O uso de dicionários bilíngües
italiano-português-italiano

por
estudantes de italiano L2

André Luís Yamaguti (USP)

INTRODUÇÃO

Não é rara, tampouco recente, a dificuldade do estudante de língua estrangeira (L2) emselecionar” no dicionário bilíngüe a palavra exata, dentre outras constituintes de uma determinada macro ou microestrutura (respectivamente, polissemia do tipo homonímia e polissemia stricto sensu), para expressar uma idéia ou até mesmo para traduzir uma simples palavra.

Essa dificuldade advém do fato de muitos dicionários bilíngües (sobretudo os pequenos de rápida consulta) não fornecerem definições claras dos verbetes e/ou sentenças que exemplifiquem o seu uso.

A atividade de codificação exige do estudante de L2 a habilidade necessária para encontrar no dicionário bilíngüe (nível de sistema) a melhorpalavra para comunicar um determinado vocábulo motivado por uma enunciação (nível de falar). Em outras palavras, pode-se dizer que o processo de atualização de um vocábulo em L2 é determinado por uma trajetória, necessariamente, que parte do nível de falar em L1 (motivação inicial de ato de fala), passa pelo nível de sistema de L2 (dicionário bilíngüe), e chega finalmente ao nível de falar em L2 (comunicação efetivamente atualizada).

De que modo, portanto, deve ser feita a codificação? O trabalho com o dicionário bilíngüe deve ser totalmente desprezado em função do monolíngüe? Afinal, como se consulta o dicionário?

 

TEMA E OBJETO DA PESQUISA

“O uso de dicionários bilíngües italiano-português-italiano por estudantes de italiano L2” tem por objeto de pesquisa a investigação de “erros” de estudantes de italiano L2 a partir de suas redações, amparadas por dicionários bilíngües.

Até que ponto o dicionário é o responsável por esseserros”? Como poderia ser conduzido o ensino de vocabulário/léxico? Como os estudantes devem lidar com o dicionário?

 

O Corpus

O corpus do trabalho é formado por três dicionários bilíngües italiano-português-italiano (identificados doravante por seu autor: Bonaccia, Polito e Rosa) e por sentenças recolhidas de redações de estudantes de italiano L2 do curso extracurricular de idiomas da Universidade de São Paulo.

Os dicionários escolhidos para a pesquisa são alguns dos mais utilizados pelos estudantes. Alguns fatores concorrem para tal preferência: o seu tamanho portátil; por serem, obviamente, bilíngües; por seu baixo custo/benefício; e por serem facilmente encontráveis no mercado.

As redações, por sua vez, foram recolhidas de um grupo de estudantes de nível médio, que corresponde a aproximadamente 3 anos de estudo. Nesse nível, espera-se dos alunos um domínio satisfatório do idioma em situações de codificação e decodificação.

 

A Polissemia e a Homonímia

Para evitar as divergências entre definições de diversos autores, ao longo deste trabalho serão adotadas as definições de HAENSCH, G.; WOLF, L.; ETTINGER, S.; WERNER, R. (s/ d.): “Para formular de modo exato, há polissemia quando a uma forma no plano da expressão correspondem vários sememas que, pelo menos, têm um sema em comum. Há homonímia quando esses sememas não contêm nem menos um sema comum”.

Ficam, portanto, descartadas as definições de polissemia e homonímia recorrentes à etimologia, à consciência lingüística dos falantes e à composição dos conteúdos das palavras.

Essas duas propriedades, indubitavelmente, são as principais causas da “indecisão” dos estudantes quando se deparam com inúmeros vocábulos, definições e exemplos. A dúvida é: para expressar X (L1) em L2, deve-se usar os correspondentes Y, Z ou W (L2)?

KROMANN (1990) explica: “When we find homonyms in language A, we will normally find two or more equivalents in language B”.

o quadro 1 ilustra as possíveis relações de polissemia e homonímia entre o italiano e o português:

Do português para o italiano

Do italiano para o português

Homonímia

Ø

I São = sano (salute); santo; sono (v. essere: io o noi).

I Sano (salute) = são.

II Santo = são.

III Sono (v. essere: io o noi) = são.

Ø

Homonímia

I Erva-doce = finocchio.

II Veado = finocchio.

I Finocchio = erva-doce; veado.

Polissemia

Ø

I Ferrado = ferrato; marchiato.

I Ferrato = ferrado.

II Marchiato = ferrado.

Ø

Polissemia

I Carro = macchina.

II Máquina = macchina.

I Macchina = carro; máquina.

Quadro 1

 

O Ensino do Léxico

O ensino de vocabulário esbarra em uma das premissas iniciais da Lexicologia: para estudar o léxico, é preciso considerar a unidade lexical como um nível de articulação morfo-sintáxico-semântico bastante complexo. Isso significa que o ensino do léxico deve atentar não apenas para o seu aspecto semântico, mas também para o morfológico e, principalmente, para o sintático.

A palavra, apesar de encerrar em si mesma seu sentido particular, para ser plenamente compreendida, deve ser contextualizada, porque a linguagem (e seu ensino) é ligada sempre a uma situação (GENOUVRIER E PEYTARD: 1974.). Essa contextualização situa a palavra a ser analisada numa sentença; e a sentença, num texto.

O contexto, além de fixar o sentido de uma palavra, resolve ambigüidades.

Ainda segundo GENOUVRIER E PEYTARD (op. cit.), “o estudo dos elementos do léxico deve basear-se simultaneamente no exame das relações semânticas e das relações sintáticas; isto significa que a tradicional lição de ‘vocabulário’ deve acionar, para atingir à plena eficácia não apenas o sentido dos elementos que constituem a frase, mas também o modo como esses elementos se combinam e agrupam entre si”.

Uma prova de que não limites entre o léxico e a gramática é o caso do sufixo adverbial -mente, que era uma palavra plena que se gramaticalizou (variação diacrônica).

Outra atividade importante no ensino do léxico é verificar a classe das palavras, pois, consciente ou inconscientemente, a nossa mente compara, classifica e agrupa as palavras.

Saussure afirmava que “os grupos formados por associação mental não se limitam a aproximar os termos que apresentam algo em comum; o espírito capta também a natureza das relações, que os unem em cada caso e cria com isso tantas séries associativas quantas relações diversas existam.”.

O ensino do léxico também deve compreender a noção de campo conceitual: “the translational unit is not identical with the word, but with the semantic combinations of words” (Op. cit. KROMANN ).

A correlação de campos conceituais entre L1 e L2 também alude à função e à classe das palavras: “l’équivalence ne s’arrête pas simplement au mot, mais englobe des unités plus vastes, qui doivent être reconnues comme telles, avec la même fonction et le même statut” (DUVAL: 1990).

Por fim, amparado por tais definições e teorias, o professor procede à prática efetiva do ensino do léxico, objetivando conduzir o estudante ao conhecimento do status lexical da palavra (distribuição da palavra na frase, inclusão nos conjuntos sinonímicos, nos campos lexicais e semânticos); trata-se, em suma, de trabalhar na linearidade sintagmática e no espaço paradigmático.

De GENOUVRIER E PEYTARD (op. cit.) colhem-se boas dicas:

a) dado que as palavras somente têm sentido em um determinado contexto (pelo envolvimento das coisas, gestos e demais palavras que as acompanham), o aprendizado do vocabulário faz-se portanto com base na audição da língua comum e na repetição oral das frases: a leitura poderá aparecer mais tarde, bem como o aprendizado da ortografia;

b) efetuar o levantamento de contextos e sua comparação para a elaboração de um quadro homonímico (ou polissêmico). É importante, além de verificar o sentido, verificar a classe/categoria gramatical. Os exercícios consistirão em completar o quadro e em construir frases onde cada palavra possa entrar, mas, além disso, as frases construídas serão fonte de comparações (comparações de frases semelhantes, por exemplo, como “Li o livro” e “Li um livro”) que realçarão a especificidade dos contextos.

Com relação à própria consulta ao dicionário, LAUFER (1993) sugere o uso integrado do dicionário bilíngüe e do monolíngüe: “finally, when learners try to use new words in writing, the words can be looked up in the bilingual dictionary first and then checked again in the monolingual one for the precise usage. The information provided in a good monolingual learner’s dictionary will complement and modify the translation/s in the bilingual one”.

 

Plano do Trabalho

Os dados (das redações e dos dicionários) são armazenados em fichas para que se tornem mais perceptíveis as diferenças entre as macro e microestruturas dos dicionários.

Cada ficha contém a entrada (isto é, o verbete a ser analisado), o contexto de onde foi retirado, o tipo de verbete (monossemêmico ou polissemêmico[1]) e a transcrição das respectivas entradas dos dicionários. Eis a seguir o modelo da ficha utilizada no trabalho:

Entrada

Contexto

Tipo de Verbete (monossemêmico/polissemêmico)

Definição Dicionarizada

 

Bonaccia

 

Polito

 

Rosa

Modelo da ficha

 

Conforme forem sendo analisadas as fichas, comentários ser-lhe-ão feitos.

As fichas foram agrupadas de acordo com a classe gramatical da entrada, a qual é dada em L1 porque retoma o provável percurso feito pelo estudante. Dessa forma, é possível verificar se a opção do estudante por tal solução é motivada por analogia fonética com o português (falso cognato), pela ordem das soluções, por deficiência informacional do dicionário, etc.

 

CONCLUSÃO

Conclusões preliminares demonstram que, de certa forma, a classe gramatical da entrada, por si , gera dificuldades diversas aos estudantes:

* Advérbios: há uma certa dificuldade em codificar, principalmente, locuções adverbiais, que estas são formadas por substantivos, advérbios e preposições;

* Conjunções: a entrada “se” é problemática pois agrega muitas funções em italiano;

* Preposições: a dificuldade de emprego das preposições deve-se, principalmente, ao fato de os dicionários pouco informarem sobre a regência verbal e nominal de suas entradas;

* Pronomes: novamente, o “se” homonímico português gera dúvidas;

* Nomes: além das diversidades semânticas, há o problema da regência nominal.

* Verbos: além das diversidades semânticas, há o problema da regência verbal.

As abreviações (em português ou em italiano) das classes gramaticais das palavras pouco (ou nada) parecem informar ao estudante: nesse caso, ou o estudante não as distingue com clareza ou esse tipo de informação é irrelevante para a escolha do vocábulo L2.

Os pequenos dicionários bilíngües pouca informação trazem sobre a classe gramatical das entradas, sua colocação, exemplos de uso, regência verbal/nominal e, principalmente, das diversidades semânticas constituintes da microestrutura.

A solução ideal para a questão da “insuficiência informacional” dos pequenos dicionário bilíngües pode ser resolvida da seguinte maneira: em um primeiro momento, usa-se o dicionário bilíngüe para codificar, em seguida, no mesmo dicionário, checa-se o seu correspondente em L2, e, finalmente, pode-se verificar o uso efetivo da palavra-ocorrência em um dicionário monolíngüe que contenha definições e exemplos.

Mais uma vez, é importante relembrar que o trabalho orientador do professor é fundamental para que os estudantes tenham ao menos noção das características monossêmicas, polissêmicas, homonímicas, hiperonímicas/hiponímicas e sinonímicas/paronímicas das palavras. Sem essa orientação, pouco útil será o mais completo dos dicionários bilíngües.

 

BIBLIOGRAFIA

BONACCIA, Andrea Benvenuta. (2002). Minidicionário de Italiano-Português, Português-Italiano. Erechim: Edelbra, 2002.

DUVAL, A. Nature et Valeur de la Traduction dans les Dictionnaires Bilingues. In: Cahiers de Lexicologie. Revue Internationale de Lexicologie et Lexicographie. N. 56-57 (1 et 2). Besançon: Jacques et Demontrond, 1990, p. 27-33.

GENOUVRIER, Emile & PEYTARD, Jean. Lingüística e Ensino do Português. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, IV Parte, p. 277-373.

HAENSCH, G.; WOLF, L.; ETTINGER, S.; WERNER, R. La Lexicografía. De la Lingüística Teórica a la Lexicografía Práctica. Madrid: Biblioteca Románica Hispánica/Editorial Gredos, [s/d;], p. 297-313.

KROMANN, H. P. Selection and Presentation of Translational Equivalents in Monofunctional and Bifunctional Dictionaries. In: Cahiers de Lexicologie. Revue Internationale de Lexicologie et Lexicographie. N. 56-57 (1 et 2). Besançon: Jacques et Demontrond, 1990, p. 17-26.

LAUFER, Batia. The Effect of Dictionary Definitions and Examples on the Use and Comprehension of New L2 Words. In: Cahiers de Lexicologie. Revue Internationale de Lexicologie et Lexicographie. N. 63 (2). Besançon: Jacques et Demontrond, 1993, p. 131-142.

POLITO, André Guilherme. (1998). Michaelis; Pequeno Dicionário Italiano-Português, Português-Italiano. 13ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

ROSA, Ubiratan. Minidicionário Rideel Italiano-Português-Italiano. São Paulo: Rideel, 2000.


 

[1] Para efeito de análise, foram considerados monossêmicos os vocábulos que, segundo cada dicionário, apresentavam somente um vocábulo correspondente em L2; os polissêmicos são os que apresentavam mais de um correspondente em L2 (até mesmo verbos ora transitivos ora pronominais foram considerados polissêmicos porque constituem dois vocábulos de uso distinto).