UM EXAME DOS UNIVERSOS LEXICAIS
NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO BRASILEIRO
Suzana Paulino Pinto
(PUC/SP)
Doroti Maroldi Guimarães (PUC/SP)
Atualmente, muitos estudos têm sido realizados sobre implícitos culturais de expressões lingüísticas, privilegiando-se a importância de se conhecer a identidade sócio-lingüístico-cultural do brasileiro.
Como contribuição a esses estudos, buscamos realizar uma pesquisa que tem por objetivo examinar os universos lexicais que possibilitem a definição das variações lingüísticas, de forma a caracterizar essa identidade.
Recorremos, para tanto, a construtos teóricos que embasam a Sociolingüística e a Análise Crítica do Discurso de vertente sócio-cognitivista, principalmente no que diz respeito ao léxico.
Segundo Preti (2000), a Sociolingüística está diretamente ligada ao fenômeno da comunicação. Nesse sentido, ao tratar das distinções contextuais, o autor afirma que estas “envolvem tudo que influencia o falante, como o tipo de ouvinte, o lugar em que o diálogo ocorre e as relações que unem os interlocutores”.
O autor retoma os estudos de J. G. Herculano de Carvalho, quando este diz que as variedades lingüísticas podem ser causadas por “fatores geográficos (dialetos ou falares próprios de influência regional), socioculturais (família, classe, padrão cultural, atividades habituais) e estilísticos (satisfação das necessidades cognitivas próprias de cada um de seus atos verbais, das necessidades que momentaneamente os condicionam ou determinam)”. Há, também, “aquelas dispostas em vários planos de uma só tradição histórica”.
Segundo o autor, as variedades lingüísticas, quando ligadas ao falante, podem ser por influência: da idade - no caso do locutor adulto, este se limita muito ao vocabulário e nem sempre é fácil de surpreender; e do ambiente em que o indivíduo vive - fundamental para a aquisição dos novos hábitos lingüísticos, independente do grau de escolaridade.
É importante considerarmos, também, os estudos realizados por Bagno (1999).
Esse autor analisa as diferentes formas de falar, como, por exemplo, Cráudia, praca, pranta, que são consideradas erradas; e frouxo, escravo, branco, que são consideradas corretas. Segundo ele, isso se deve a questões sociais e políticas: “As pessoas que dizem Cráudia, praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada ‘feia’, ‘pobre’, ‘carente’, quando na verdade é apenas diferente da língua na escola”.
O Documentário Variação Lingüística, dirigido por Ivo Branco, aponta que a língua é composta de normas que se refletem em todos os segmentos sociais.
Nesse sentido, uma norma é um modelo fixado por uma comunidade ou por um segmento social calcada por uma gramática.
Quanto às variações lingüísticas, de acordo com o Documentário, estas se devem, dentre outros fatores, às diferentes opções lexicais.
No que se refere ao léxico, é importante destacar os estudos realizados por Guilbert, retomados por Turazza (1996).
Nesses estudos, Guilbert trata a unidade lexical pela dualidade de funções que ela representa - elemento de designação e elemento morfológico,
Segundo Turazza, o sistema lingüístico é o elemento básico que permite mecanismos de montagem, desmontagem e remontagem de diferentes universos de discurso: lugar onde já se faz notar a superioridade de um todo em relação ao significado de suas partes.
A autora aponta, também, diferentes estratégias que operam em vários níveis ao mesmo tempo, usando informações incompletas e combinando caminhos indutivos e dedutivos para o processamento de informações.
Essas estratégias, de acordo com a autora, dependem do contexto interacional e social que são representados cognitivamente pelos alocutários; logo, dependem de intenções, interesses, objetivos, crenças, atitudes e opiniões.
No caso das estratégias culturais, estas são a ancoragem para uma ordenação conceptual diferente do mundo e da sociedade e, conseqüentemente, de diferentes estruturações lexicais e de diferentes objetos de referência.
Assim, a estrutura da superfície, as condições de coerência, o tema, tipos de discurso, situações pragmáticas e interacionais são afetadas pelo conhecimento cultural.
Segundo a autora, essas estratégias podem orientar-se tanto para o alocutário produtor, como para o alocutário produtor-leitor, pois um ou outro podem usar a informação sobre o saber cultural ou das condições de produção de um discurso,
Dessa forma, projeta, sobre o dito do outro, a informação de seu próprio conhecimento cultural, para buscar uma compreensão específica ou condições de recepção de um discurso.
Para Guilbert, a linguagem é uma atividade que compreende dois mecanismos complementares que determinam, por um lado, a utilização dos signos lingüísticos, enquanto elementos que representam a realidade extralingüística e a realidade de nossas representações mentais, e, por outro lado, determinam a utilização dos signos lingüísticos no eixo sintagmático de enunciados, lugar onde eles são inter-relacionados por regras de ordenação para a formação de frases.
Neste sentido, a palavra - embora seja desprovida de realidade lingüística, fora do contexto frástico - para a comunidade, ela compreende:
uma unidade de significação cujo feixe semântico se define pela experiência, pela cultura e pela ideologia de uma sociedade;
uma unidade morfológica, por compreender traços categoriais sintáticos que permitem estabelecer diferentes encadeamentos, estando, por isso, subordinada à forma que constitui a frase.
Assim, a frase é o suporte da palavra e este suporte aparece antes da palavra.
Ainda para Guilbert, o plano do conteúdo das unidades lexicais não é apenas caracterizado por traços categoriais (morfológicos, sintáticos e semânticos) - capazes de marcar compatibilidades e incompatibilidades para a atualização de estruturas profundas que se superficializam por regras de transformações, dentre as quais, as regras de projeção lexical - mas também se caracteriza por traços antropológicos, culturais e ideológicos.
Dentro desse quadro teórico que busca tratar a unidade lexical pela dualidade de funções que ela representa - elemento de designação e elemento morfológico - , Guilbert propõe um duplo aspecto para a abordagem da criatividade:
a) a existência da criação, segundo um modelo gerador;
b) a existência da criatividade pela reprodução social, através da oposição entre os componentes do discurso individual e os componentes do discurso social.
Turazza entende o código lingüístico e o universo lexical como sistemas limitados. Conseqüentemente, o vocabulário torna-se também limitado para designar uma infinidade de referentes que se remetem ao universo antropo-cultural-ideológico.
Nesse sentido, há uma relação desproporcional entre a dinâmica do processamento das informações e a limitação das regras e das unidades lingüísticas, disponíveis para os interlocutores expressarem a dinâmica do universo de significação.
Segundo a autora, a competência humana não se restringe a um «saber» sobre o código lingüístico; há «saberes» sobre códigos culturais e ideológicos.
Tendo em vista o objetivo da pesquisa, selecionamos, para a coleta de dados, um informante da cidade de São Paulo: José (pseudônimo).
Trata-se de um vendedor ambulante de bijuterias no bairro Água Branca.
É natural de Lorena (Estado de São Paulo) e mora em São Paulo há mais de 30 anos. Tem 50 anos, é solteiro, mora com a irmã, em uma pensão, no bairro “Perus”.
Optamos pelo vendedor ambulante por estar em contato direto com as pessoas e, dessa forma, ser possível verificar até que ponto essas pessoas podem influenciar a sua linguagem.
O fato de José não ser paulistano justifica-se por ser a maioria desses vendedores constituída de migrantes, principalmente nordestinos.
Considerando a proposta de nosso trabalho, torna-se relevante traçarmos um panorama de São Paulo para que possamos, de certa forma, entender os hábitos e costumes dos moradores dessa cidade e, além disso, a influência exercida sobre os migrantes.
São Paulo foi fundada em 1532, sendo a localização o fator que mais contribuiu para a sua fundação, pois a povoação do planalto resultava em um país escravista e agrícola.
Somente em 1711, após o sucesso das bandeiras com a descoberta das jazidas minerais é que ganha o status de cidade. Porém só se assumiu como tal quando houve maior fluxo comercial entre o porto e as fazendas.
A efetivação da cidade como Capital deveu-se, principalmente, ao café, pois este propiciou a criação de novas funções para a cidade, como, por exemplo, centro de transporte, entreposto humano e comercial, centro bancário e de negócios.
Dessa forma, passa a assumir um papel na divisão internacional do trabalho, levando à imigração de estrangeiros (italianos, portugueses, espanhóis, japoneses, alemães etc.).
Com a liberação de mão-de-obra para mercados regionais subdesenvolvidos ou inexistentes, formam-se fluxos migratórios, impondo-se, assim, a concentração populacional.
É na virada da década de 30 que o seu padrão de ocupação pelas classes trabalhadoras começa a mudar, quando São Paulo se aproxima do primeiro milhão de habitantes. (cf. Hughes, 1996)
Dando continuidade à pesquisa, os dados do informante foram coletados por meio da gravação de uma entrevista que fluiu espontaneamente como uma conversa.
Não houve, portanto, necessidade de seguirmos um roteiro previamente estabelecido, embora tenhamos partido de questões pessoais comuns, tais como nome (substituído por pseudônimo), idade, estado civil etc...
Procedemos à análise dos dados tendo por critérios:
faixa etária
linguagem de uma comunidade específica
comportamento durante a entrevista
E por item de análise:
os universos lexicais.
Os passos seguidos foram:
seleção das expressões lingüísticas mais representativas utilizadas pelo informante;
agrupamento dessas expressões pela freqüência de uso.
a) seleção das expressões lingüísticas mais representativas utilizadas pelos informantes:
parente
(“Moro com uma irmã; parente, né?”) ;
dona de casa
(“Ela tá desempregada?”/”Não. Ela é dona de casa”);
ganhá a vida
(“É o meio da gente ganhá... ganhá a vida né?”);
ginásio
(“Estudei até o ginásio só”);
serviço
(“...hoje em dia não tá tendo muito serviço para as pessoas...”);
perdi
(“... eu perdi meus pais...”)
(“Perdi meu pai, porque minha mãe mesmo eu perdi quando eu tava com 6 anos”);
faleceu
(“Aí meu pai faleceu, e eu não fui mais lá”);
agora
(“14 de março agora”);
né
(“O senhor carrega tudo isso?”/ “Todo dia.” / “Todo dia isso.”/ “Um peso né.”),
(“Moro com uma irmã; parente, né?”),
(“É o meio da gente ganhá... ganhá a vida né?”),
(“Vende... tem bastante saída, né?”),
(“O senhor paga aluguel?”/ “Pensão, né”),
(“A gente sente, né?...”),
(“Tá difícil.”/ “Pra todo mundo, né? E com esse governo que a gente tem aqui, né?” / “Com certeza”/ “Com certeza, né”);
a gente
(“Conseguir outro é difícil... pela idade que a gente tem”),
(“E com esse governo que a gente tem aqui, né?”);
estoquista
(“... eu era estoquista de loja...”);
bastante saída
(“Vende... tem bastante saída, né?”)
b) agrupamento dessas expressões pela freqüência de uso:
palavras não usuais: parente; dona de casa; ganhá a vida; ginásio; serviço; perdi; faleceu; agora; né; a gente;
palavras utilizadas por vendedores: estoquista; bastante saída.
Para melhor visualização, procedemos à elaboração de um quadro de freqüência de uso de determinadas expressões:
Quantidade | |
Palavras não usuais | 8 |
Né | 7 |
A gente | 2 |
Palavras utilizadas por vendedores | 2 |
Em seguida, organizamos os resultados obtidos da análise dos dados do informante.
Palavras não usuais são entendidas, neste trabalho, como expressões características de um determinado grupo, quer pela faixa etária (acima de 30 anos), quer pela época, quer pela classe social, quer pelo nível de escolaridade:
parente:
pessoa que não faz parte da família composta por pai, mãe e filhos (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos de pessoas com idade mais avançada);
dona de casa
aquela que cuida da casa como opção e não como a que está desempregada (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos de pessoas com idade mais avançada);
ganhá a vida
trabalhar (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos com baixo poder aquisitivo);
ginásio
hoje “Ensino Fundamental” (palavra utilizada por pessoas que desconhecem a substituição dessa palavra);
serviço
trabalho (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos de pessoas com idade mais avançada e com baixo poder aquisitivo;
perdi
fiquei sem aquela pessoa, pois ela morreu (expressão utilizada por grupos de pessoas com idade mais avançada e com baixo poder aquisitivo);
faleceu
morreu (expressão utilizada por grupos de pessoas com idade mais avançada e com baixo poder aquisitivo);
agora
muito próximo; não exatamente neste momento (expressão utilizada por grupos de pessoas com idade mais avançada)
Há repetição do “né” - marca de oralidade - que faz parte do uso efetivo da língua no Brasil.
Destaca-se, ainda, a expressão “a gente”, que também faz parte do uso efetivo da língua, significando muitas pessoas.
Há, ainda, o uso de vocabulário condizente com a profissão:
estoquista
aquele que trabalha com estoque de mercadoria
bastante saída
expressão utilizada por pessoas que trabalham com vendas.
Diante desses resultados, chegamos a algumas conclusões que nos pareceram relevantes.
José, no decorrer da entrevista, demonstrava um pouco de pressa devido à necessidade de continuar trabalhando, embora prestasse atenção ao que estava sendo perguntado.
Tal atitude pode ser justificada pelos hábitos e costumes dos paulistanos, que têm a ver com a própria história da cidade.
Embora José tenha nascido em Lorena, no Vale do Paraíba, Estado de São Paulo, o fato de morar na cidade de São Paulo há mais de 30 anos fez com que adquirisse uma das características do paulistano: a pressa.
Vale lembrar que São Paulo é conhecida como uma cidade agitada, movimentada, que amanhece trabalhando etc.
Os resultados indicaram, também, que vários fatores contribuem para a definição das variações lingüísticas, tais como: faixa etária, época, profissão, classe social, migração e nível de escolaridade.
José utilizou-se de palavras referentes ao grupo da idade dele e também do grupo social a que pertence. Dificilmente encontramos jovens que se utilizam de tais palavras.
Ele utilizou, também, alguns termos relacionados às profissões que já exerceu.
Como afirma Bagno (1999), “tudo vai depender de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que efeito...”.
Nesse sentido, podemos dizer que a identidade do brasileiro decorre de diversidades sócio-culturais, ou seja, diferentes práticas sociais discursivas, definidas por universos lexicais, das quais decorrem as variações lingüísticas; e que a repetição de expressões lingüísticas trazem representadas, em língua, traços da identidade cultural do brasileiro.
Referências bibliográficas
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
DOCUMENTÁRIO. Variação Linguística. Direção de Ivo Branco.
FONSECA, Maria Stella & NEVES, Moema F. (orgs). Sociolingüística. Rio de Janeiro, Eldorado, 1974, p. 99-118.
HUGHES, Pedro Javier Aguerre. A cidade dividida: um estudo sobre urbanização e mercado de trabalho industrial na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1996.
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala. São Paulo, Edusp, 2000.
TURAZZA, Jeni Silva. Léxico e criatividade. São Paulo, Plêiade, 1996.
UM EXAME DOS UNIVERSOS LEXICAIS
NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO BRASILEIRO
Suzana Paulino Pinto (PUC/SP)
Doroti Maroldi Guimarães (PUC/SP)
Atualmente, muitos estudos têm sido realizados sobre implícitos culturais de expressões lingüísticas, privilegiando-se a importância de se conhecer a identidade sócio-lingüístico-cultural do brasileiro.
Como contribuição a esses estudos, buscamos realizar uma pesquisa que tem por objetivo examinar os universos lexicais que possibilitem a definição das variações lingüísticas, de forma a caracterizar essa identidade.
Recorremos, para tanto, a construtos teóricos que embasam a Sociolingüística e a Análise Crítica do Discurso de vertente sócio-cognitivista, principalmente no que diz respeito ao léxico.
Segundo Preti (2000), a Sociolingüística está diretamente ligada ao fenômeno da comunicação. Nesse sentido, ao tratar das distinções contextuais, o autor afirma que estas “envolvem tudo que influencia o falante, como o tipo de ouvinte, o lugar em que o diálogo ocorre e as relações que unem os interlocutores”.
O autor retoma os estudos de J. G. Herculano de Carvalho, quando este diz que as variedades lingüísticas podem ser causadas por “fatores geográficos (dialetos ou falares próprios de influência regional), socioculturais (família, classe, padrão cultural, atividades habituais) e estilísticos (satisfação das necessidades cognitivas próprias de cada um de seus atos verbais, das necessidades que momentaneamente os condicionam ou determinam)”. Há, também, “aquelas dispostas em vários planos de uma só tradição histórica”.
Segundo o autor, as variedades lingüísticas, quando ligadas ao falante, podem ser por influência: da idade - no caso do locutor adulto, este se limita muito ao vocabulário e nem sempre é fácil de surpreender; e do ambiente em que o indivíduo vive - fundamental para a aquisição dos novos hábitos lingüísticos, independente do grau de escolaridade.
É importante considerarmos, também, os estudos realizados por Bagno (1999).
Esse autor analisa as diferentes formas de falar, como, por exemplo, Cráudia, praca, pranta, que são consideradas erradas; e frouxo, escravo, branco, que são consideradas corretas. Segundo ele, isso se deve a questões sociais e políticas: “As pessoas que dizem Cráudia, praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada ‘feia’, ‘pobre’, ‘carente’, quando na verdade é apenas diferente da língua na escola”.
O Documentário Variação Lingüística, dirigido por Ivo Branco, aponta que a língua é composta de normas que se refletem em todos os segmentos sociais.
Nesse sentido, uma norma é um modelo fixado por uma comunidade ou por um segmento social calcada por uma gramática.
Quanto às variações lingüísticas, de acordo com o Documentário, estas se devem, dentre outros fatores, às diferentes opções lexicais.
No que se refere ao léxico, é importante destacar os estudos realizados por Guilbert, retomados por Turazza (1996).
Nesses estudos, Guilbert trata a unidade lexical pela dualidade de funções que ela representa - elemento de designação e elemento morfológico,
Segundo Turazza, o sistema lingüístico é o elemento básico que permite mecanismos de montagem, desmontagem e remontagem de diferentes universos de discurso: lugar onde já se faz notar a superioridade de um todo em relação ao significado de suas partes.
A autora aponta, também, diferentes estratégias que operam em vários níveis ao mesmo tempo, usando informações incompletas e combinando caminhos indutivos e dedutivos para o processamento de informações.
Essas estratégias, de acordo com a autora, dependem do contexto interacional e social que são representados cognitivamente pelos alocutários; logo, dependem de intenções, interesses, objetivos, crenças, atitudes e opiniões.
No caso das estratégias culturais, estas são a ancoragem para uma ordenação conceptual diferente do mundo e da sociedade e, conseqüentemente, de diferentes estruturações lexicais e de diferentes objetos de referência.
Assim, a estrutura da superfície, as condições de coerência, o tema, tipos de discurso, situações pragmáticas e interacionais são afetadas pelo conhecimento cultural.
Segundo a autora, essas estratégias podem orientar-se tanto para o alocutário produtor, como para o alocutário produtor-leitor, pois um ou outro podem usar a informação sobre o saber cultural ou das condições de produção de um discurso,
Dessa forma, projeta, sobre o dito do outro, a informação de seu próprio conhecimento cultural, para buscar uma compreensão específica ou condições de recepção de um discurso.
Para Guilbert, a linguagem é uma atividade que compreende dois mecanismos complementares que determinam, por um lado, a utilização dos signos lingüísticos, enquanto elementos que representam a realidade extralingüística e a realidade de nossas representações mentais, e, por outro lado, determinam a utilização dos signos lingüísticos no eixo sintagmático de enunciados, lugar onde eles são inter-relacionados por regras de ordenação para a formação de frases.
Neste sentido, a palavra - embora seja desprovida de realidade lingüística, fora do contexto frástico - para a comunidade, ela compreende:
uma unidade de significação cujo feixe semântico se define pela experiência, pela cultura e pela ideologia de uma sociedade;
uma unidade morfológica, por compreender traços categoriais sintáticos que permitem estabelecer diferentes encadeamentos, estando, por isso, subordinada à forma que constitui a frase.
Assim, a frase é o suporte da palavra e este suporte aparece antes da palavra.
Ainda para Guilbert, o plano do conteúdo das unidades lexicais não é apenas caracterizado por traços categoriais (morfológicos, sintáticos e semânticos) - capazes de marcar compatibilidades e incompatibilidades para a atualização de estruturas profundas que se superficializam por regras de transformações, dentre as quais, as regras de projeção lexical - mas também se caracteriza por traços antropológicos, culturais e ideológicos.
Dentro desse quadro teórico que busca tratar a unidade lexical pela dualidade de funções que ela representa - elemento de designação e elemento morfológico - , Guilbert propõe um duplo aspecto para a abordagem da criatividade:
a) a existência da criação, segundo um modelo gerador;
b) a existência da criatividade pela reprodução social, através da oposição entre os componentes do discurso individual e os componentes do discurso social.
Turazza entende o código lingüístico e o universo lexical como sistemas limitados. Conseqüentemente, o vocabulário torna-se também limitado para designar uma infinidade de referentes que se remetem ao universo antropo-cultural-ideológico.
Nesse sentido, há uma relação desproporcional entre a dinâmica do processamento das informações e a limitação das regras e das unidades lingüísticas, disponíveis para os interlocutores expressarem a dinâmica do universo de significação.
Segundo a autora, a competência humana não se restringe a um «saber» sobre o código lingüístico; há «saberes» sobre códigos culturais e ideológicos.
Tendo em vista o objetivo da pesquisa, selecionamos, para a coleta de dados, um informante da cidade de São Paulo: José (pseudônimo).
Trata-se de um vendedor ambulante de bijuterias no bairro Água Branca.
É natural de Lorena (Estado de São Paulo) e mora em São Paulo há mais de 30 anos. Tem 50 anos, é solteiro, mora com a irmã, em uma pensão, no bairro “Perus”.
Optamos pelo vendedor ambulante por estar em contato direto com as pessoas e, dessa forma, ser possível verificar até que ponto essas pessoas podem influenciar a sua linguagem.
O fato de José não ser paulistano justifica-se por ser a maioria desses vendedores constituída de migrantes, principalmente nordestinos.
Considerando a proposta de nosso trabalho, torna-se relevante traçarmos um panorama de São Paulo para que possamos, de certa forma, entender os hábitos e costumes dos moradores dessa cidade e, além disso, a influência exercida sobre os migrantes.
São Paulo foi fundada em 1532, sendo a localização o fator que mais contribuiu para a sua fundação, pois a povoação do planalto resultava em um país escravista e agrícola.
Somente em 1711, após o sucesso das bandeiras com a descoberta das jazidas minerais é que ganha o status de cidade. Porém só se assumiu como tal quando houve maior fluxo comercial entre o porto e as fazendas.
A efetivação da cidade como Capital deveu-se, principalmente, ao café, pois este propiciou a criação de novas funções para a cidade, como, por exemplo, centro de transporte, entreposto humano e comercial, centro bancário e de negócios.
Dessa forma, passa a assumir um papel na divisão internacional do trabalho, levando à imigração de estrangeiros (italianos, portugueses, espanhóis, japoneses, alemães etc.).
Com a liberação de mão-de-obra para mercados regionais subdesenvolvidos ou inexistentes, formam-se fluxos migratórios, impondo-se, assim, a concentração populacional.
É na virada da década de 30 que o seu padrão de ocupação pelas classes trabalhadoras começa a mudar, quando São Paulo se aproxima do primeiro milhão de habitantes. (cf. Hughes, 1996)
Dando continuidade à pesquisa, os dados do informante foram coletados por meio da gravação de uma entrevista que fluiu espontaneamente como uma conversa.
Não houve, portanto, necessidade de seguirmos um roteiro previamente estabelecido, embora tenhamos partido de questões pessoais comuns, tais como nome (substituído por pseudônimo), idade, estado civil etc...
Procedemos à análise dos dados tendo por critérios:
faixa etária
linguagem de uma comunidade específica
comportamento durante a entrevista
E por item de análise:
os universos lexicais.
Os passos seguidos foram:
seleção das expressões lingüísticas mais representativas utilizadas pelo informante;
agrupamento dessas expressões pela freqüência de uso.
a) seleção das expressões lingüísticas mais representativas utilizadas pelos informantes:
parente
(“Moro com uma irmã; parente, né?”) ;
dona de casa
(“Ela tá desempregada?”/”Não. Ela é dona de casa”);
ganhá a vida
(“É o meio da gente ganhá... ganhá a vida né?”);
ginásio
(“Estudei até o ginásio só”);
serviço
(“...hoje em dia não tá tendo muito serviço para as pessoas...”);
perdi
(“... eu perdi meus pais...”)
(“Perdi meu pai, porque minha mãe mesmo eu perdi quando eu tava com 6 anos”);
faleceu
(“Aí meu pai faleceu, e eu não fui mais lá”);
agora
(“14 de março agora”);
né
(“O senhor carrega tudo isso?”/ “Todo dia.” / “Todo dia isso.”/ “Um peso né.”),
(“Moro com uma irmã; parente, né?”),
(“É o meio da gente ganhá... ganhá a vida né?”),
(“Vende... tem bastante saída, né?”),
(“O senhor paga aluguel?”/ “Pensão, né”),
(“A gente sente, né?...”),
(“Tá difícil.”/ “Pra todo mundo, né? E com esse governo que a gente tem aqui, né?” / “Com certeza”/ “Com certeza, né”);
a gente
(“Conseguir outro é difícil... pela idade que a gente tem”),
(“E com esse governo que a gente tem aqui, né?”);
estoquista
(“... eu era estoquista de loja...”);
bastante saída
(“Vende... tem bastante saída, né?”)
b) agrupamento dessas expressões pela freqüência de uso:
palavras não usuais: parente; dona de casa; ganhá a vida; ginásio; serviço; perdi; faleceu; agora; né; a gente;
palavras utilizadas por vendedores: estoquista; bastante saída.
Para melhor visualização, procedemos à elaboração de um quadro de freqüência de uso de determinadas expressões:
Quantidade | |
Palavras não usuais | 8 |
Né | 7 |
A gente | 2 |
Palavras utilizadas por vendedores | 2 |
Em seguida, organizamos os resultados obtidos da análise dos dados do informante.
Palavras não usuais são entendidas, neste trabalho, como expressões características de um determinado grupo, quer pela faixa etária (acima de 30 anos), quer pela época, quer pela classe social, quer pelo nível de escolaridade:
parente:
pessoa que não faz parte da família composta por pai, mãe e filhos (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos de pessoas com idade mais avançada);
dona de casa
aquela que cuida da casa como opção e não como a que está desempregada (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos de pessoas com idade mais avançada);
ganhá a vida
trabalhar (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos com baixo poder aquisitivo);
ginásio
hoje “Ensino Fundamental” (palavra utilizada por pessoas que desconhecem a substituição dessa palavra);
serviço
trabalho (expressão utilizada por pessoas pertencentes a grupos de pessoas com idade mais avançada e com baixo poder aquisitivo;
perdi
fiquei sem aquela pessoa, pois ela morreu (expressão utilizada por grupos de pessoas com idade mais avançada e com baixo poder aquisitivo);
faleceu
morreu (expressão utilizada por grupos de pessoas com idade mais avançada e com baixo poder aquisitivo);
agora
muito próximo; não exatamente neste momento (expressão utilizada por grupos de pessoas com idade mais avançada)
Há repetição do “né” - marca de oralidade - que faz parte do uso efetivo da língua no Brasil.
Destaca-se, ainda, a expressão “a gente”, que também faz parte do uso efetivo da língua, significando muitas pessoas.
Há, ainda, o uso de vocabulário condizente com a profissão:
estoquista
aquele que trabalha com estoque de mercadoria
bastante saída
expressão utilizada por pessoas que trabalham com vendas.
Diante desses resultados, chegamos a algumas conclusões que nos pareceram relevantes.
José, no decorrer da entrevista, demonstrava um pouco de pressa devido à necessidade de continuar trabalhando, embora prestasse atenção ao que estava sendo perguntado.
Tal atitude pode ser justificada pelos hábitos e costumes dos paulistanos, que têm a ver com a própria história da cidade.
Embora José tenha nascido em Lorena, no Vale do Paraíba, Estado de São Paulo, o fato de morar na cidade de São Paulo há mais de 30 anos fez com que adquirisse uma das características do paulistano: a pressa.
Vale lembrar que São Paulo é conhecida como uma cidade agitada, movimentada, que amanhece trabalhando etc.
Os resultados indicaram, também, que vários fatores contribuem para a definição das variações lingüísticas, tais como: faixa etária, época, profissão, classe social, migração e nível de escolaridade.
José utilizou-se de palavras referentes ao grupo da idade dele e também do grupo social a que pertence. Dificilmente encontramos jovens que se utilizam de tais palavras.
Ele utilizou, também, alguns termos relacionados às profissões que já exerceu.
Como afirma Bagno (1999), “tudo vai depender de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que efeito...”.
Nesse sentido, podemos dizer que a identidade do brasileiro decorre de diversidades sócio-culturais, ou seja, diferentes práticas sociais discursivas, definidas por universos lexicais, das quais decorrem as variações lingüísticas; e que a repetição de expressões lingüísticas trazem representadas, em língua, traços da identidade cultural do brasileiro.
Referências bibliográficas
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
DOCUMENTÁRIO. Variação Linguística. Direção de Ivo Branco.
FONSECA, Maria Stella & NEVES, Moema F. (orgs). Sociolingüística. Rio de Janeiro, Eldorado, 1974, p. 99-118.
HUGHES, Pedro Javier Aguerre. A cidade dividida: um estudo sobre urbanização e mercado de trabalho industrial na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1996.
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala. São Paulo, Edusp, 2000.
TURAZZA, Jeni Silva. Léxico e criatividade. São Paulo, Plêiade, 1996.