Gladstone e o sentimento da língua
À procura e ao encontro
de novas experiências amorosas
Maria Veronica Silva Vilariño Aguilera (UERJ)
Em pleno desenvolvimento de minha tese, é sobretudo um prazer ler em Gladstone Chaves de Mello (Iniciação à filologia portuguesa): "A linguagem é expressão não apenas do pensamento, mas também do sentimento, da vontade, das emoções, e, mesmo quando o é do pensamento, só muito raramente é que se trata do pensamento lógico, ordenado, refletido, ponderado." Reverencio e afago as palavras do mestre, com o prazer da visão compartilhada. Língua também é uma questão de amor.
E esta é a diretriz de "O jornal e o ensino de Língua Portuguesa: leitura de mundo nas malhas da linguagem", projeto apresentado ao Doutorado em Língua Portuguesa da UERJ, onde o ponto nevrálgico de minhas inquietações diz respeito à relação cotidiana das pessoas com o idioma materno, freqüentemente prejudicada por um misto de aversão e temor, sentimentos gerados, o mais das vezes, por distorções no sistema de ensino e pela excessiva e quase exclusiva valorização dos conceitos de certo e errado.
A tese traz em seu bojo a criação de uma coluna, pautada pelo desejo de interferir, de alguma forma, para a mudança do status quo, valendo-se do poder de penetração dos meios de comunicação de massa e desse instrumental valioso que é a linguagem jornalística, cujo entendimento e utilização a serviço do ensino de língua encontra-se no cerne do trabalho.
Vale a pena lembrar aqui a própria experiência de Gladstone Chaves de Mello e sua colaboração regular e intensa em jornais e revistas, principalmente nos periódicos cariocas O Jornal, Correio da Noite e Correio da Manhã, e que chega a totalizar mais de mil artigos, se considerarmos as participações ocasionais.
Língua é conhecimento, sim e regras também, sem dúvida. A gramática normativa é necessária e fundamental, valioso ponto de referência e comunicabilidade, e os “consultórios gramaticais” têm o seu valor. Ler e escrever, porém, vai muito além disso. Em nossa relação com a língua, é preciso menos regras e mais afeto; menos “decoreba” e mais “Van Gogh”, menos prescrições e mais erotismo.
A nosso aviso, todo o ensino da língua deve consistir em apurar o sentimento da linguagem. Mostrar o que está certo, chamar a atenção para o que está bem, pedir olhos para as belezas e graças de expressão, fazer sentir as tonalidades semânticas, fazer apreciar a justeza, a propriedade, a verdade das diversas linguagens (...) Fazer enfim compreender a fundo que a língua participa diretamente do homem e que, portanto, chora com ele, ri com ele, com ele hesita, gagueja, se corrije, com ele discreteia serenamente, procura angustiada a verdade, ama, odeia, pragueja, bendiz, se liberta e se escraviza, muda inopinadamente de sentir, canta o seu triunfo, celebra a paz de alma ou se entrega soturnamente ao desespero. " (MELLO, 279-80).
Uma das propostas da tese é a de estruturar um trabalho sobre o jornal diário comercializado em bancas como instrumento de múltiplas possibilidades nos estudos teóricos sobre língua e linguagem e na prática de ensino da língua. O que se objetiva é, a partir de uma interação axial entre leitura, informação e cidadania, buscar o aproveitamento máximo do texto jornalístico em sala de aula e exemplificar a utilização do material em atividades de leitura, redação e gramática, consoante uma visão de língua que não dissocia conhecimento de prazer, e, muito menos, de participação efetiva no mundo em que se vive.
À primeira vista, parece não haver dúvidas quanto ao entendimento de que, conforme expressa Paulo Coimbra
Guedes (GUEDES, 83), nenhum dos outros conteúdos processados na escola e nenhuma outra das habilidades nela desenvolvidas estão tão intimamente vinculados à vida pessoal e social de cada um de nós, dentro e fora da escola, quanto a língua que falamos e o uso que dela fazemos.A realidade das ruas, das escolas e, por vezes, do próprio meio acadêmico mostra que não é bem assim: da atitude de rejeição e temor da maioria das pessoas ao que pensam ─ ou lhes foi ensinado ─ ser “a língua portuguesa” (ou seja, a gramatiquice ou, até mesmo, a literatura impingida), com sérias conseqüências sobre a capacidade de leitura e interpretação de textos, e de expressão oral e escrita, a demonstrações ostensivas ou veladas de preconceito de pretensos filólogos (pois que o verdadeiro amigo da língua, na plena acepção da palavra, não tem nenhum interesse em encerrá-la numa torre de marfim) a qualquer espécie de popularização e socialização da linguagem.
Nas escolas, se não bastassem os problemas estruturais dos sistemas de ensino, desinformação e/ou desinteresse comprometem propostas pedagógicas bem elaboradas, ou, ao contrário: propostas alienadas e alienadoras a perturbar, ou mesmo impedir, o trabalho de professores competentes e bem-intencionados.
... a gramatiquice está na linha da aberração totalitária, porque, não se resignando à realidade lingüística, busca imprimir-lhe a marca das fórmulas a priori, surgidas ou fixadas na mente dos puristas. (MELLO,.41).
A mudança de atitude passa pela aceitação e uso efetivo de formas e gêneros diversos de linguagem no ensino do idioma materno: verbal e não verbal, oral e escrita; música, cinema, dança, artes plásticas; literatura, jornalismo, propaganda; jornal, rádio, TV, internet e livros, claro, muitos livros...
Que a leitura do texto escrito é o espaço, por excelência, da reflexão ─ possível somente através de seu pleno entendimento, sinônimo de domínio de língua ─ parece ser também um consenso, pelo menos, teoricamente. Trabalhar com a diversificação e a fertilização desse texto já é outra questão, que passa pela prévia aceitação da parte do professor, espécie de estado de alma, e pela sua própria vivência.
A escrita é representação da realidade lingüística pro meio de sinais perceptíveis à vista. É pois uma transposição de plano, e constitui uma das maiores invenções da humanidade, incomparavelmente mais importante que a da bomba atômica.(...)
A escrita é, pois, a fotografia da língua, e, do mesmo modo que o vulto de Bernardo é muito mais importante e decisivo que o retrato de Bernardo, a realidade sônica da língua é muito superior à sua realidade gráfica. Vou adiante. A escrita não existe, por assim dizer. Ela apenas suscita a palavra no nosso espírito, faz renascer milhões de vezes a vida ultra-efêmera da linguagem. (MELLO, 203).
É fato que o texto literário tem priorizado a atividade de leitura na escola. Mais recentemente, entretanto, constata-se a presença crescente do texto jornalístico na sala de aula, no livro didático e em provas e concursos, a exemplo dos exames vestibulares e processos seletivos na disputa por vagas no mercado de trabalho. De tal forma, que já se observa alguma reação, no meio docente, quanto a um possível alijamento da literatura na vida escolar, sob a alegação de que alguns professores estariam se valendo, com exclusividade, do jornal para estudo de língua.
Reação mais do que justificada. É impossível pensar-se em um trabalho sério com a língua dissociado da literatura, com tudo que esta carreia de riqueza estilística, sem falar das implicações histórico-culturais, que transcendem aos interesses do ensino de língua e ressaltam o caráter multidisciplinar da obra literária.
Não se trata de despir um santo para vestir o outro. A eflorescência intelectual não acontece sob limitações de nenhum gênero.
(...) por que será que, sendo a boa Filologia libertadora epositiva, são mais valor os que, desorientados, se interesampor questões lingüísticas, aos gramtiqueiros, aos manipuladores de regrinhas, aso citadores de compendistas e vernaculistas de má morte, − os quais sufocam a liberdde da língua, multiplicam as proibições e criam complexos de inibição no ato de escrever? (MELLO, 54).
Eis um tema oportuno para análise filológica: a imprensa como apreensão linguageira da realidade (a palavra, não dicionarizada, foi a que melhor encontrei para dizer que usa a língua, o que se casa perfeitamente com o significado do sufixo eira). Ou seja, a língua como instrumento e matéria-prima da informação. A língua de todo dia, aquela que sai nas páginas do jornal de banca. E de um jeito que todo mundo entende: de forma simples, clara e correta. Com espaço para reflexão e questionamentos. Bom exercício de vida e linguagem.
Do texto jornalístico há muito a se aproveitar, no estudo e no ensino da língua portuguesa, dentro e fora de sala de aula, em atividades de leitura, redação e exemplificação de fatos da gramática, como por exemplo, a escolha e o arranjo das palavras nas frases ou o jeito especial de um título. É nas reportagens, notícias e entrevistas que se pode observar melhor os recursos da linguagem jornalística propriamente dita, com suas exigências de clareza, exatidão, objetividade, imparcialidade, sobriedade e correção, entre outras. Há sempre lugar, entretanto, para se aproveitar a variedade estilística de outros gêneros e analisar as diferenças entre textos informativos e opinativos, entre estes, editoriais, artigos e colunas.
O aproveitamento do jornal não significa, de jeito nenhum, o abandono do livro e da leitura da obra literária. A literatura -repito- oferece experiências únicas e insubstituíveis com a linguagem e ganhos ilimitados de cultura e vida. Muitas vezes, vamos encontrá-la nas folhas diárias; em notícias ou comentários sobre autores e obras e no cruzamento da linguagem literária com a linguagem jornalística. Disso, o melhor exemplo é a crônica, gênero de manifestações inesquecíveis tais as que nos foram deixadas por Carlos Drummond de Andrade.
Plural como a própria realidade, a linguagem jornalística se apresenta sob roupagens diversas, do uso mais formal à fala caseira, coloquial, como se lê nas colunas (espaços que ocupam parte de uma página, dedicados à economia, informática, futebol, alta sociedade, etc), onde é freqüente o uso de modismos, gírias e a quebra intencional das normas gramaticais, além da criação de palavras e expressões que fazem estilo. A especialização em cadernos ou publicações voltados exclusivamente a um tema, como educação ou esportes, também oferece ótimo material de estudo.
Se nada disso importasse, vale lembrar que, por questões de preço e disponibilidade de uso, a leitura do jornal de banca quando não, na própria banca é, muitas vezes, a única que as pessoas fazem, em país de escassos recursos, poucas escolas e poucos professores. O jeito, nesses casos, principalmente, é ir até onde o povo está, literalmente. Pode ser no jornaleiro da esquina.
Foi com essa filosofia e esses objetivos que criei a coluna "Beijo de língua", título de proposital ambigüidade, com o fim de enredar o leitor nas malhas da linguagem e da língua. Língua de cada dia e de cada um; linguagem partilhada e reproduzida em notícias e comentários; a palavra redescoberta, tal como preconiza Drummond: “ Chega mais perto e contempla as palavras ....” ;o sentido possível e desdobrável; o que se torna passível de mutação, nas regras infringidas; o humor, a ironia, o afeto, a raiva, o espanto, transcodificados nas malhas de um texto graças à linguagem; a intertextualidade da própria vida cotidiana.
Prevalece o desejo de que esse espaço metalingüístico seja um espaço de reflexão e poesia, de estudo e de luta.
(...) é preciso suscitar e manter uma verdadeira cruzada contra a insciência, a impostura ou a charlatanice, porque é preciso começar por convencer os distraídos ou os contagiados, os sem roteiro ou os desviados, para que eles se armem de sadia desconfiança contra os vendedores de regrinhas gramaticais e se disponham a formar do bom lado.
Urge dar de mão, de uma vez por todas, com os caturras, longamente adestrados na sutilíssima arte de colocar pronomes, que andam com os bolsos a estourar de substitutos de galicismos, para distribuir filantropicamente aos ignaros pelas esquinas e pontos de bonde. (MELLO, 270).
Com fins de exemplificação, finalizo com o recorte de alguns textos da referida coluna. O material vem sendo publicado na Revista Aeronáutica, publicação dirigida aos associados do Clube da Aeronáutica e distribuída entre empresas, órgãos de governo, escolas e universidades, associações e outras entidades civis e militares. A Revista, que tem como público-alvo pessoas e instituições de alguma forma ligadas ao mundo da aviação civil e militar, professores, alunos e ex-alunos das escolas de aviação, oficiais da ativa e reformados, empresários, engenheiros e técnicos do setor aeroespacial e outros, caracteriza-se por um ótimo padrão editorial, com espaço aberto a matérias e artigos relacionados às artes, literatura e cultura em geral.
Além, muito além da dispersão da passarela, ressoam os ecos de mais um carnaval que passou. Mestre Alencar que me perdoe a irreverência de lhe parodiar o intróito ao romance Iracema (a que nasceu “além, muito além daquela serra”...lembram-se?). A intenção é nobre e, certamente, alguém que tanto amou nossa língua e nossa cultura a compartilharia conosco. Pois não é de língua que se trata também - e, talvez, sobretudo -
quando o assunto é o batuque da alegria? ("Brasilidade à flor da pele")♦♦♦♦
Parodiando o cronista centenário, abro a janela matinal e me reencontro com o Ano Novo. Cada dia mais velho, cada vez mais distante do espocar de magia e surpresas com que se fazia anunciar em tempos mais jovens. Do outro lado da rua, busco a amendoeira de Drummond e a sabedoria de suas reflexões lingüístico-filosóficas ("Velhas amendoeiras, novas leituras")
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Se, entretanto, a literatura e a poesia, em particular, alçaram a palavra a uma condição peculiar de arte, não menos fascinante é a linguagem nossa de cada dia, reeescrita e reinventada a cada momento, do prosaico ao inusitado. Na banca de jornal, no bar, na oficina, na hora do amor, na briga da esquina, no comício, na despedida ... Nos gabinetes, nos quartéis, nas fábricas, nas escolas, nas ruas ... ("No tear: palavras em busca de um sentido")
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O bonde da vovó era outro. Como diz o Aurélio: "Bonde. Substantivo masculino. Veículo elétrico de transporte urbano, para passageiros ou carga, que se move sobre trilhos e pode ser fechado ou aberto, com estribo corrido e bem perpendicular a este." (...)
Mas, saindo do terreno do concreto (concreto, quanto à classe gramatical, não quanto às lembranças), mostra-nos o verbete do Aurélio que bonde também é termo de gíria e significa mau negócio, logro ou, ainda, mulher feia, sem atrativos; bofe, bagulho; no jargão futebolístico: jogador ruim.
Pensando bem, embora a versão mais atual e informatizada dicionário não incorpore ainda o bonde do tráfico ao léxico da Língua Portuguesa, bem que se podia fazer uma transposição de sentido. Jogadores ruins, é o que são esses motorneiros do terror urbano. Não aprenderam a driblar as adversidades; a maioria pegou o bonde andando, mas trocou o jogo de cintura pela falácia de um passe livre e de uma glória passageira que acaba por arrastá-los por sob a engrenagem; pena que, na queda, arrastem tantos outros, os incautos e os inocentes. ("De bondes e mudanças")
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MELLO, Gladstone Chaves de. Introdução à filologia portuguesa, p. 279-80.
GUEDES, Paulo Coimbra. “A língua materna, o ensino em processo”.In: Organon, p. 83.