CONSTRUÇÕES DE TÓPICO
NO
PORTUGUÊS BRASILEIRO
FALA POPULAR

Sérgio Leitão Vasco (UFRJ)

 

INTRODUÇÃO

As construções de tópico (doravante CTs) são estruturas sintáticas de observação corrente na língua falada. Embora não sejam estruturas novas seu emprego é evidenciado em estudos diacrônicos —, tais construções foram reconhecidas como tal e passaram a ser objeto de interesse da lingüística apenas nas últimas décadas (cf. Li & Thompson, 1976). Em língua portuguesa, igualmente, importantes trabalhos foram desenvolvidos com enfoque em tais estruturas sintáticas, a partir do importante trabalho produzido por Pontes (1987), uma compilação de trabalhos desenvolvidos pela autora entre 1980 e 1982 e apresentados em Congressos de Lingüística no Brasil e no exterior. Esse trabalho abriu caminho para diversos outros, tanto teóricos quanto empíricos, trabalhos que se fazem relevantes, pois as CTs, embora sejam comuns no português do Brasil (PB), são apenas tratadas pela gramática tradicional como recursos de estilo ou como vícios de linguagem.

 

OBJETIVOS

A ocorrência das CTs na oralidade culta de brasileiros e portugueses foi estudada em Dissertação de Mestrado (Vasco, 1999), trabalho que teve por objetivo descrever os diferentes tipos de CTs nas duas amostras investigando as diferenças existentes entre as modalidades orais dos dois países e relacionando-as a um afastamento entre os dois sistemas lingüísticos.

Da tipologia de CTs apresentada na citada pesquisa, o objetivo do presente trabalho é o estudo das construções com deslocamento à esquerda de sujeito, deslocamento à esquerda de objeto direto e topicalização de objeto direto, agora no português popular falado no Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo preliminar com vistas ao desenvolvimento de Tese de Doutorado sobre o tema.

Fazendo comparação entre as CTs do PB culto e do português europeu (PE) culto e as construções do PB popular, investiga-se

a) se as tendências observadas nas construções do PB popular acompanham as constatadas no PB culto em comparação com o PE;

b) se essas tendências se observam mais fortes na variedade popular do PB em comparação com a variedade culta por ser aquela menos sujeita a pressões normativas.           

Para a realização desta pesquisa, foram estudadas transcrições de entrevistas com 7 informantes que constituem parte do acervo constituído pelo projeto PEUL-RJ em 1999.

 

O OBJETO

Como referido, a presente pesquisa tem por objeto as CTs com deslocamento à esquerda de sujeito (DESuj), deslocamento à esquerda de objeto direto (DEOD) e topicalização de objeto direto (TOPOD).

Nas construções com DE, há vínculo sintático entre tópico e um elemento na sentença-comentário. Nas duas CTs com DE consideradas neste trabalho, esse elemento exerce função de sujeito (exemplos 1, 2 e 3) ou objeto direto (4, 5 e 6):

(01)            “... é muito importante, porque esse pessoal do <mei...> do meio artístico, eles se acham o máximo.”[1]

(02)            “Porque eu quando não quiser mais viver, eu tenho o direito de acabar com a minha vida.”

(03)            “RECUPERAÇÃO, isso não existe.”

(04)            “As comidas, ela faz umas comidas, umas comidas diferentes né?”

(05)            “A minha geladeira branca, eles abriram a geladeira...”

(06)            “Planos, eu não faço planos.”

Na construção com TOPOD, não retomada do tópico, observando-se vínculo entre o elemento inicial e uma posição de objeto direto vazia no comentário (exemplos 7, 8 e 9):

(07)            “... e eu não vi uma criança de um ano e onze meses falando inglês, todas as capitais do mundo a criança sabia ___.”

(08)            “... muita coisa, muita besteira que eles pedem, tu nunca na vida prática vai usar ___, né ?”

(09)            “Os problemas da cidade, ninguém resolve ___ minha filha, ninguém resolve!”

 

RESULTADOS

Apenas para uma visão geral acerca da distribuição das construções investigadas neste trabalho nas três modalidades do português, apresenta-se a Tabela 1 abaixo[2]:

                               

Tabela 1: Distribuição das CTs com DESuj, DEOD e TOPOD em PB culto, PE culto e PB popular

 

PB

culto

PE

culto

PB

pop

 

%

%

%

DESuj

95

57,9

7

28

75

47,8

DEOD

11

6,7

10

40

16

10,2

TOPOD

58

35,4

8

32

66

42

Total

164

100

25

100

157

100

Observa-se, inicialmente, um maior destaque de construções com DESuj nas duas variedades do PB (57,9% e 47,8%), se comparadas ao PE (28%). Nas construções com objeto direto, destacam-se na modalidade lusa do português CTs com DEOD (40%), estruturas de ocorrência inexpressiva no PB, tanto culto (6,7%) como popular (10,2%); nas variedades brasileiras, são de ocorrência mais comum construções com TOPOD (no PB culto, 35,4%, e no popular, 42% do total, considerando-se as três formas de construções estudadas).

Análise mais aprofundada pode ser realizada a partir da consideração às Tabelas 2 a 5.

 

Tabela 2: Distribuição das CTs com DESuj no PB culto, no PE culto e no PB popular de acordo com a qualidade do elemento de co-referência

 

PB

culto

PE

culto

PB

pop

 

%

%

%

SN idênt.

8

8,4

4

57,1

4

5,3

SN anaf.

12

12,6

1

14,3

12

16

Pron. cópia

75

78,9

2

28,6

59

78,7

Total

95

100

7

100

75

100

Na Tabela 2, que mostra o panorama das CTs com DESuj nas variedades estudadas do PB e do PE, observa-se alto índice de retomada do tópico por pronome lexical (reto) no PB, com equilíbrio percentual entre PB culto e popular (78,9 e 78,7 %). Diferentemente, no PE culto, os 2 únicos casos de DESuj com retomada por pronome pessoal apresentam o mesmo pronome como tópico. Observe-se que nas construções referentes à modalidade européia do português, das 7 CTs, com DESuj, 6 (85,7%) apresentam retomada do tópico por termo idêntico, o que aponta para uma maior restrição à realização dessas construções no PE.

Situação diversa encontra-se no PB, em que, aparentemente, não há restrições sobre a retomada de tópicos por pronomes lexicais em CTs com DESuj, conforme se vê na Tabela 3, que mostra um grande percentual de SNs retomados por esses pronomes (76,3% dos SNs), conforme exemplos 10 e 11, apresentados em seguida.

 

Tabela 3: Distribuição das CTs com DE Suj no PB popular de acordo com classe do tópico e qualidade do elemento de co-referência

 

Pron

cópia

SN

anaf.

SN

idênt.

 

 

%

%

%

Total / %

SN

45

76,3

10

16,9

4

6,8

59 / 100

Pron.reto

14

93,3

1

6,7

-

-

15 / 100

oração

-

-

1

100

-

-

1 / 100

(10)            “... eu tenho que deixar minha vida totalmente livre, totalmente solta, porque as situações elas vão se mostrando e eu vou seguindo os sinais que são mostrados.”

(11)            “E eu acho que uma pessoa que mata outra pessoa ela tem que aproveitar e sentir na pele o que é morrer executado.”

Esses resultados podem ser relacionados a uma mudança paramétrica em curso no PB em direção aos sujeitos pronominais preenchidos (cf. Duarte 1995). Igualmente, apontam para uma tendência (também proposta por Duarte, op.cit.) a uma certa “cliticização” dos pronomes retos, de modo usual intimamente ligados às formas verbais. Sendo o PE um sistema estável de sujeitos nulos, é coerente supor que tal fato se relacione à baixa ocorrência das construções com DESuj na modalidade lusa do português.

 

Tabela 4:

Distribuição de CTs de objeto direto no PB culto, no PE culto e no PB popular

               

PB

culto

PE

culto

PB

pop

 

%

%

%

DEOD

11

15,9

10

55,6

16

19,5

TOPOD

58

84,1

8

44,4

66

80,5

Total

69

100

18

100

82

100

Com relação a tópicos que correspondem à função de objeto direto na sentença-comentário, a Tabela 4 mostra números que evidenciam diferenças importantes entre PB e PE. Observa-se que tanto no PB popular como no culto prefere-se o apagamento do objeto (respectivamente, 80,5% e 84,1%), enquanto no PE há predominância de construções com retomada do tópico (55,6%).

Se considerarmos todas as CTs que envolvem a função de objeto direto e desdobrarmos as estruturas com DEOD de acordo com a estratégia de retomada do tópico, teremos a Tabela 5 abaixo.

 

Tabela 5: Distribuição de CTs de objeto direto no PB culto, no PE culto e no PB popular de acordo com a estratégia de co-referência

 

PB

culto

PE

culto

PB

pop

 

%

%

%

SN idênt.

6

8,7

-

-

10

12,2

SN anaf.

3

4,3

3

16,7

1

1,2

Pron. cópia

2

2,9

-

-

5

6,1

Clítico

-

-

7

38,9

-

-

Æ (TOP OD)

58

84,1

8

44,4

66

80,5

Total

69

100

18

100

82

100

A tabela mostra que nas estruturas referentes ao PE, 7 das 10 CTs com DEOD (70%) apresentam retomada do tópico-objeto por clítico (cf. exemplos 12 e 13, apresentados em Vasco 1999), enquanto nas duas variedades do PB não um único exemplo com clítico.

(12)            “... mas qualquer pequena fogueira, não é, que se inicie, o mato alimenta-a imediatamente...”

(13)            “... os móveis que, que comprei, agora acho-os horrorosos.”

Esse fato aponta para diferenças entre os sistemas lingüísticos do PE (um sistema forte de clíticos) e do PB (com o clítico em crescente desuso). Assim, a rejeição aos clíticos no PB seria responsável, nas duas variedades, pela observação expressiva da posição-objeto direto vazia, com o objeto direto anafórico permanecendo nulo. Se somarmos os percentuais de retomada por clíticos (38,9%) aos de CTs com TOPOD (44,4%) no PE, teremos 83,3%, em equilíbrio com os números do PB (84,1% e 80,5%), o que parece indicar uma preferência pela posição acusativa vazia quando os clíticos deixam de ser usados.

De relevante observação igualmente são os números referentes à retomada do tópico por pronome reto (exemplos 14 e 15), que no PE não foi observada e no PB culto, sendo forma ainda estigmatizada, correspondeu a apenas 2,9% do total; já no PB popular, entretanto, teve aumento percentual para 6,1%, o que pode ser relacionado a uma menor estigmatização dessa estrutura na variedade não-culta do português brasileiro.

(14)            “A abóbora você lava ela...”

(15)            “Mocotó você... compra o mocotó, raspa ele bem, limpa ele bem...”[3]

 

CONCLUSÃO

Este trabalho teve por objetivo o estudo das CTs que envolvem as funções de sujeito e objeto direto na fala não-escolarizada do PB. Para tal, buscou investigar, conforme questões anteriormente apresentadas e repetidas a seguir, a) se as tendências observadas nas construções do PB popular acompanham as constatadas no PB culto em comparação com o PE; e b) se essas tendências se observam mais fortes na variedade popular do PB, em comparação com a variedade culta, por ser aquela menos sujeita a pressões normativas.

Com relação à primeira questão apresentada, os números observados permitem concluir que, de fato, as tendências que se apontavam para o PB culto igualmente são reconhecíveis no PB popular; assim, em um primeiro momento, os totais que privilegiam estruturas com DESuj nas duas variedades do PB devem-se à crescente tendência ao preenchimento do sujeito na modalidade brasileira do português. Constituindo o PE, ao contrário, um sistema estável de sujeitos nulos, é natural que as construções com DESuj e retomada por um pronome pessoal não lhe sejam comuns. Igualmente, nas CTs que envolvem função de objeto direto, há um equilíbrio entre PB popular e PB culto, com a rejeição ao uso de clíticos acusativos levando a um expressivo percentual de construções com TOPOD, com a posição de objeto direto permanecendo vazia, ao contrário do PE, em que se observa um predomínio de CTs com DEOD, com o tópico retomado por um clítico acusativo na sentença-comentário.

Quanto à segunda questão investigada, observou-se um equilíbrio entre os números referentes ao PB popular e os números do PB culto, o que evidencia o fato de as tendências descritas contemplarem o sistema lingüístico do PB como um todo, não privilegiando especialmente a variedade não-culta da língua.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

CYRINO, Sonia Maria Lazzarini. "Observações sobre a mudança diacrônica no português do Brasil: objeto nulo e clíticos". In: ROBERTS, I., KATO, M. A.. Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Unicamp, 1993.

DECAT, Maria Beatriz Nascimento. "Construções de tópico em português: uma abordagem diacrônica à luz do encaixamento no sistema pronominal". In: TARALLO, Fernando (org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes, 1989.

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. "Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil". In: TARALLO, Fernando (org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes, 1989.

––––––. "Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil". In: ROBERTS, I., KATO, M. A.. Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Unicamp, 1993.

––––––. A perda do princípio "evite pronome" no português brasileiro. Tese de Doutorado em Lingüística. Campinas: Unicamp, 1995.

GALVES, Charlotte. "A sintaxe do português brasileiro". In: Cadernos de lingüística e teoria da literatura - Ensaios de lingüística, 13ª Belo Horizonte: UFMG, 1987.

LI, Charles N., THOMPSON, Sandra A. "Subject and topic: a new typology of language". In: LI, Charles N. (ed.). Subject and topic. New York: Academic Press Inc., 1976.

PONTES, Eunice. O tópico no português do Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1987.

VASCO, Sérgio Leitão. Construções de tópico no português: as falas brasileira e portuguesa. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.


 

[1] Salvo nota em contrário, os exemplos apresentados foram retirados da amostra descrita acima.

[2] Os dados referentes ao PB culto e ao PE culto são extraídos de Vasco 1999.

[3] No exemplo 15, considerou-se que as três orações referem-se ao mesmo tópico mocotó.