AS FRASES - FEITAS EM GABRIELA CRAVO E CANELA
UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO

Tadeu Luciano Siqueira Andrade (UNEB)

 

   

Manda-a de volta ao fogão

a seu quintal de goiabas

a dançar marinheiro

a seu vestido de chita

a suas verdes chinelas

a seu inocente pensar

a seu riso verdadeiro

a sua infância perdida

a seus suspiros no leito

a sua ânsia de amar.

Por que a queres mudar!

 

Eis o cantar

de Gabriela

feita de cravo

e de canela

 

(AMADO, 2001: 241)

 

A língua é um produto da ação humana, é a condição fundamental para os três aspectos na vida social: integração, construção da história e reconhecimento da identidade cultural de um povo.

que a língua é produto social, não podemos estudá-la a partir de uma única modalidade, pois é o uso que a torna concreta nas suas múltiplas faces, é a unidade dentro da diversidade.

Unidade, por fazer parte da vida social de uma comunidade e ser reconhecida como oficial, segundo a Constituição Federal de uma nação; diversidade, por ser usada nas diversas camadas sociais, nos variados espaços geográficos e nas situações histórico-político-culturais.

Considerando a língua como um conjunto de sistemas articulados entre si, analisamos dois sistemas importantes para a formação lingüística de um povo:

O léxico por ser amplo e está subordinado ao processo de evolução e fazer parte da vida da língua que, a cada dia, surgem novas palavras, outras caem em desuso, umas surgem com novos significados. Isso justifica a dinâmica da língua.

O semântico por estar inserido no léxico e ser responsável pelo significado das palavras a partir dos aspectos pragmáticos.

Não podemos estudar a língua, partindo apenas das palavras que compõem seu léxico, nem dos processos semânticos, conforme vemos em alguns compêndios gramaticais polissemia, homonímia, sinonímia etc.

Para compreendermos a evolução e a formação de uma língua, devemos considerar as duas forças no trabalho da linguagem: A herança passiva e cômoda do passado, uma vez que temos expressões na língua que ainda conservam a sua estrutura, por exemplo, as frases feitas e os provérbios, e a criação ativa, por vezes, revoltada do presente. Nesta, citamos as várias transformações e adaptações que uma determinada expressão sofre em uma língua, pois o passado da língua tem valor quando vivo e aplicado ao presente (LAPA, 1970. p. 63).

É importante o poder criativo da língua. A cada dia surgem novas expressões que, a partir do uso coletivo, tornam recursos léxico-semânticos de uma determinada comunidade lingüística. (ANDRADE, 2002)

Esses recursos são as frases feitas que constituem uma grande parcela no uso do léxico de uma língua.

Que são frases feitas? Quem as criou? São expressões vivas no uso da língua. São vozes do povo, fazem parte indispensável da sua linguagem diária. Representam uma sabedoria acumulada através de idades e gerações, atuam na formação e conservação dos modos de agir, pensar e refletir de um povo.

Cada vez mais, as frases feitas ainda estão longe dos dicionários, dos compêndios gramaticais, caminham léguas adiante da língua padrão, pois, apesar da influência e modernização dos meios de comunicação, mantêm-se vivas na memória lingüística do povo.

São estruturas petrificadas na língua, e sua propagação deu-se através da participação ativa do povo que a divulgou por intermédio da língua oral.

O estudo das frases feitas pode ser visto a partir de dois ângulos: o lingüístico e o social.

No aspecto lingüístico: as frases feitas constituem um grupo fraseológico em que cujos elementos andam ligados para expressarem determinadas idéias. Os lexemas adquirem o verdadeiro significado quando analisados em grupo. As frases feitas formam um todo, uma idéia e não podem ser decompostas em suas partes. (LAPA, 1970: 61)

Na língua, as palavras isoladas não levam vida, dependem umas das outras em grau menor ou maior de dependência, uma vez que todos os elementos do grupo concorrem para nos darem uma idéia única. (LAPA, 1970: 61)

É nas frases feitas que se imprime o gênio da língua, revela-se o poder criativo da linguagem do homem, havendo a presença viva da semântica e do léxico da língua.

Imposto pelo uso da língua, o grupo fraseológico constitui o traço importante no léxico de qualquer língua, uma vez que a fraseologia atravessa espaços geográfico-sócio - temporais, resiste ao processo da ciência e da tecnologia, entra no uso da língua, tornando-se discurso repetido.[1]

O significado das frases feitas está, às vezes, oculto e nem sempre é perceptível à primeira vista. Esse processo semântico é chamado de criptossemia.

Muitas dessas criptossemias se prendem a fatos históricos, a circunstâncias sociais do velho tempo que não são mais conhecidos da geração moderna . (BUENO, 1965: 245)

As frases feitas não devem constituir textos. Elas estão no nível do léxico e do sintagma. PEREIRA (1998), distribui-as em quatro grupos de acordo com o tipo de sintagma a que correspondem:

Frases feitas com valor de sintagma nominal

Frases feitas com valor de sintagma verbal

Frases feitas com valor de sintagma adverbial

Frases feitas com valor de interjeição. (PEREIRA, 1998: 16-17)

No aspecto social, as frases feitas refletem a mentalidade de um povo, suas histórias, seus costumes, crenças e estados afetivos. É através da fraseologia que se afloram os fatos sociais, o aspecto geográfico, a cultura e a história dos falantes de cada comunidade, a exemplo da expressão forasteiro sem raiz na terra, usada por Jorge Amado, referindo-se às pessoas que moravam em Ilhéus, mas não se dedicaram à cultura do cacau. (AMADO, 2000: 188)

Uma das formas de conhecimento da história do pensamento social no correr dos séculos está presente em um vasto número de expressões, muitas vezes caracterizadas como populares, as quais seriam portadoras das vivências de uma ou mais geração que funcionam como instrumentos de conduta aptos para ser aplicados no cotidiano. (BRAGANÇA Jr.: 1997: 240)

No grupo fraseológico, devemos levar em conta as informações de cunho histórico - social, pois tais expressões estão presentes na vida do homem, adaptando-se a várias situações, como por exemplo, a expressão prometer mundos e fundos.

Amado a usa em duas situações diferentes:

Religiosa - prometendo mundos e fundos a São Jorge em trocas de chuvas preciosas. (AMADO, 2000: 8) Esta expressão mostra a promessa dos coronéis do cacau, suplicando a São Jorge uma boa safra, livrando a lavoura das chuvas em abundância.

PolíticaA prometer mundos e fundos, grandes reformas em Ilhéus (...)(AMADO, 2000: 330). Tal expressão retrata as promessas dos políticos da época ao povo durante o período eleitoral.

Para a análise das frases feitas e considerando sua importância na formação lexical de uma língua, no nosso caso, a portuguesa, escolhemos o romance Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Publicado em 1958, Gabriela Cravo e Canela descreve tão bem a região cacaueira da Bahia nos idos de 1925 e o caso amoroso de Nacib e Gabriela. Dois eixos norteadores mostram a obra: De um lado, os meandros do sistema político provinciano, com seus avanços, retrocessos e disputas; De do outro, registra costumes e a vida amorosa na cidade de Ilhéus, retratando escândalos e crimes passionais.

A obra de Jorge Amado apresenta a preocupação de fixar as classes subalternas para, através delas, analisar toda uma sociedade.

Cada vez mais estou mais perto do povo, do povo mais pobre, do povo miserável, explorado e oprimido. Cada vez, eu procuro mais o anti-herói... os vagabundos,as prostitutas, os bêbados. (GOMES, 1981: 51)

Se as frases feitas representam uma parcela de contribuição para o léxico e a semântica da língua, encontrando mais substâncias na língua do povo, a obra de Jorge Amado apresenta um vasto campo fraseológico, por a sua linguagem representar a opressão, a miséria e o cotidiano das classes subalternas das ruas e dos becos da cidade da Bahia (como costumava referir-se à cidade do Salvador), das roças do cacau, dos terreiros de candomblé, do cais, dos cabarés, mostrando a resistência cultural de um povo que, apesar da influência e modernização dos meios de comunicação, mantém expressões típicas dele.

Estudar as frases feitas em Gabriela é adentrar-se em um universo lingüístico diversificado da região cacaueira. Essa diversidade dá-se mediante dois fatores:

1. Variação diastrática – as várias camadas sociais, tais como os jagunços, os trabalhadores do cacau, as prostitutas, engenheiros, juízes, advogados, mascates, caixeiros-viajantes entre outras.

Neste cenário, há uma confluência de várias estratificações sociais, resultando em uma diversidade lingüística, a partir do fator sócio-cultural.

2. Variação diatópica: marcada pela influência do fator geográfico na constituição lingüística de Ilhéus na década de 20, com a chegada de pessoas de diversas partes do Brasil e do mundo, atraídas pelo cultivo do cacau, como: Ceará, Sergipe, Alagoas, Recife, Rio de Janeiro, Bahia, Síria, Inglaterra, Líbano, Espanha entre outras.

Mostra um novo panorama lingüístico, as camadas sociais de diversos espaços geográficos fixaram-se em Ilhéus, adquirindo o falar local, transformando o seu dialeto de origem, graças à perpétua evolução lingüística.

A língua é um organismo que se desenvolve e se transforma, como também transforma a cidade, conforme podemos ver no romance: Graças a essa gente diversa, Ilhéus começara a perder seu ar de acampamento de jagunços, a ser cidade (..) ilheense por fora e por dentro. (AMADO, 2000: 32)

Assim, podemos considerar a linguagem de Gabriela cravo e canela como um dialeto grapiúna.

Para o autor, grapiúna é aquele que se dedicou à cultura do cacau.

Chegavam e em pouco eram ilheenses dos melhores, verdadeiros grapiúnas plantando roças, instalando lojas e armazéns, rasgando estradas, matando gente, jogando nos cabarés, bebendo nos bares, construindo povoados de rápido crescimento, rompendo a selva ameaçadora, ganhando e perdendo dinheiro, sentindo-se tão dali como os mais antigos ilheenses, os filhos das famílias antes do aparecimento do cacau. (AMADO, 2000: 32)

Respaldando-nos na visão de Jorge Amado, podemos dizer que a língua de Ilhéus passou por duas fases distintas na sua constituição:

A língua ilheense dos tempos da capitania, fundação da cidade, com as primeiras famílias, e a língua do cacau, ou seja, grapiúna, surgida durante a evolução da cultura cacaueira, com a confluência dos vários povos de regiões geográficas e camadas sociais diferentes.

Analisando a linguagem de Jorge Amado e considerando a relação da língua com o contexto sócio-histórico e a variação lingüística presente em Gabriela, a partir de duas variantes, a diatópica e a diastrática, dividimos as frases feitas, também chamadas de perífrases léxicas, usadas no romance e na fala dos ilheenses na década de 20, em três campos semânticos:

O homem no aspecto sócio-político-cultural; o homem traído e a mulher da vida, uma vez que o contexto sócio-político, o proletariado, os crimes passionais, as prostitutas e o sexo sempre estiveram inseridos na obra amadiana.

 

O homem no aspecto político-social

Naquela época, eram usadas as seguintes perífrases léxicas:

1. homem de meia conversa: homem fraco, sem coragem. (AMADO, 2000: 104)

2. homem de rédea curta: homem que não tem muita liberdade da mulher. (AMADO, 2000: 124)

3. homem do mato: homem humilde, dedicado às atividades agrícolas. (AMADO, 2000: 206)

4. homem de duas palavras: homem que não assume seus compromissos. (AMADO, 2000: 41)

5. bunda-suja: homem sem prestígio político. (AMADO, 2000: 174)

6. vira - bosta: homem sem liderança na política ou em outros aspectos sociais. (AMADO, 2000: 206)

7. forasteiro sem raízes na terra: aquele homem que se tornou ilheense sem participar da luta pela posse de terra e não trabalhou na cultura do cacau. (AMADO, 2000: 188)

 

O homem traído

Nenhum escritor brasileiro, em suas obras, falou tão bem sobre o sexo, como Jorge Amado.

Em Ilhéus, na época dos coronéis do cacau, era comum o zelo pela honra do homem. Não era admitido o adultério por parte das mulheres. O falso moralismo era preservado. Os crimes passionais eram bem retratados, a exemplo do Coronel Jesuíno Mendonça, que matou, a tiros, a sua esposa Dona Sinhazinha Guedes e o amante Osmundo Pimentel, defendendo o lema de que a honra do homem deve ser lavada com sangue.

Para o homem traído, popularmente o corno, eram usadas as seguintes frases feitas:

1. confraria de São Cornélio: irmandade de cornos (AMADO, 2000: 318)

2. ornamentar a cabeça: resulta em cabeça enfeitada ou ornamentada. (AMADO, 2000: 318)

3. boi manso - análogo ao boi de carro, isto é, o boi capado que não serve para reprodução, usado apenas para o trabalho. (AMADO, 2000: 323)

4. coberto de chifres: o mesmo que enfeitado, correlato com cabeça enfeitada. (AMADO, 2000: 314)

5. capão de terreiro: associado ao galo do terreiro que é capado, impossibilitado de manter relações sexuais com as galinhas. (AMADO, 2000: 196)

6. boi de carro: o mesmo que boi manso. (AMADO, 2000: 196)

7. iluminar a testa: correlato com ornamentar a cabeça. (AMADO, 2000: 107)

8. marido conformado: o homem traído de bom gênio, (corno conformado, passivo). (AMADO, 2000: 65)

 

As mulheres da vida

A obra amadiana é retratada pelas classes subalternas que fizeram a Bahia e o Brasil universais. Seus personagens se transformaram em personalidades tão características que fizeram a Bahia múltipla, a exemplo das mulheres como Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista. Vale enfatizar também os homens, como Vadinho, Nacib, Tonico Bastos, Coronel Ramiro, Horácio da Silveira, Juca Badaró entre tantos.

Como Jorge Amado retrata as mulheres da vida, tão discriminadas na sociedade elitista, machista e preconceituosa?

Elas são bem retratadas em todos os seus aspectos na cama, na cozinha, na sociedade.

No que se refere às classes subalternas, Jorge Amado descreve muito bem, estando do lado de dentro dos problemas vividos nas casas de puta, durante a sua juventude na cidade da Bahia.

A gente pulava o muro todos as noites e ia pras casas de putas, ia pras festas, para a rua Carlos Gomes, pro beco Maria Paz... eu fui amigado com uma rapariga chamada Benedita e então toda noite, à meia noite, pulava o muro ia ficar com ela.[2]

Amado, na sua vida, logo cedo, teve contato com os trabalhadores do cacau e com as mulheres da vida.

Eis a explicação para Jorge enfatizar tão bem as mulheres da vida.

A maneira de ver o mundo e a solidariedade com a vida foram as mulheres que me ensinaram. (AMADO, 1992)

Em Gabriela: cravo e canela, encontramos um vasto campo de expressões e palavras usadas com referência às mulheres da vida.

Em algumas passagens do romance, podemos mostrar uma diferença entre elas, por exemplo, as mulheres do Bataclan (famoso cabaré da cidade, administrado por Maria Machadão) eram tratadas pelos coronéis ou clientes por raparigas. Nas casas de mulheres públicas, (situadas nas ruas de canto, como a rua do Sapo) eram tratadas como putas, ou mulheres da vida.

Na pesquisa, encontramos:

1. lexemas - putas (AMADO, 2000: 183), quengas (AMADO, 2000: 120), manceba (AMADO, 2000: 105), negrinha (AMADO, 2000: 109), prostitutas (AMADO, 2000: 102), sirigaitas (AMADO, 2000: 52), caboclinhas (AMADO, 2000: 103), filial (AMADO, 2000: 103), cabrochas (AMADO, 2000: 103) etc.

Entre esses lexemas, pela análise semântica e a partir da leitura do romance, podemos observar uma estirpe entre essas mulheres:

Sirigaitas: mulher que se aproveita do homem para explorá-lo para ter boa vida. Não é dessas sirigaitas que pensam em cinema e em dança. (AMADO, 2000: 52)

Filial: a puta de cama e mesa”. A chamada rapariga de casa montada do Coronel Coriolano, Glória, que afrontava a sociedade com seus palpitosos seios. Na sua janela, a exibi-los, ornamentando a Praça São Sebastião.

Na casa onde residia Glória nunca deixara de ter o coronel de ter rapariga de mesa e cama. Por vezes, ao chegar da fazenda, era para a filial que se dirigia. (AMADO, 2000: 103)

Caboclinhas: mulheres humildes que ficavam nas casas das rameiras, ou seja, pobres. Preferia (...) as caboclinhas humildes nas casas das rameiras, nos povoados. (AMADO, 2000: 14)

Cabrochas: eram as mulheres no verdor da idade. Essas cabrochas, mulatinhas no verdor dos anos que o tratavam como se ele fosse um rei. (AMADO, 2000: 103)

As mulheres do Bataclan “faziam gatinhos ou seja, transavam com os coronéis do cacau e exportadores enquanto que as mulheres das casas das rameiras, ou de rua de canto atendiam aos trabalhadores das roças de cacau, jagunços, caixeiros - viajantes entre outros.

Neste contexto, percebemos uma diferença causada pela situação sócio-econômica e a relação de poder entre dominantes e dominados:

Bataclan - coronéis x casas de putas: classes subalternas.

Essa diferença, conseqüentemente, propicia também uma variação léxico-semântica no que se refere às mulheres, conforme descrevemos, como também as denominações para as casas, tais como, casas de mulheres públicas, casas de rameiras, casas de rua de canto, casas de putas.

Além dos lexemas analisados, encontramos juntas a eles ou formadas a partir deles, algumas perífrases léxicas metaforizando as mulheres, conforme nos mostram as passagens abaixo:

1. Mulheres públicas (AMADO, 2000: 91) - eram as mulheres que ficavam nas casas de prostituição, eram como propriedades dos freqüentadores.

2. Rameira da mais extração: era a mulher mais vulgar entre as rameiras. No romance ela se apresenta como se fosse uma calçadeira (SARAIVA, 1988: 43), aquela mulher que sai altas horas da madrugadas para procurar homens.

Podemos comprovar tal analogia com a seguinte passagem: fora visto tarde da noite por uma rameira da mais baixa extração. Ela vinha do Bate-Fundo.

3. Mulheres da vida (AMADO, 2000: 8): eram as prostitutas. Como fazer vida é manter relações sexuais por dinheiro, talvez seja essa a explicação para mulheres da vida. É comum encontrarmos também a perífrase mulher de vida fácil, não citada na obra analisada.

3. Mulher de má vida (AMADO, 2000: 297): a mesma carga semântica para as mulheres da vida, embora mais preconceituosa do que as demais.

Outras expressões correlatas com as anteriores: mulher dama (AMADO, 2000: 362) e mulher do cabaré (AMADO, 2000: 71). Esta era usada quando os coronéis faziam referência às mulheres que ficavam apenas no Bataclan, a exemplo de Risoleta, Zarolha, Mara entre outras.

Um dado importante neste estudo é que essas perífrases pejorativas e marginalizadoras, aos poucos, vão caindo em desuso pelos grapiúnas.

Isso nos leva a acreditar em duas hipóteses:

A chegada do progresso a Ilhéus, desaparecendo, aos poucos, os hábitos e os preconceitos feudais ali implantados em meio aos disparos dos revólveres e às ordens dos coronéis, e a figura de Gabriela, rompendo os padrões hipócritas da sociedade, representando a liberdade, como nos diz Amado: Com Gabriela, se inicia a libertação da mulher na zona do cacau.[3]

É impressionante o poder criativo da língua. A cada dia, o repertório lingüístico de uma comunidade modifica-se com o surgimento de novas palavras, o desaparecimento de outras ou com o ressurgimento de algumas em novas acepções.

Na dinâmica da língua, estão as frases feitas que se perpetuaram no léxico dos usuários, deixando aflorarem os aspectos geopolíticos, culturais e históricos das diversas camadas da população.

Neste contexto, inserimos a obra de Jorge Amado Gabriela cravo e canela que, vazada numa pluralidade lingüística, retrata a região grapiúna, sua cultura, política e sua gente, parte de uma Bahia plural.

Jorge Amado levou a cultura lingüística da região cacaueira, melhor dizendo, grapiúna, para fora dos limites da Bahia e do Brasil, facilitando a sua compreensão nas diversas partes do mundo.

A mesma globalização que nos traz muitas coisas de fora, deve e pode expandir as várias culturas das classes subalternas, integrando os universos vocabular e cultural da Bahia às várias partes do mundo.

Vivemos numa sociedade que estigmatiza o falar do povo. Os preconceituosos se esquecem de que a língua portuguesa, como todas as outras, foram formadas a partir do uso do povo.

É este linguajar popular e original que possibilitará ao estudioso do futuro a essência da memória do povo.

Assim nos fez Jorge Amado: descreveu tão bem o falar das classes populares, seus personagens transformam-se em cidadãos de carne e osso, brotam tão vivos e carismáticos das páginas dos livros que até nos parecem reais (ALTMAN, 2001: 92).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTMAN, Fábio; SILVA, Cândida. Viva o povo de Jorge. Época. São Paulo, n. 169.p. 90 –95. ago.2001.

AMADO, Jorge. Cantiga de amigo de Gabriela. In: ––. Gabriela Cravo e Canela: crônica de uma cidade do interior . 83ª ed. Rio de Janeiro: Record. 2001.

––––––. Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. Rio de Janeiro: Record. 2000.

––––––. Literatura comentada. Org. Álvaro Cardoso Gomes. Rio de Janeiro: Nova Cultural. 1981.

ANDRADE, Tadeu Luciano Siqueira, As Frases feitas no Nordeste: um estudo onomasiológico. Cadernos do CNLF, vol. VI, n° 07: Léxico-semântica e lexicologia. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2002, p. 58-66.

––––––. Gabriela: do cheiro do cravo e da canela, surge o sexo e o poder na Bahia grapiúna. Revista Entrelinhas. São Leopoldo (RS): Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Março de 2003, p. 68-72.

BRAGANÇA Jr Álvaro. Provérbios medievais em latim: O discurso da Dominação. Anais do Congresso Nacional de Lingüística e Filologia. UERJ/CIFEFIL, 1997. p. 234- 254.

BUENO, Francisco da Silveira. Tratado de Semântica Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1965.

GOMES, Álvaro Cardoso. Jorge Amado: Romancista de vagabundos e prostitutas. In.: –– Literatura Comentada. (Seleção de textos, notas, estudos histórico e crítico). Rio de Janeiro: Nova Cultural. 1981. p. 51.

Jorge Amado – 80 anos. Produção da TVE. Salvador, agosto de 1992. 1 fita de (vídeo 30 min) VHS.son. color.

LAPA, Mário Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1971.

LEMOS, Virgílio de. A Língua Portuguesa no Brasil. São Paulo: Livraria Progresso, 1959.

NUNES, Augusto. A eternidade de um criador. Época. São Paulo. n. 168. p. 88 -94. ago.2001.

SARAIVA, Gumercindo. A gíria brasileira dos marginais às classes de elite. Belo Horizonte: Itatiaia. 1988.

SILVA, José Pereira da. Considerações acerca da fraseologia. Revista Philologus. Rio de Janeiro, jan/abr. 1999, n° 13, p. 41-54.

––––––. Ensaios de Fraseologia. Rio do Janeiro: CIFEFIL/DIALOGRTS, 1998.

WEITZEL, Antonio Henrique. A Linguagem Popular. Boletim da Comissão Mineira de Folclore. Belo Horizonte, ago. 1988, N° 12, p. 13-16.

 


 

[1] Discurso repetido são as frases feitas na visão de Coseriu. Cf. PEREIRA, 1998: 13)

[2] À meia-noite, pulava o muro. AMADO, 2000: 21.

[3] AMADO, Jorge. Texto escrito especialmente para o Calendário Pirelli. 1971. A Bahia de Jorge Amado. Apud NICOLA, José de. Língua, Literatura e Redação. São Paulo: Scipione.8ª ed. 1998