GLADSTONE CHAVES DE MELO
UM PROFESSOR E ORIENTADOR INESQUECÍVEL
Darcilia Simões (UERJ)
Um esclarecimento em forma de prólogo se impõe. Ao tomar conhecimento de que o VI Congresso Nacional de Lingüística e Filologia renderia homenagem ao insigne mestre Gladstone Chaves de Melo, de imediato apresentei uma proposta de conferência, onde discorreria sobre o tema que intitula este breve pronunciamento.
Inicialmente acolhida pela Presidência do Congresso, fui, dias mais tarde, notificada pelo mesmo Prof. José Pereira da Silva de que a Comissão Organizadora do evento teria rejeitado a conferência por não ter sido proposta por qualquer de seus membros - regra de organização interna, sobre o que não me cabe comentar. Nesta oportunidade, fui inquirida sobre o interesse de apresentar o trabalho em mesa-redonda, com o que não concordei pela extensão do ensaio que teria reservado para apresentar.
O tempo passou e, semanas mais tarde, sou interpelada pela Profa. Maria Verônica Aguilera a respeito de uma possível participação em mesa-redonda segundo sugestão do Prof. Pereira. Bastante desconfortavelmente admiti a hipótese para não parecer indelicada, sobretudo ao saber que estaria ladeada pela Prof. Luísa Chaves de Melo - neta do meu mestre; entretanto, senti-me forçada a reduzir o trabalho ao mínimo, para que coubesse nos 15 a 20 minutos destinados a uma comunicação em mesa-redonda. Por isso, o que aqui apresento não passa de um sucinto relato de memórias, com o único fito de apologizar meu inesquecível orientador Gladstone Chaves de Melo. A conferência será publicada oportunamente.
Fechado o prefácio, vamos ao trabalho!
É um momento muito especial integrar esta mesa de reflexões sobre a trajetória brilhante de um dos mais respeitados estudiosos da língua portuguesa. Fui contemplada, na história de minha formação com várias oportunidades de contato muito próximo com o Prof. Gladstone Chaves de Melo. Durante meu curso de graduação, além de várias conferências a que assisti, tive aulas de Estudo de Problemas Brasileiros com o saudoso mestre. Mais adiante, fui premiada com o mestre Gladstone Chaves de Melo, na qualidade de meu orientador de dissertação. Ficam aqui também registrados os meus agradecimentos ao professor e amigo Rosalvo do Valle, a quem devo a glória de um orientador tão ilustre.
Nos primeiros momentos fiquei assustada, pois temia não conseguir expressar-me de modo adequado em contatos tão próximos com tão importante figura da intelectualidade nacional. Mas qual não foi a surpresa quando me vi diante de um homem simples, bondoso, disposto e disponível além de solidário com a causa da formação acadêmica de qualidade.
Passado o susto das primeiras horas, vi-me diante de uma rara oportunidade: a de receber instruções diretas e exclusivas de um dos estudiosos mais polêmicos na academia de então. Gladstone Chaves de Melo era um professor exigente. Como gramático, o qualificavam como conservador. Como indivíduo, parecia ser um tanto casmurro, na descrição machadiana. Mas nas aulas-orientações mostrou-se oxímoro perfeito em que se reuniam a competência da autoridade e a doçura de um pai cuidadoso e preocupado com o futuro de sua pupila. E foi assim que aprendi a admirar o Professor Gladstone Chaves de Melo com quem conversava pelo telefone e pelas madrugadas sobre Tupis, Tapuias... e sobre o cenário lingüístico-cultural desenhado por Gonçalves Dias no magistral poema épico I-Juca-Pirama.
Passemos então a falar da contribuição do homem-tema desta mesa-redonda: Gladstone Chaves de Melo.
Sua ampla experiência como pesquisador e político permitiu-lhe uma visão abrangente da língua de Camões, a partir do que o mestre mineiro construiu um conjunto de estudos - distribuídos entre livros, periódicos, separatas - cuja leitura se faz obrigatória a qualquer estudioso do vernáculo.
Dotado de capacidade verbal e mnemônica inigualáveis, Gladstone Chaves de Melo fazia de cada uma de suas aulas uma brilhante conferência temática. A grandiosidade de seu conhecimento enciclopédico hipnotizava a audiência que se proibia interromper fala tão majestosa, ainda que em tonalidade simples e de certa forma tímida como todo bom mineiro. Qualquer interrupção poderia resultar em perda irrecuperável de informação que pudesse ser extraída do dizer do grandiloqüente mestre de língua portuguesa.
A participação do Prof. Gladstone Chaves de Melo no panorama dos estudos estilísticos da língua portuguesa no Brasil merece ser divulgada para a nova geração de estudiosos do vernáculo. Sem qualquer hipótese de desmerecimento para o estado atual das pesquisas sobre a língua portuguesa e sobre as contribuições oriundas da lingüística textual e da análise do discurso, entre outras, não se admite a formação de um profissional das Letras que não tenha sido apresentado e por isso tenha lido páginas do trabalho do Prof. Gladstone Chaves de Melo.
Sua história bibliográfica, salvo engano, iniciada em 1938 com o Formulário Ortográfico, premiou os professores de língua portuguesa com uma obra singela intitulada Novo Manual de Análise Sintática (racional e simplificada), em cujo prefácio à primeira edição (datada de 1953) o mestre apresenta um objetivo perfeitamente sintonizado com as preocupações docentes contemporâneas: atender à realidade da língua e só a ela, e simplificar racionalmente uma nomenclatura tantas vezes confusa e sem fundamento (GCM, 1971: 9).
Longe de curvar-se cegamente aos ditames da Nomenclatura Gramatical Brasileira, apesar de seu rigor disciplinar oriundo de uma educação nos moldes da tradicional família mineira, o autor de A Língua e o Estilo de Rui Barbosa (1950) ousava todo o tempo em suas análises, fundamentando-as em argumentos de ordem estilística que justificavam as opções textuais nas suas resultantes expressivas.
Sem perder a oportunidade de asseverar a importância de domínio consistente do idioma em suas variações como condição indispensável às escolhas expressionais adequadas, o estudioso de Padre Vieira e Rui Barbosa apontava a riqueza da língua que herdamos e destacava as influências recebidas dos povos que integraram a formação do povo brasileiro.
Convicto de que as línguas são fatos humanos e, portanto, participam da variedade e da instabilidade do homem e das sociedades (GCM, 1971b: 29), Gladstone Chaves de Melo penetrava nos textos com olhos filológicos, mas com as lentes de estiólogo apuradas. Numa de suas falas judiciosas e cientificamente embasadas, no livro A língua do Brasil (1971b), o mestre declara que à medida que se vão melhor conhecendo a língua arcaica e os dialetos portugueses, diminui o número dos brasileirismos. Na mesma obra, diz o pesquisador:
...um exame minucioso das divergências atuais entre o português do Brasil e o de Portugal nos patenteará, em primeiro lugar, que a maior parte dos fatos sintáticos brasileiros são apenas arcaísmos conservados (GCM, 1971b: 39).
Quando trata de língua e estilo, o autor de Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa (1976) retoma os pressupostos saussurianos e define palavra ou discurso (parole) como a execução individual da língua, o uso que do sistema faz cada sujeito-falante. Apesar de aprender a língua de sua comunidade, a pessoa ao falar põe em execução a língua aprendida, contudo, escolhendo, selecionando, inovando. E é nessa perspectiva que o autor de Alencar e a língua brasileira (1951) descreve fatos textuais presentes nos clássicos portugueses e brasileiros, dos quais se devem extrair lições da expressão eficiente e apropriada.
A visão do mestre, classificada por alguns como extremamente purista e reacionária, sempre se mostrou aberta ao deleite do texto cuja forma se apresenta afinada com seus propósitos expressivos. Gladstone fora um cultor das belas letras e extremado apreciador da gramática afinada à expressão e à expressividade. Sua noção de domínio idiomático traduzia-se na capacidade de domar a gramática sem demonstrar rebeldia ou desmazelo. Domar a gramática por tê-la sua e como aliada ao melhor estilo de dizer.
Como andam as noções gramaticais do falante comum hodierno? Ou melhor: como andam as aulas de língua em nossos dias? E mais: como se comunicam hoje os brasileiros escolarizados?
O momento histórico em que a língua nacional vem sendo alvo de discussões acirradas, rever as contribuições do autor de A excelência vernácula de Gonçalves Dias (1992) é produtivo mote para o desenvolvimento de férteis estudos sobre os compromissos da manutenção de uma língua nacional e as conseqüências do descompromisso político com o vernáculo. Diz o mestre que do mesmo modo que existe um estilo individual, haverá um estilo nacional que representa um caráter, uma sensibilidade, um modo-de-ser nacional; uma expressão lingüística que reflita esse modo-de-ser, essa, por assim dizer, alma coletiva (GCM, 1971b: 133).
No entanto, deixar a expressão à mercê de máximas como “comunicou ´tá comunicado!” ou “entendeu, não sacrifica!” não são atitudes responsáveis, sobretudo do ponto de vista educacional. Geraldi (2002 30), evocando Nicolló Perutti, assevera que o ensino da língua e de sua gramática é uma das mais fortes contribuições para a formação de um cidadão responsável. O estudioso italiano diz que a instrução gramatical é o início e o fundamento de todas as disciplinas e não é possível atingir a perfeição em nenhuma disciplina senão começando pela gramática.
Cônscio da versatilidade de seu idioma e das relações entre escolhas lingüísticas e situações comunicativas, o sujeito-falante será capaz de expressar-se com adequação e clareza, sem perder a liberdade - bandeira usada em prol de certa libertinagem lingüística documentável em nosso tempo.
Entender a língua contemporânea prezando e prestigiando sua variedade implica conhecer nossa cultura, nossa gente. E o legado do mestre mineiro deixa marcas indeléveis na análise estilística. Acerca do fazer literário e do cruzamento das variáveis lingüísticas no interior da obra, o notável estudioso debruçou-se sobre páginas de Alphonsus de Guimarães, José de Alencar, Gonçalves Dias, Machado de Assis (entre outros), em cujas fontes bebeu o que há de mais significativo na literatura lusófona.
Gladstone Chaves de Melo, monumento da cultura nacional, destacava a beleza dos textos e o valor dos dados enciclopédicos neles projetados, examinado-lhes a riqueza lexical e demonstrando a importância da leitura dos clássicos da literatura de língua portuguesa. Sua posição metodológica ante os conhecimentos da sintaxe da língua e a despreocupação com os excessos nomenclaturais desenharam uma posição vanguardista, a despeito de sua imagem austera e dita conservadora. O respeito ao coloquialismo como marca estilística na obra de José de Alencar é prova de sua sensibilidade aos contornos do estilo, que, associada à atitude filológica no tratamento da produção literária, deixou-nos legado valioso para a análise dos componentes da expressividade textual em língua portuguesa.
Gladstone Chaves de Melo sua vida e sua obra é matéria para muitas palestras, conferências, cursos, enfim, para muito estudo e muita reflexão. Minhas humildes considerações acerca do legado plural de GCM para os estudos da língua portuguesa e para a cultura nacional não representam homenagem à altura do que pude obter ao privar da atenção do mestre durante a orientação de minha dissertação de mestrado. Com ele vivenciei o conhecimento técnico-científico e recebi as mais gratas lições de perseverança, disciplina e humildade, ao lado de um encorajamento constante diante das dificuldades que atravessei naquela época.
Em síntese, falar de Gladstone Chaves de Melo é para mim motivo de honra, orgulho e muita gratidão. Se não fossem o carinho e a dedicação com que me orientara na elaboração do Estudo estilístico-sintático de I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias - o léxico e os “giros” sintáticos (UFF, 1985), certamente hoje aqui eu não estaria, com lugar marcado e audiência garantida para publicar minha admiração ao mestre e meu agradecimento a Deus por me haver contemplado com tão especiais oportunidades: uma de ter sido aluna e orientanda, portanto discípula desse baluarte das letras nacionais; outra por hoje aqui estar, com vossas senhorias, festejando a existência desse monumento da cultura brasileira. Graças a Deus!