Ensino do Português do Brasil
numa
perspectiva sociocultural
material
didático em foco

Norimar Júdice (UFF)

 

Na atualidade, as relações entre os povos mostram-se bastante conturbadas e instáveis: a mídia nos oferece imagens de conflitos violentos entre políticas e culturas e também veicula notícias de tentativas de união entre nações em defesa de interesses comuns. Esta efervescência no plano internacional tem se refletido de muitas formas no quotidiano de todos os quadrantes do mundo, implicando inclusive alterações no que se refere ao interesse pelo aprendizado de línguas estrangeiras.

Neste quadro, a língua portuguesa vem ganhando espaço como língua internacional em regiões nas quais anteriormente sua circulação era mais restrita. Exemplificando especificamente com a variedade brasileira, ressaltamos que, a partir da década passada, com o advento do Mercosul, ela vem atraindo um número crescente de aprendizes hispanofalantes que desejam interagir em português no novo panorama econômico, político e cultural que se delineia na América do Sul.

Considerando que o conhecimento de uma outra língua pode ampliar as perspectivas de os aprendizes se inscreverem no mundo e de se relacionarem com outros povos, entendemos que merece especial atenção, no processo de ensino/aprendizagem de idiomas, a abordagem utilizada para promover o contato do estudante não com os modos de dizer na língua-alvo mas também com os modos de ser e de fazer na(s) cultura(s) com que está imbricada.

O professor de Português do Brasil para Estrangeiros (PBE) que trabalha numa perspectiva sociocultural se depara com muitas dificuldades para ensinar a língua do Brasil e criar paralelamente oportunidades para o aprendiz ir construindo criticamente suas representações da cultura brasileira - uma delas é aquela relativa ao material didático (MD) a ser utilizado, seja ele elaborado pelo próprio professor ou adotado entre aqueles disponíveis no mercado editorial.

Como a situação mais freqüente é a de o professor adotar um dos poucos materiais didáticos de PBE em circulação, vamos nos ater a ela.

Quando o professor adota um MD de PBE, além de estar endossando (totalmente ou em grande parte) o conjunto de textos verbais e não-verbais que nele configuram um determinado perfil da língua e da cultura-alvo, está ainda conferindo ao material em questão um estatuto de representante autorizado da língua e da cultura do Brasil junto a seus alunos. Esse material adotado tem muita influência na construção das representações da língua e da cultura-meta pelo aprendiz, sobretudo em situação de ensino/aprendizagem de não-imersão.

Nesta apresentação, vamos observar em MDs de Português do Brasil para estrangeiros (PBE) - espaços abertos a falantes de outras línguas que, em diferentes quadrantes do mundo e com distintos olhares, buscam interagir por meio da língua-alvo - o conjunto de textos impressos oferecidos a aprendizes e professores como flagrantes do contexto lingüístico e cultural brasileiro.

Enfocaremos os dois manuais de PBE que, abarcando o nível básico e destinando-se genericamente a adultos, foram editados no Brasil nos últimos cinco anos e estão em uso pelo menos dois (doravante denominados MD1 e MD2). Faremos sobre eles algumas reflexões que contemplam as representações da língua e do contexto brasileiro neles inscritas por meio de textos verbais e não-verbais.

Que aspectos de nossa realidade, dos jeitos brasileiros de estar e interagir no mundo - fundados em diferentes discursos e amostras de nossa língua – o conjunto de textos dos MDs em questão revela aos aprendizes estrangeiros?

 

Texto e contexto

Antes de encaminhar respostas para a questão formulada anteriormente, faremos algumas considerações sobre o processo de elaboração de MDs de PBE, enfocando a questão da seleção de textos.

No Brasil, os autores que, na tarefa de elaboração de um MD de Português para estrangeiros, tentam selecionar textos que circulam em nosso contexto plasmando os diferentes discursos que se realizam em situações institucionais, históricas, sociais e ideológicas, deparam-se com uma série de barreiras. Aquelas de natureza econômica - determinadas por um mercado ainda limitado, embora em expansão - são significativas, geralmente implicando cortes, recortes, reduções de dimensão e de nitidez dos textos, que quase sempre acarretam decepção do autor do MD diante do conjunto final - infinitamente distanciado de sua proposta inicial.

Uma outra dificuldade é aquela relativa aos tipos de textos a serem selecionados como representações da língua e da cultura-alvo, com o objetivo de permitir ao aprendiz de PBE o domínio de um número crescente de gêneros textuais [1]. A presença de gêneros textuais variados nos documentos autênticos que integram uma unidade de trabalho de MD de língua estrangeira (LE) cria para os aprendizes diferentes ângulos de aproximação e leitura da realidade em que se inscreve a língua-alvo.

.Destaca Zarate ( 1995, p. 111) que a operação aparentemente simples de seleção do documento é por si mesma portadora de sentido, ou seja, um MD, ao apresentar para alunos de diferentes perfis um conjunto de textos como espaços instauradores de oportunidades de interlocução na língua-alvo, está oferecendo a estes aprendizes determinados feixes de sentidos, que, no processo de leitura, de acordo com a proposta de atividade apresentada e com suas perspectivas e habilidades de compreensão, esses estudantes podem fazer brotar.

Se esses feixes de sentidos forem buscados pelos alunos em textos denominados autênticos, tanto melhor. Registre-se que quando falamos em textos autênticos e defendemos sua entrada nos MDs não estamos julgando ingenuamente que textos dessa natureza possam manter suas fisionomias e funções iniciais ao serem extraídos de seus contextos e de suas situações de leitura originais nem tampouco que constituam garantia de atividades de compreensão/produção produtivas. Acreditamos, todavia, que configurando uma porção de discurso genuíno (Widdowson,1991, p. 113), podem constituir um ponto de partida seguro para uma proposta de tarefa de leitura aprofundada e de produção bem sucedida em língua estrangeira.

Observe-se ainda que a leitura das representações configuradas nos textos autênticos ganha em profundidade quando autores e editores tomam, em relação aos documentos escolhidos, alguns cuidados básicos - como citar autores, contextos de origem, datas - que permitirão a recriação do contexto de produção por professores e aprendizes. Outro cuidado necessário é a criteriosa escolha das fontes, que confere confiabilidade aos textos, os quais, ao serem deslocados de seu espaço de leitura original para aquele do MD, perderam, em parte, sua autenticidade .

A medida que a literatura da área de Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua Estrangeira passou a postular o uso na sala de aula de textos autênticos e representativos da realidade articulada à língua-alvo, os autores de materiais didáticos, entre eles os de livros didáticos de PBE, começaram a tentar trabalhar nessa linha. Se lançarmos um olhar retrospectivo aos materiais didáticos brasileiros destinados ao ensino/aprendizagem de PBE, verificaremos que, na década de 80, alguns deles revelam tentativas de trazer à sala de aula documentos autênticos verbais e não- verbais.

Com a entrada nesse espaço desse tipo de documento, que pode ser tomado, segundo Zarate (1995: p.101), como uma espécie de concentrado da realidade, o quotidiano brasileiro se torna objeto legítimo do ensino do português para falantes de outras línguas. Ou seja, passa a ser trazida à sala de aula de PBE e a ser oferecida a aprendizes e professores, que muitas vezes travam contato com a língua-alvo em situação de não-imersão, uma espécie de realidade capsularizada do contexto de origem dessa língua.

Para os autores de livros didáticos de PBE voltados para o ensino da modalidade brasileira – inscrita em uma realidade multifacetada – essa operação aparentemente simples de busca de documentos autênticos verbais e não-verbais dela representativos constitui um permanente desafio, pois observar, recortar, articular e capsularizar os múltiplos aspectos do quotidiano dispersos por uma infinidade de textos em circulação em nosso contexto para oferecê-lo a professores e aprendizes exige uma boa dose de sensibilidade e habilidade. Ressalte-se ainda que não um enfoque e um recorte “certos” da realidade a ser capsularizada em material textual e sim a perspectiva do autor do MD sobre o contexto brasileiro, com suas inúmeras e contrastantes faces. O que recortar sem cair na repetição e nos estereótipos fáceis é algo que cada autor deve decidir por si : o país superlativo e/ou o país depauperado? ; o país do abraço amigo e/ou da agressão banalizada?; da água no feijão e/ou da fome não zerada? ; da palavra dos sempre incluídos e/ou da fala dos permanentemente esquecidos?; da era digital e/ou da era da pedra lascada?

No que diz respeito à seleção e inclusão de textos autênticos não-verbais (fotografias, cartuns sem palavras etc), julgamos que raros autores de livros didáticos destinados ao ensino de PBE, se deram conta de que para o aprendiz ver/ler imagens do Brasil e ir tecendo textos verbais na língua-alvo constitui atividade tão importante quanto ler textos verbais e ir construindo imagens e representações do Brasil (Júdice e Xavier, 1997).

Se centrarmos nossa atenção no material fotográfico, importante recurso para manuais de ensino de língua e cultura, veremos que sua escolha e articulação nos livros didáticos de PLE editados no Brasil tem recebido muito pouca atenção. Encontramos freqüentemente material fotográfico pouco representativo, fragmentado, descontextualizado, sem indicação de autor e fonte, com dimensão e impressão que dificultam a leitura e, em geral, mal explorado como insumo textual para o ensino de língua e cultura.

É lamentável esse descaso, porque a fotografia constitui uma forma significativa de captar o quotidiano. E, é claro, também representa um meio privilegiado de propiciar leituras múltiplas desse dia-a-dia, pois sua capacidade ímpar de flagrar instantâneos de cenas quotidianas e de personagens e de articular feixes de sentidos permite que cada leitor a interprete com sua própria sensibilidade e perspectiva.

O problema do uso inadequado da fotografia em livros didáticos obviamente não se restringe aos materiais de PBE, tendo sido abordado por Zarate (1995, p. 111), em estudo sobre a escolha de documentos para integrar manuais de línguas estrangeiras:

Nos manuais, os documentos iconográficos apresentam freqüentemente uma referenciação pouco legível e funcionam mais como ilustrações destinadas a ritmar agradavelmente a página que como verdadeiros documentos. O formato do manual impõe freqüentemente reduções que afetam a legibilidade: o editor prefere multiplicar as fotos do que oferecer uma reprodução de excelente qualidade que permita um trabalho minucioso de observação. Os documentos iconográficos são raramente datados, sua assinatura é difícil de ser encontrada, sendo freqüentemente relegada ao final do manual com a menção dos direitos do autor. O fotógrafo não é percebido como um autor por inteiro.

Feitas essas considerações sobre o processo de seleção de textos para inclusão em MDs destinados ao ensino de língua estrangeira, passamos a abordar, agora especificamente no MD1 e no MD2, questões relativas à autenticidade dos textos neles inseridos, aos gêneros em que se inscrevem, às fontes de que foram retirados, aos temas que trazem à cena, aos cenários brasileiros que constroem e à variedade de língua que flagram.

 

MD1: textos e contextos

Dentre os textos que integram o livro do aluno do MD1, registra-se discreta predominância de textos não-autênticos. Os textos autênticos estão ausentes da parte inicial do livro e vão surgindo, progressivamente, à medida que as unidades se desenvolvem.

Entre os textos autênticos, os não-verbais constituídos por cartuns estão ausentes e os documentos fotográficos são raros. Destacamos que não estamos incluindo na categoria não-verbal os desenhos que surgem no MD1 apenas como “decoração de página”.

Fartamente ilustrado com desenhos e ícones, o MD1 apresenta, no que se refere ao material fotográfico, apenas umas raras reproduções, a maior parte sem referência a autoria e fonte, devendo provavelmente constituir fotos dos arquivos da editora (que também publica materiais para ensino de outras línguas). Esta talvez seja a razão da atipia e da descontextualização das fotos dos seres humanos e de alguns locais que podem ser tomados pelo aprendiz como brasileiros, mas que poderiam perfeitamente figurar como representações de outras realidades, em manuais para ensino de diferentes línguas estrangeiras. Este problema é também constatado em outras obras da área de PBE, nas quais, numa clara descaracterização de nosso país, povo e cultura, são apresentadas como representações da realidade brasileira fotos que constituem flagrantes de outras sociedades - imagens nitidamente neutras ou estrangeiras, que não revelam faces e espaços característicos do contexto em que se fala a língua-alvo.

No MD1, os documentos fotográficos, que englobam representações de pessoas (em close ou meio corpo) e de cidades brasileiras, são raros e em sua maioria minúsculos. As fotos de personalidades brasileiras são reduzidas em número e dimensão. As cidades surgem em representações típicas de postais, das quais o movimento e o elemento humano estão ausentes.

Algumas fotos colocadas ao lado de textos cujas fontes estão indicadas e outras superpostas às margens de diversos textos sem fonte mencionada fazem com que o leitor tenha dúvidas em relação à sua presença no documento de origem, o que naturalmente interfere na leitura.

Em relação às fontes, os textos não-verbais do MD1 ou não as têm explicitadas (como no caso das fotos que julgamos ser dos arquivos da editora) ou são provenientes de periódicos nacionais, guias e almanaques.

Os temas flagrados pelos textos não-verbais do MD1 - por vezes depreendidos com recurso aos textos verbais (títulos e enunciados) a eles articulados – são esportes em geral, estresse e trabalho, carnaval, cidades brasileiras, tipos regionais e mundo lusófono.

No que se refere aos gêneros dos textos verbais oferecidos à leitura dos aprendizes no MD1, podemos descrever, utilizando as categorias textuais de Kaufman e Rodríguez (1995), apresentadas pelas autoras como não exaustivas porém operacionais para o trabalho com texto no contexto de ensino, o panorama que se segue.

Verifica-se predominância de textos jornalísticos- matérias, notas, manchetes, classificados, entre outros. Seguem-se a eles textos que se incluem na categoria de informação - histórica e enciclopédica. Também está representada a categoria texto literário, sob a forma de umas raras crônicas inseridas no final do volume e também de letras de músicas de Caetano e Gil. A categoria instrucional também é observada - em receita culinária, mas a publicitária está praticamente ausente. No que se refere à categoria epistolar bilhetes e cartas variadas, sobretudo comerciais - está representada por documentos que, se não forem autênticos, constituem construções satisfatórias no gênero.

É relevante ainda a presença de textos de documentos da área de negócios, com modo de organização bem marcado (ficha, formulário, recibo, contrato, currículo) e de textos de estrutura simples, relacionados às ações do dia-a-dia (lista, recado, cupom, folheto).

No tocante à categoria humorística, que no MD1 abarca textos não-autênticos (de “humor pasteurizado), registram-se, na interseção do verbal com o não-verbal, uns tímidos quadrinhos, cujas falas têm objetivos gramaticais.

Considerando as fontes das quais é originário o material textual do MD1, podemos dizer que os textos verbais jornalísticos foram retirados de periódicos brasileiros variados, predominando aqueles da revista Veja, de grande circulação nacional, seguidos por outros provenientes do jornal Folha de São Paulo. Em segundo plano, com poucas contribuições (um ou dois textos cada) ficam outros jornais editados no eixo São Paulo - Rio e de circulação nacional, e ainda revistas da área de negócios e informática, de vulgarização científica, de esportes, de educação, de folclore etc.Os textos de informação histórica e enciclopédica foram retirados principalmente de guias e almanaques.

Os temas abordados pelos textos predominantes no MD1, ou seja, textos do gênero jornalístico têm como grande núcleo o trabalho no contexto empresarial, seguido por esportes e lazer, vida nos grandes centros, educação e saúde. Os textos inscritos nestes dois últimos grupos fazem articulação entre os temaseducação” e “saúde” e o mundo dos negócios.

Quanto à temática trazida à cena pelos textos de informação histórica e cultural, além de mundo lusófono, temos tópicos de História do Brasil e itens culturais “clássicos quando se trata de Brasil – ou seja, música popular e carnaval.

No que diz respeito aos temas dos textos inseridos na categoria literária, as crônicas abordam o futebol e o improviso no trabalho autônomo desenvolvido no contexto brasileiro.

Concluindo, em relação ao Brasil que é flagrado nos textos impressos autênticos que integram atividades de compreensão/produção no MD1, podemos dizer que predomina aquele do contexto urbano do sudeste brasileiro, da classe média, do trabalho regular no contexto empresarial, trazido nos discursos de periódicos de circulação nacional e da região sudeste, e construído sobretudo com recurso à variedade jornalística, que, em sua modalidade escrita, busca simultaneamente a sintonia com o uso quotidiano e a preservação da norma dita culta.

 

MD2: textos e contextos

Do conjunto de textos que integra o volume destinado a iniciantes do MD2, a maior parte é composta por documentos autênticos, distribuídos equilibradamente por todas as unidades.

Os textos autênticos não-verbais, abarcam, além de uns poucos cartuns, fotogramas de filmes brasileiros, mapas e reproduções de quadros de artistas plásticos nacionais, um abundante e significativo material fotográfico.

A atenção que caracteriza o trabalho do fotógrafo – a busca de determinado instante, movimento, luz, gesto, face - também deve estar presente no trabalho dos autores de livros didáticos que incluem material autêntico dessa natureza e lidam com a construção de representações da cultura-alvo, selecionando e articulando fotos e observando seu interesse sociológico. Essa percepção do fotógrafo como autor, como criador, caracteriza o trabalho de seleção de material fotográfico no MD2. As fotos do Brasil e dos brasileiros nele reunidas constituem documentação autêntica de nosso espaço, tempo, cultura, e, além disso, são apresentadas aos aprendizes da língua e da cultura do Brasil em formato que objetiva e permite a observação do detalhe e a conseqüente leitura e produção verbal.

Para aprendizes e professores estrangeiros, sobretudo aqueles que estão em situação de não-imersão, o acesso às imagens reais e diversificadas do Brasil integradas ao MD2 pode ser de relevância na configuração de representações das muitas realidades do país, inclusive daquela do Brasil dos excluídos, que não costuma ser representado em materiais dessa natureza.

Reunindo flagrantes de nossa realidade, registrados por fotógrafos brasileiros, e retirados, em sua maior parte, de livros de arte e também de acervos de agências de fotografias e de arquivos fotográficos (públicos e privados), o MD2 consegue oferecer a professores e aprendizes de PBE um concentrado de realidade que traz a perspectiva de quem o recortou.

Os temas que os textos não-verbais do MD2 trazem à aula de PBE, via imagem fotográfica, revelam o Brasil com diversidade de foco, cor, ângulos e movimento. O Brasil do recém-nascido nos braços da cabocla amazônica, do menino do campo e dos meninos da cidade. O Brasil de homens e mulheres jovens e velhos, em seu quotidiano interiorano (a parteira, o lavrador, a lavadeira, o vaqueiro) e também urbano (o operário, o comerciante, o artista,etc). O Brasil da natureza humana forte e também da força da natureza, presente nas cores e formas de sua fauna e flora. O Brasil industrializado e das redes de comunicação. O Brasil de pés descalços e de mãos maltratadas pelo trabalho. Todos esses brasis contidos no MD2 podem ser acessados por aprendizes e professores de PBE de variados universos culturais.

No contato com esses textos não-verbais que flagram com autenticidade nossa realidade, os aprendizes podem ter oportunidades efetivas de uso da língua-alvo, à medida que puxem, pouco a pouco, o fio dos sentidos que forem capazes de fazer fluir das imagens fotográficas - textos imediatos, instigantes e abertos a múltiplas abordagens.

No que diz respeito aos textos autênticos verbais do MD2, podemos dizer que são numerosos aqueles de propagandas, predominando portanto o gênero denominado publicitário, cuja inclusão é relevante porque, como nos lembra Monnerat (2003), no discurso da propaganda encontramos o imaginário coletivo do público a que se destina, ou seja, a linguagem da publicidade, no caso brasileira, deixa entrever a maneira como a nossa sociedade o mundo.

Em segundo lugar, temos o gênero jornalístico, em segmentos de textos muito curtos, constituídos sobretudo por quadros informativos retirados de matérias de periódicos.

Na categoria gênero de informação, encontramos dados biográficos de personalidades brasileiras e algumas notas sobre aspectos geográficos e culturais do país.

No MD2, não registro de texto do gênero literário, nem do instrucional, nem tampouco do epistolar.

Apresentados para discussão de visões de mundo, surgem no MD2 textos de provérbios em circulação na sociedade brasileira, porém desarticulados do co-texto em que se inscrevem.

Enquadrados no gênero humorístico e situados na interseção do verbal com o não-verbal, encontramos ainda, no MD2, cartuns de fácil compreensão.

Os textos publicitários, predominantes no MD2, são oriundos de uma grande variedade de fontes, como listas telefônicas, fascículos, folhetos, revistas de circulação nacional, com forte presença de Veja, e ainda de Época, Exame, Manchete, Super Interessante. Também aqueles provenientes de revistas de circulação em âmbito mais específico, como aquelas de empresas aéreas brasileiras e de grupos étnicos, e ainda outros procedentes de jornais editados em São Paulo.

As fontes dos textos autênticos verbais informativos são constituídas sobretudo por almanaques e fascículos. Observe-se ainda que, de domínio público, temos, no MD2, vários provérbios que capsularizam modos de ser e de dizer relacionados ao contexto brasileiro.

No MD2, os temas dos textos autênticos verbais recobrem gama de interesses que extrapola o Brasil urbano e de negócios, maciçamente representado no MD1. Os assuntos enfocados vão da cultura popular à cultura entronizada, do homem comum às personalidades brasileiras, do contexto da cidade ao contexto do campo, do consumo básico do quotidiano às oportunidades desiguais para os diferentes segmentos sociais.

Concluindo podemos dizer que, em relação ao Brasil flagrado (em grande parte pela objetiva de fotógrafos brasileiros) no conjunto dos textos autênticos do MD2, se fazem presentes o contexto urbano e o rural, as diferentes raças e classes sociais que formam o tecido de nossa sociedade, o trabalho no campo e na cidade, trazidos pela linguagem fotográfica, pela jornalística e sobretudo pela linguagem publicitária, na qual os componentes lingüístico e cultural estão fortemente enlaçados.

 

Conclusão

Será que as imagens Brasil presentes nos textos verbais e não-verbais dos MDs para o ensino de PBE analisados instauram variados contextos significativos para o aprendizado dessa língua numa perspectiva sociocultural? Promovem o contato dos aprendizes estrangeiros com nossa essência, nossas formas de ser, de dizer e de interagir? Dão-lhes oportunidades amplas de construir, de forma crítica, suas próprias representações da língua e da cultura brasileira e de manifestá-las na língua-alvo ?

Para oferecer as muitas faces de nossa cultura e língua aos aprendizes estrangeiros que desejam abordá-las por ângulos distintos, uma gama muito mais ampla de MDs de PBE precisaria estar em circulação, apresentando objetivos diversificados, traduzindo variadas perspectivas pedagógicas e culturais, trazendo ao aprendiz textos que plasmassem discursos complementares e até conflitantes, vazados em nossas muitas e ricas variedades de língua.

Não que se fazer comparações entre dois MDs de PBE para se eleger “o melhor”, pois certamente ambos representam tentativas sérias de seus autores para fazer circular por esferas cada vez mais amplas a língua e a cultura do Brasil. Para ensiná-las numa perspectiva sociocultural, há que se utilizar criticamente os MDs de que dispomos, explorando seus melhores recursos e suprindo suas falhas com elaboração de material específico para os interesses de cada grupo de aprendizes, abrindo dessa forma novas portas para a multifacetada e rica realidade lingüística e cultural do Brasil.

 

Bibliografia

JÚDICE, N.; XAVIER, A. Imagens do Brasil: uma experiência com leitura/produção de textos no ensino de língua estrangeira. Ensino de Português Língua Estrangeira /Cadernos do Centro de Línguas da USP. São Paulo: Humanitas, 1997.

KAUFMAN, A M; RODRIGUEZ, M.H. In: Escola, leitura e produção de textos. Porto Alegre: Arte Médica, 1995.

MARCUSCHI, L. A. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: Bezerra, M.A; Dionísio, A.P. O livro didático de português-múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

MARCUSCHI, L.A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: Dionísio, A .P. ; Machado, A. R. ; Bezerra, M. A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

MEURER, J.L. O conhecimento dos gêneros textuais e a formação do profissional de linguagem. In: FORTKAMP, M.B.M.; TOMITCH, L.M.B. Aspectos da Lingüística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2000.

MONNERAT, R. A publicidade pelo avesso. Niterói: EDUFF, 2003.

WIDDOWSON, H.G. O ensino de línguas para a comunicação. Campinas: Pontes, 1991.

ZARATE, G. Représentations de l’étranger et didactique des langues. Paris: Didier, 1995.

 


 

[1] Os gêneros textuais, segundo Marcuschi (2002,p.23), referem-se aos textos materializados que encontramos em nossa vida diária e apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Sendo muito numerosos, dificilmente caberiam numa classificação exaustiva.