VARIAÇÃO DA CURVA ENTOACIONAL NA VOZ CANTADA E NA VOZ FALADA

Carlos André (UFF)

 

A Fonética Experimental, através de seus recursos, permite a realização do registro da voz humana, em aparelhos e programas computacionais diversos, possibilitando a análise acústico-articulatória dos sons da fala, cujos resultados colaboram para o esclarecimento científico de fatos relevantes da ciência da expressão lingüística.

A pesquisa que apresentaremos brevemente neste artigo trata da análise e comparação entre as vogais átonas, na voz cantada e na voz falada, visando fundamentalmente os aspectos supra-segmentais, como a altura, a intensidade e a duração destes fonemas, assim como a variação da curva melódica.

O método utilizado nesta pesquisa foi o da Fonética Computacional, através do programa WinPitch, criado e desenvolvido pelo foneticista e engenheiro de som, Philippe MARTIN. Este software permite a pesquisa experimental da fala, em geral, e dos estudos da entoação, em particular.

Antes de expor a metodologia do trabalho, convém fazer algumas breves considerações sobre a entoação. Esta é um fenômeno prosódico de caráter supra-segmental, que se manifesta em qualquer enunciado falado e/ou cantado. Possui três aspectos que lhe caracterizam: a freqüência do fundamental, a variação da curva melódica e a variação da curva da intensidade. A duração ou quantidade extensão dos sons no tempo – é também um fator determinante na análise da entoação.

Sendo um fato fonético-fonológico, a entoação, logo referente à expressão do signo, assim como qualquer enunciado lingüístico, possui substância e forma. Sabe-se que a substância da expressão caracteriza-se pela concretude do som, pela massa fônica, enquanto realidade física e, a forma da expressão é a organização lingüística desta massa fônica. A primeira é de caráter fonético e a segunda, fonológico.

Para a realização da pesquisa, usamos um informante do sexo masculino que gravou, em CD, trechos cantados e falados a partir da música popular brasileira Me motivo. A gravação foi feita em estúdio. Através de técnicas adequadas, foi possível transferir essa gravação em CD, para o programa computacional WinPitch e, a partir dessa transferência, iniciou-se um trabalho de pesquisa sobre as variações entoacionais das vogais, para podermos estabelecer diferenças e semelhanças significativas nas vozes cantada e falada.

Após uma atenta observação dos traçados obtidos, achamos conveniente criar níveis com valores numéricos para uma melhor exposição e comparação dos dados obtidos de nossas análises. Esses níveis foram estabelecidos pelo fato de estarmos trabalhando com grandezas físicas, referentes à acústica, como freqüência em Hertz (Hz), intensidade em decibéis (dB) e o tempo de duração de cada vogal em segundos (s). A partir dessas grandezas criamos os níveis baixo, médio e alto.

Níveis de duração (s)

Níveis de altura (Hz)

Níveis de intensidade (dB)

Muito curta: menos de 0.100s

Muito baixo: menos de 125 Hz

Muito baixo: menos de 20 dB

Curta. 0.101 a 0.500 s

Baixo: 125 a 149 Hz

Baixo: 20 a 30 dB

Média 0.505 a 0.700 s

Médio: 150 a 199 Hz

Médio: 31 a 35 dB

Longa: 0.701 a 1.000 s

Alto: 200 a 220 Hz

Alto: 36 a 40 dB

Muito longa: mais de 1.000 s

Muito alto: mais de 220 Hz

Muito alto: mais de 40 dB

É importante observar que esses valores, baseados na voz do nosso informante, são arbitrários, em válidos para a metodologia desenvolvida. Se utilizássemos outro informante, possivelmente ou certamente, os valores seriam outros.

Vejamos a seguinte frase da música: Me motivo pra ir embora

Consideremos VC, voz cantada e VF, voz falada

VC: Me motivo pra ir embora (Cantada)

VF: Me motivo pra ir embora (Falada)


 

Comparação da vogal átona final [u] do vocábulo motivo na voz cantada e na voz falada

A primeira diferença significativa observada nessa vogal é que, na voz cantada a sua duração é muito longa, quase dezessete vezes mais, que a duração na voz falada.

Na voz cantada, a sua altura sofre oscilações em grande parte de sua realização, ora chegando a níveis altos de mais de 200 Hz, ora chegando a níveis médios de aproximadamente 160 Hz. Na sua parte final, o nível de altura eleva-se para mais de 200 Hz, que para a vogal em questão, grave e difusa, é um nível considerado muito alto. na voz falada, o nível de altura permanece baixo, com 88 Hz, do início ao fim de sua realização.

A intensidade dessa vogal possui, na voz cantada, um nível médio de aproximadamente 35 dB, em grande parte de sua realização, decrescendo em sua parte final para menos de 30 dB. Na voz falada, sua intensidade permanece em níveis baixos, menos de 20 dB, durante toda sua realização. (Figuras 1 e 2)

De acordo com os resultados de nossa pesquisa, podemos constatar que a duração das vogais átonas, em posição final, tem uma grande influência na variação entoacional tanto na voz cantada, como voz falada.

Na voz cantada, as vogais átonas finais são caracterizadas por apresentarem uma longa duração, geralmente com mais de 1.000 s e, essa longa duração acarreta variações da freqüência e  da intensidade. A freqüência do fundamental dessas vogais na voz cantada, é caracterizada por apresentar oscilações, através de degraus, atingindo ora níveis muito altos, de mais de 200 Hz, ora níveis médios situados entre 150 a 199 Hz. A intensidade sofre gradativos, decréscimos, passando pelos diferentes níveis: alto-médio-baixo-muito baixo, situando-se entre 13 e 42 dB.

Essas vogais átonas finais, na voz cantada, caracterizam-se, pois, por uma variação gradual, observada tanto em sua freqüência, como em sua intensidade, variação essa, sensivelmente percebida, devido à longa duração da vogal.

Ao contrário do que ocorre na voz cantada, as vogais átonas finais, na voz falada, são produzidas com curta duração, com uma visível queda no nível da intensidade e um decréscimo constante da freqüência do fundamental, que atinge um baixo nível de altura no fim de sua realização.

Para concluir, podemos constatar que a duração das vogais átonas em posição final de vocábulo, é fator determinante na variação da curva entoacional na voz cantada e na voz falada.

Como lembra MALMBERG (1954: 82): “Les sons du langage peuvent se distinguer lês uns dês autres non seulement par des différences qualitatives mais aussi par leur durée (extension dans temps)”[1]

BIBLIOGRAFIA

MALMBERG, Bertil. La Phonétique. 11ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1975. Collectin Que sais-je?

MARTIN, Philipe. WinPitch, Real Time Signal Analysis for Speech: User’s Manual. Toronto: Pitch Instruments Inc., 1997.

MARTINET, André. Élements de Linguistique Générale. 16ª ed. Paris: Libraire Armand Colin, 1966. 223p. collecion Armand Colin, nº 349. Sectin de Littérature.

MATTA MACHADO, Mirian Therezinha da. Etude articulatoire et acoustique dês voyelles nasales du portugais de Rio de Janeiro: Analyses radiocinématographique et oscillographique 2 vol. Tese de Doutorado em Fonética – Université dês Sciences Humaines de Strasbourg, Institut de Phonétique. Strasbourg, 1981.

PAGEL, Dário Fred. Contribuição para o estudo das vogais finais inacentuadas em português. In: MATTA MACHADO, Miriam da (org), Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas: UNICAMP, nº 25, p. 85-100, dez. 1993.

ROCO, Marilza Pereira da Silva. Análise acústico-articulatória das vogais átonas finais orais do Português rural. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1999.


 


 

[1] Os sons da linguagem podem distinguir-se uns dos outros não pelas diferenças qualitativas mas também pela sua duração (extensão no tempo).