A discursividade: explícitos e implícitos
Maria Antonia da Costa Lobo (UCB e UniverCidade)
Expressar-se adequadamente, através da linguagem verbal, é recorrer a hábitos adquiridos, exigindo de cada indivíduo um feixe bem organizado desses hábitos.
A aceitação de hábitos gera também aquela de reflexo e ação desencadeada por circunstâncias motivadoras em restrita relação com o instante de exteriorização de expressividade.
Todavia, questionamentos permanecem: por que nem sempre essa expressividade ocorre direta ou declaradamente, com tanta necessidade de apoio retórico ou de mecanismos evasivos? Por que se procura cifrar um enunciado, ao preço de um excesso de trabalho interpretativo, no que se afirma entre as linhas e nos subentendidos?
Explícitos e implícitos: uma tênue fronteira
Toda unidade de conteúdo, capaz de ser decodificada, possui, necessariamente, no enunciado, um suporte lingüístico qualquer.
Esse suporte possui na própria superfície estrutural uma unidade de conteúdo - simples ou não - que envolve aspectos lexicais, sintáticos, semânticos e pragmáticos.
Tem ele também uma ancoragem, caracterizadora de todos os conteúdos explícitos, mas igualmente de certos tipos de conteúdos implícitos (pressupostos e subentendidos).
Esses conteúdos implícitos são resultantes de um cálculo composicional que aplica certos dados extra-enunciativos a certas informações infra-enunciativas.
Onde está, enfim, essa fronteira? De que modo a delimitar?
Exemplos funcionam como excelentes auxiliares nessa tarefa.
No seguinte enunciado: A justiça decidiu, o que, à primeira vista, parece estar afirmado claramente, em verdade suscita dúvidas naquele alocutário que desejar ou necessitar de uma informação que está aí codificada. Basta que ele indague: Quem decidiu? E a resposta virá imediatamente da própria assertiva: A Justiça.
Justiça tem o papel de agente e sujeito gramatical na estrutura sintática. Permite uma rápida análise da estrutura de superfície em uma configuração semântica simples.
Do ponto de vista gramatical e sintático tudo é muito simplório e parece muito lógico. A retórica é perfeita. A metonímia está em ação. Mas...semanticamente: Quem é Justiça? Decisões são tomadas por seres humanos (racionais).
Que implícito é este? Que antropônimo deve substituir o termo Justiça? Qual a razão desse recurso metonímico?
Percebe-se, então, uma estratégia retórica usada para aumentar a eficácia do discurso e a interação comunicativa.
Estratégia usada para que se percebam, da melhor maneira possível, os objetivos da interação verbal, tais como: compreensão, aceitação do discurso e sucesso do ato de expressão (fala ou escrita).
Enunciados desse gênero, em geral, são bastante breves e verificados, na maior parte, no uso lingüístico cotidiano. Banais, na aparência, e amplamente utilizados, contudo são facilmente perceptíveis e identificáveis por um conhecedor da Língua Portuguesa.
Ora, os conteúdos ancorados diretamente possuem aí um ou vários suportes significantes específicos inscritos na seqüência à qual se ligam.
Aqueles ancorados indiretamente se enxertam sobre um ou mais conteúdos hiperordenados, sem possuírem significante próprio, salvo a considerar este como virtualmente presente, mas oculto na estrutura superficial, isto é, elidido.
É sabido que discursos agem, em grande parte, subrepticiamente, mas de modo eficaz, graças a passageiros clandestinos presentes nas mensagens - os conteúdos implícitos, levando-os a inferências, nas quais atuam pressupostos e subentendidos.
Cabe ressaltar que qualquer proposição implícita passível de extração de um enunciado e de dedução do respectivo conteúdo literal, combinando informações de estatuto variável (interna ou externamente) constitui uma inferência.
Surge, então, um questionamento: de que modo levar alguém a pensar em alguma coisa, se essa coisa não é dita (afirmada ou expressa) e integra em alguma parte um enunciado?
Querer dizer é, para um enunciado, significar. Mas querer dizer (afirmar/expressar) é para um enunciador ter a intenção deliberada de transmitir a outrem uma informação.
Ora, se pressupostos não constituem, em princípio, o objeto essencial da mensagem, são, contudo, veiculados pelo enunciado, no qual se acham intrínseca e incontestavelmente inscritos.
Em suma, os pressupostos são ditos, sem que se lhes queira dizer.
Uma afirmação do gênero Joaquim deixou de fumar relaciona-se a: atualmente, ele não fuma mais; algum dia fumou ou era hábito dele fumar.
O conteúdo é enunciado explicitamente (posto), à medida que representa o anúncio, é o objeto confesso da enunciação.
Ora, os pressupostos se não constituem, em princípio, o objeto essencial da mensagem, são veiculados pelo enunciado do qual são depreendidos.
Em João parou de jogar, a ação expressa pelo verbo parar veicula um pressuposto (lexical) na base do qual se edifica a inferência pressuposta (e pela abreviação, o pressuposto): antes, João jogava.
Pressupostos são unidades de conteúdo que devem ser necessariamente verdadeiras para que o enunciado que as contém possa ser a ele atribuído um valor de verdade.
Uma estrutura, cujo(s) pressuposto(s) seja(m) julgado(s) falso(s), não produz o mesmo efeito que uma outra na qual o(s) pressuposto(s) seja(m) considerado(s) verdadeiro(s).
No primeiro caso, rejeita-se ou refuta-se; no segundo, a aceitação do valor de verdade será plena.
Na realidade, a um mesmo enunciado se ligam diferentes níveis hierarquizados de pressupostos, cujo caráter informativo não é em si indeterminável, mas que estão subordinados uns aos outros, quanto à respectiva informação relativa.
A partir, por exemplo, da estrutura Minha filha comprou um Jaguar, é possível pressupor:
(1) Minha filha comprou um carro de corrida;
(2) Minha filha comprou um carro;
(3) Minha filha comprou qualquer coisa;
(4) Minha filha está em condições (idade, manutenção) de comprar um carro? E
(5) Eu tenho uma filha.
CONCLUSÃO
O recurso ao sentido é indispensável ao estudo da Língua.
Conforme afirmou Baylon & Fabre “O essencial de uma Língua é o respectivo poder de veicular o sentido”.
Estudos lingüísticos não devem estar restritos à análise gramatical. Há uma variação social no uso da Língua (um dos campos de estudo da Sociolingüística).
Os usuários de uma Língua podem ser muito diferentes. Podem dispor de conhecimento, crenças e opiniões igualmente diferentes, ter diferentes papéis sociais e ter níveis de escolaridade também diferentes.
Estratégias discursivas existem. E a estilística (retórica) auxilia o estabelecimento de um discurso dentro de um contexto interacional. Em relação à Retórica, por exemplo, o desafio é o seguinte: de que modo compreender o mecanismo que cria um mundo de representação ao qual muitos se tornam alheios?
As proposições discursivas encadeiam-se e há um modo como elas adquirem ou podem adquirir os mais complexos significados.
Daí a possibilidade de tirar de um enunciado conteúdos que não constituem, a priori, o objeto verdadeiro da enunciação, mas que aparecem através dos conteúdos explícitos. É o domínio do implícito.
Os (conteúdos) implícitos (pressupostos e subentendidos) têm em comum a propriedade de não constituírem, em princípio, o verdadeiro objeto do dizer, enquanto os (conteúdos) explícitos correspondem, sempre, ao objeto essencial da mensagem a ser transmitida ou são dotados da maior pertinência comunicativa.
É importante ressaltar que a Língua é uma atividade, um processo ininterrupto de construção que é materializado sob a forma de atos de fala ou de discurso.