PROGRESSÃO TEXTUAL E MODALIZAÇÃO
Maria Aparecida Lino Pauliukonis (UFRJ)
Este trabalho tem por objetivo analisar, sob uma perspectiva enunciativa, os chamados conectores reformulativos - isto é, a saber, ou melhor, ou seja-- segundo a tradição gramatical, locuções explicativas - e as palavras denotativas, como aliás, de fato, que são usadas como estratégia modalizadora / argumentativa do enunciador, em textos jornalísticos. Observe-se, a seguir, o exemplo, retirado da Revista Exame: “Somos um país promissor e, para atingirmos a prosperidade, basta impormos respeito. Ou seja: nós somos o que acreditamos ser” (Exame, 14 de maio de 2003)-, em que a expressão reformulativa ou seja retoma o conteúdo da frase anterior, resumindo-o e explicando-o de uma forma quase didática. Seu uso possibilita ao enunciador interferir em sua produção textual, monitorando a própria fala, acompanhando o processo, numa espécie de “ gestão passo a passo”, como bem o define Oliveira (2001:230).
O ponto de vista adotado nesta investigação considera a operação reformulativa, nos limites do preferencial e do retórico, como uma técnica de argumentação e também uma estratégia de progressão textual, já que permite que ao texto progredir, refletindo o processo avaliativo dos sujeitos enunciadores sobre sua própria enunciação.
A análise permite considerar tais termos envolvidos na construção dos textos como determinantes de uma orientação de sentido, que pode guiar o raciocínio do leitor em direção às teses defendidas no discurso. Tal constatação é propiciada por uma tomada de posição dos enunciadores, frente a um conteúdo proposicional e/ou à forma como ele é enunciado.
Trata-se de um estudo sobre a presença da subjetividade no discurso, ou seja, sobre as marcas lingüísticas da enunciação. Para tanto, foi analisado um “corpus” formado de textos do Jornal do Brasil e da Folha de São Paulo, sob a perspectiva teórica da Análise Semiolingüística do discurso, de Charaudeau ( 1996) e a comunicacional de Maingueneau (2001), segundo as quais a significação é resultante da união entre a forma e o sentido.
A opção pelos textos midiáticos deve-se à importância da Mídia e à influência de seus diversos gêneros textuais no comportamento da sociedade. Para uma análise que objetiva analisar a interação texto/leitor no processo da recepção dos textos, torna-se importante saber como eles são interpretados criticamente, uma vez que os leitores tornam-se também co-autores capazes de abalizar as mensagens, no processo interativo de leitura.
Procurando estabelecer uma interdependência entre a estruturação do enunciado, sua enunciação e sentido, nesta pesquisa, parte-se da hipótese de que para uma interpretação textual mais crítica e produtiva, prioritariamente deve-se levar em conta o processo discursivo, ou ainda, observar como na estruturação formal reflete-se o papel da identidade dos seres envolvidos no discurso, - emissor e receptor - presos a um “contrato comunicativo”, que comanda e rege a organização dos enunciados. Interessa também ver como a situação é representada, lingüisticamente, constituindo-se, assim, uma cenografia que é determinada e constituída pelo emprego dos elementos lingüísticos. Aceita-se que o discurso reflete certas condições da situação e é inferido dos lugares sociais ou das crenças socialmente estabelecidas.
Língua, modalização e subjetividade
A Língua coloca à disposição dos falantes uma série de recursos que precisam os limites dos sentidos da fala e de sua utilização. A análise desses processos de modalização propicia verificar o posicionamento do enunciador frente à construção do enunciado, bem como também sua intervenção avaliativa no conteúdo da mensagem. Esses recursos recebem o nome geral de modus, ou recursos de modalização, e podem se referir tanto ao conteúdo dos enunciados (o dito), quanto à forma peculiar como o enunciador se coloca frente ao discurso (o modo).
A análise do posicionamento do sujeito enunciador frente ao dito ou ao modo de sua enunciação permite estabelecer graduações diferentes de seu engajamento ou de seu afastamento em relação ao que afirma. Por sua vez, as formas de verificar o compromisso assumido pelo falante diante de uma enunciação permitem situar o papel da subjetividade na construção do discurso.
As marcas de subjetividade estão registradas em certos elementos lingüísticas que traduzem um maior ou menor comprometimento do enunciador, em relação ao conteúdo do que enuncia. Muitas vezes essa avaliação feita com o emprego desses modalizadores está coerente com os comentários feitos no enunciado, denunciando sempre a posição do enunciador em relação ao que expressa.
São muitas as formas que denunciam marcas da subjetividade no discurso; dentre os processos gerais de modalização, este trabalho vai se ater ao exame dos reformulativos.
Expressões reformulativas como modalizadores
Quando se enuncia, pode-se empregar os signos tanto como indicadores de referenciais do mundo real, quanto fazendo menção ao processo enunciativo. Nesse caso, os signos atuam como tradutores do processo, permitindo ao enunciador fazer comentários, sobre a própria enunciação. Essa monitoração do dito é de cunho metaenunciativo e as expressões usadas, servem, ora para retificar em parte ou no todo, o que foi dito, ora para ratificar, explicar ou parafrasear a mensagem expressa. São essas expressões denominadas reformulativas, segundo classificação de Rossari (1992) e Roulet (1987), que ajudam a corrigir em parte ou no todo uma enunciação anterior, enfatizar um conteúdo, ou explicar melhor, quando se julgar que não há bastante clareza. Todos esses empregos denotam o monitoramento da produção de um texto e a marca da presença do enunciador visa a garantir a certeza da interação.
Assim, o uso desses reformulativos como o de tantas outras expressões modalizadoras, em geral, como as já citadas, denuncia a presença do enunciador e serve para descrever o grau de adesão ao conteúdo de sua mensagem, ou ao próprio modo de enunciá-la. Tais expressões exprimem não só o quanto o enunciador acredita no que está proferindo, como denotam o grau de adesão às teses defendidas.
Segundo Perelmann (1996), um estudo de lógica baseado nos conceitos de graus de adesão do enunciador ao enunciado, propicia uma análise bastante produtiva dos processos de argumentação, sendo muito útil sua aplicação ao trabalho de interpretação e produção textuais, uma vez que alerta para a importância do papel da subjetividade enunciativa no discurso.
São vários os estudos sobre modalizadores reformulativos, entre eles, podemos citar: os trabalhos de classificação de Rossari (1992, e Roulet (1987), além dos tratados de argumentação de Perelman e Tytecca (1996) e do estudo sobre os usos do argumento por Toulmin, (2001). Cite-se ainda a proposta de classificação de Oliveira (2001), que será comentada, a seguir; o Autor divide-os em cinco subtipos, a saber: retificadores parciais, retificadores totais, ratificadores, parafraseadores e exmplificadores. Sua função e as expressões mais utilizadas são as seguintes:
a- Retificadores totais- os que retificam radicalmente uma porção anterior do texto: ou melhor, isto é, aliás, digo, minto...O encontro é no sábado, ou melhor, no domingo.
b- Retificadores parciais- em que só a parte retificada é vista como inverdade, o que não inviabiliza parte da asserção; expressões: na verdade, na realidade, para ser mais exato. Notar que essas expressões servem para indicar graus de adesão de quem fala ou escreve, em relação ao conteúdo proposto.
c- Ratificadores- os que enfatizam o que veio expresso antes, por meio de: de fato, com efeito, realmente. A ratificação visa convencer a outrem da veracidade do dito.
d- Explicadores- cujo objetivo é esclarecer o próprio pensamento, numa atitude bastante “didática” de explanação: Ou seja, e isto é , expressões que se equivalem...
e- Exemplificadores- há os que se referem a todo o conjunto anterior: a saber; e os que se aplicam a apenas a alguns elementos: por exemplo; tais como.
Do “corpus” analisado, citam-se os exemplos seguintes:
1- “Palocci: guerra às remarcações
O líder do PSDB, senador Arthur Virgílio (AM), no entanto, afirmou que não adianta o governo fazer o que denominou de “rebaixamento cosmético” dos juros, ou seja, um corte de meio ponto percentual, para dar satisfação política” O Globo, Economia, 08/06/03..
O uso da expressão ou seja, serve para traduzir o adjetivo cosmético, que vem dar idéia da pouca efetividade da medida do governo de abaixar somente um meio ponto percentual na taxa de juros. O operador vem explicar o uso do termo cosmético.
2- “A melhor época de comer “catado”, isto é, carne de caranguejo, é entre maio e agosto quando o “playboy” do mangue está mais gordo.” (O Globo. Caderno Boa viagem, 19/06/2003.
Para completar a bagagem é só levar um saquinho do típico amendoim cozido do Sergipe, o “Viagra do Nordeste”, como a população do local costuma dizer. “ (idem, ibidem)
A expressão catado por ser regional, necessitou ser traduzida, em nome da clareza, como atesta a continuidade do texto, com a expressão isto é. O marcador explicativo denota a preocupação do enunciador com o entendimento do leitor de seu texto.
Logo a seguir, o uso do aposto, o Viagra do Nordeste também explica o amendoim cozido do Sergipe, apoiado pela restrição feita do agente, “
como a população costuma dizer”3- “Depois da era dos “altos executivos”, isto é, com superteor acadêmico e pouca vivência, vieram os executivos “workaholics”.
A aparente paráfrase que viria, em nome da clareza, explicar o termo “altos executivos”- na verdade serve para restringir o seu sentido categorizando-o como de pouca eficiência: muitos títulos acadêmicos e pouca prática, para serem substituídos por pessoal fanático por trabalho, “workaholics”.
4- Quando as bombas ameaçam explodir,o governo pede aos juízes do tribunais superiores que concentrem a atenção no interesse público. Mas, para ser mais exato, na linguagem política, “interesse público” é todo pleito que beneficia quem pede, contrário ao “ interesse mesquinho” que favorece ao adversário. (Veja, set. de 2000)
A indicação restritiva: “ para ser mais exato” esclarece o que vem a ser realmente a expressão “interesse público” que está confrontado com o termo “interesse mesquinho” termo também usado entre aspas, que funcionam como marca metaenunciativa.
5- O apelido “Malocci”, difundido aliás por um pelotão de petistas foribundos, já pesa menos nos ombros do Ministro da Fazenda, Antonio Palocci. ( Época, 7-04-2003.
O conector aliás serve à retificação e também acrescenta ao texto um argumento decisivo em prol da tese do argumentador, embora pareça ser um mero acréscimo inocente.
6- Na crônica “ No outro lado da rua”, Carlos H. Cony comenta o adiamento da viagem de Lula à África e aventa uma hipótese explicativa:
Somente uma crise muito séria faria o presidente desistir de enfrentar o protocolo que ele tanto aprecia.
Para falar a verdade, nem chega a haver uma crise específica na vida nacional.(...) Tampouco o problema de violência é novo, é endêmico, nada tem de epidêmico.
Pessoalmente, acho que Lula se sai muito bem quando viaja: destaca o Brasil como um país diferente dos outros, no bem e no mal, - e a eleição de Lula, em tese, foi um bem, do qual podemos nos orgulhar.” (F.S.P.- 04/08/03)
Temos dois marcadores da presença do enunciador: o retificador para falar a verdade,- modifica a idéia de que o presidente desistiu de viajar por causa da crise que se instauraria no momento da votação, em primeiro turno da Reforma da Previdência na Câmara. O raciocínio do cronista já está incluído no título. Lula esperava estar por perto, caso o Legislativo sentisse necessidade de consultar o chefe, bastaria atravessar a Praça dos Três Poderes, pois ele estaria ali, no outro lado da praça.
7- Buemba! Maluf pegou uma prisão de ventre!
(..) Paris urgente! Pegaram o Brimo. O brimo malufrango foi preso em Paris num banco e liberado em seguida. Então, na verdade foi uma prisão de ventre, não durou nem 24 horas. Macaco Simão- F.S.P.-26/07/03).
Nesse fragmento, há um caso de retificação parcial, com o uso de “então.”, seguido de “na verdade” e, num tom humorístico, a escolha do reformulativo deverbal : prisão, com o restritivo de ventre, expressa mais uma opinião do articulista que serve como argumento para sua tese: Maluf foi pego acusado de roubo, mas liberado, significa uma prisão não no sentido usual, mas uma falsa prisão, que, no caso, soa sarcasticamente..
8 - Como exemplo de um caso de ratificação, seguido de um retificador, temos um exemplo na crônica política de Clóvis Rossi:” O BC de um olho só” F.S.P- 17/08/03
(...) Diz Meirelles que o “ país está cansado do padrão de arrancadas e freadas que tem caracterizado o desempenho econômico das última décadas”, e o colunista continua: “ O país está, sim, cansado, muito cansado, aliás, do crescimento medíocre da últimas décadas.”
Há uma concordância parcial com a significação do adjetivo cansado, seguida de uma retificação total imposta pelo marcador aliás, que acrescenta ao texto um argumento a mais, aparentemente inocente, diga-se assim, mas decisivo em favor da tese do argumentador: “muito cansado, aliás, do crescimento medíocre...”
9- Eliane Catanhêde, em Política de ocupação-, ao comentar a distribuição de cargos para amigos no governo Lula, acrescenta:
Agora vale a pena sondar o que anda acontecendo na Petrobrás, na CEF, para saber se a promessa de Lula está mantida:: a de que, em seu governo não haveria “verticalização”. Bem traduzido, significava “Todos vão ter sua fatia”. (F.S.P. 17/08/03).
A expressão “bem traduzido” parafraseia o comentário do governo, e o enunciador poderia ter usado um marcador: explicativo/ parafraseador: isto é. No entanto, ao usar essa expressão reformulativa, Eliane orienta para o verdadeiro significado do termo “verticalização”, levando-o a ficar mais condizente com o contexto atual, que é de crítica ao governo.
Conclusão
Cada uma das expressões dos fragmentos analisados introduz um elemento de modalização a respeito de um dado conteúdo, ou do modo de enunciação.
As modalizações foram utilizadas para dar a entender que o texto é monitorado por seu enunciador que, em um processo interativo com seu leitor, preocupa-se com seu entendimento e persuasão. Em termos benvenistianos significa reconhecer que o sujeito enunciador apodera-se da língua historicamnrte constituída, aceita-lhe as restrições gramaticais, mas imerge nela com sua marca e dos efeitos de sentido dessa apropriação subjetiva a língua não escapa imune. Nela se reconhecem marcas dos participantes no ato interativo de que tomam parte. Nesse conceito de língua como instrumento atuante no processo de interação, os elementos lingüísticos não apenas transmitem informação, mas são vistos como mecanismos de pressão e de persuasão sobre o receptor, de quem se procura deter a atenção. Nesse sentido a Língua ou os textos são apresentados como um conjunto de estratégias de manipulação que traduzem intenções dos emissores de atuar argumentativamente sobre seus interlocutores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Os conectores reformulativos. In: Scripta. Revista de Lingüística e Filologia. In: DECAT, Maria Beatriz et alii (Org.). v. 5, n. 09, PUC-Minas, 2001. p. 229-233.
PERELMAN,Chaim; OLBRECHET TYTECCA, Lucie. Tratado de argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996 [1ª. ed. 1958].
ROSSARI, Corinne. De l`éxploitation de quelques connecteurs reformulatifs dans la gestion dès articulations discursives. Pratiques, v. 75, set. 1992, p.11-125.
ROULET, George-Eddy. Completude interative et connecteurs reformulatifs. Cahiers de línguistique Française, v. 8, 1987, p. 11-140.
TOULMIN. Stephen. Os usos do argumento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.