraná. Consultou, ainda, A linguagem dos cantadores, de Clóvis Monteiro, Língua do Nordeste de Mário Marroquim e Minha gente, de Clodomir Silva, de Sergipe, além do Dialeto caipira de Amadeu Amaral. Em Minas contou com o Falar Mineiro, de José A. Teixeira. De Goiás consultou Estudos de Dialetologia Portuguesa - Linguagem de Goiás, também de José A. Teixeira. Uma grande falha nessa bibliografia: não se explica a prosódia, ou seja, não diz como é a entoação, qual é o sistema vocálico e consonântico da região x ou y. Não indica a zona de ocorrências de fatos fonéticos, com exceção de José A. Teixeira que esclarece esses fatos até com valiosos mapas. Considera esse ensaio muito imperfeito, mas que não poderia deixar de incluir no livro. Por isso, ele sugere que se façam mais trabalhos de dialetologia como O Atlas Prévio dos Falares Baianos, de Nélson Rossi. Hoje já possuímos cerca de oito Atlas dialetológicos.
Vamos apresentar alguns aspectos que ele observou.
Ir na cidade - prep. em regendo verbos de movimento. // lhe com valor de acusativo (objeto direto) // chamar e obedecer com regime direto// ele em função objetiva direta: Peguem ele // maior liberdade na colocação pronominal. Essas características constituiriam um fundo arcaico, uma substância da nossa fala popular.
Outros fatos: Aqueles homi estava tudo bebo: o sinal de plural só aparece no determinante. É um fato absolutamente geral no Brasil, constituindo a nota mais original e típica dos nossos falares, diz o autor.
Nos verbos, geralmente só há duas pessoas: a primeira e as outras: eu vivo, tu, ele, nós, eles veve. No pret. perfeito, podem aparecer mais formas: eu vivi, tu/ele viveu, nós viveu (ou vivemo), eles viveu (viverum ou vivero).
Não pretendemos mostrar exaustivamente todos os fatos mencionados por nosso homenageado. Queremos, no entanto, ressaltar que ele estava imbuído de um grande entendimento da diversidade lingüística no Brasil, fato que hoje toma um vulto extraordinário com obras como a de Maria Helena de Moura Neves: A gramática de usos do português e, mais recentemente, o Guia de usos do português, da Unesp.
Em Iniciação à filologia e à lingüística, Gladstone descreve o que entende por filologia e mostra a lição dos textos e as normas gramaticais. A seguir, descreve a perspectiva histórica, iniciando pela descrição das línguas indo-européias, chegando-se às línguas românicas e ao português do Brasil. Define como estudar a língua portuguesa e termina fazendo comentários sobre a nomenclatura gramatical brasileira.
Nesta obra, em diversos pontos desenvolve o conceito de que uma língua, tal como acontecia com o latim corrente, não se mostra absolutamente uniforme por toda a parte e em todas as camadas sociais, afirmando que a linguagem coloquial do Rio de Janeiro não é inteiramente igual à do Ceará ou à de Minas Gerais. Tratando das diversidades lingüísticas (p.45), ele nos diz:
Para o correto estabelecimento da norma lingüística e para o exato conceito de erro, é mister que o lingüista, o filólogo, o gramático tenham bem presentes ao espírito a discriminação dos usos lingüísticos. Dentro da ampla unidade da língua cabem vários aspectos, várias modalidades, com características próprias, determinadas pelo fim da linguagem usada e pela situação psicológica dos interlocutores. Assim, há um uso coloquial culto, um uso familiar, um uso popular regional, um uso grupal, um uso afetivo, um uso maternal, um uso popular regional, um uso grupal, um uso afetivo, um uso maternal, um uso infantil, um uso intelectual, um uso estético. Em cada um desses setores se estabelece uma tradição, um costume lingüístico, que solidariza os interlocutores. A norma lingüística de cada uso se induz e nunca se deduz. O processo há de ser a observação, as conclusões hão de ser a sistematização dos fatos observados. Tal sistematização é que constitui a Gramática.
Adiante, afirma: A língua culta é o ponto de referência, o ponto de encontro das variantes regionais, sociais e grupais, qualquer coisa como a quintessência de tais particularizações, ou melhor, sua depuração e estilização.
Pela ampla visão que o autor possuía sobre os diversos usos de uma língua, não temos dúvida que é um verdadeiro precursor dos estudos de sociolingüística no Brasil.
Finalizando estas justas homenagens a um Mestre de mais alto valor e de probidade rara, vejamos um dos trechos finais deste livro que enaltece o estudo profundo dos recursos da língua portuguesa:
Todo o ensino da língua deve consistir, segundo ele, em apurar o sentimento da linguagem. A seguir aconselha:
Aprimorar o gosto, despertar e fomentar o senso de distinção, exercitar a plasticidade da inteligência, a fim de ela descobrir que para cada uso lingüístico há uma linguagem especial, de tal modo que não é possível estabelecer esquemas rígidos, grosseiramente aplicáveis a todos os casos, como se faz invariavelmente com a bitola em qualquer ponto da via-férrea. Fazer, enfim, compreender a fundo que a língua participa diretamente do homem e que, portanto, chora com ele, ri com ele, com ele hesita, gagueja, se corrige, com ele discreteia serenamente, procura angustiada a verdade, ama, odeia, pragueja, bendiz, se liberta e se escraviza, muda inopinadamente de sentir, canta o seu triunfo, celebra a paz de alma ou se entrega soturnamente ao desespero.