Adivinhas de Pedro e Inês
uma rosácea pós-moderna
Tatiana Alves Soares (UNESA e UniverCidade)
Adivinhas de Pedro e Inês, romance da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís, realiza uma releitura de um dos mais célebres mitos do inconsciente coletivo português: Inês de Castro. Gilbert Durand, conhecido filósofo do imaginário, ao sintetizar os mitos portugueses em quatro linhas a que chamou mitologemas, destaca uma ligada à nostalgia do impossível, representada, sobretudo, pela trágica história de Pedro e Inês.
Desde o surgimento de Tristão e Isolda, no século XII, a impossibilidade amorosa tem sido a marca do amor-paixão no Ocidente. Sacralizada e mitificada pelo imaginário português, a relação de Inês e Pedro retrata essa impossibilidade, conferindo um caráter trágico à história daquela que depois de morta teria sido rainha. Obras como Os Lusíadas ou A Castro demonstram que o extrato mítico supera o histórico, sendo significativo o fato de as referências mais famosas serem justamente aquelas que não possuem qualquer respaldo histórico.
Publicado em 1983, Adivinhas de Pedro e Inês lança um olhar tipicamente pós-moderno sobre a história de amor portuguesa, na medida em que constrói um discurso que subverte a matéria mitificada pelos cronistas e pela tradição literária. Marcado pela auto-referencialidade, o romance apresenta-se repleto de digressões que interrompem o ritmo do fio narrativo. Ao rever os ícones do passado para dessacralizá-los, a narrativa pós-moderna resgata figuras históricas, destituindo-as da imagem que o discurso tradicional lhes atribuíra. Com isso, põe a nu o próprio processo de representação cultural, marcado pelo simulacro. O leitor, até então um destinatário passivo, é convidado a se tornar partícipe dessa produção, tendo sua consciência crítica despertada. Os contextos discursivos, históricos, sociais e ideológicos são analisados, tornando aberta a obra literária, conduzindo a uma multiplicidade de interpretações.
Steven Connor, em seu livro Cultura pós-moderna - introdução às teorias do contemporâneo (CONNOR, 1993), rastreia o pensamento de diversos teóricos da pós-modernidade. Ao analisar a perspectiva de Linda Hutcheon, o autor ressalta a terminologia metaficção historiográfica criada por ela para definir as obras de ficção caracterizadas por uma espécie de auto-referencialidade que não abdica de uma ancoragem histórica. Ao refletir sobre o seu estatuto de ficção, essas obras acentuam a figura do sujeito narrante, bem como o próprio exercício da escrita. Curiosamente, algumas dessas obras têm como tema personagens ou eventos históricos, que serão submetidos “à distorção, à falsificação e à ficcionalização” (Ibidem, p. 106.). A obra literária, dessa forma, torna-se a mediadora entre história e ficção. Assim, a produção literária pós-moderna assume uma dimensão diferente da tradicional, e a biografia, especialmente, instaura um novo enfoque, a partir do qual se percebe ser a própria narrativa o ser biografado. Trata-se de uma estratégia que permite ao biógrafo indagar a própria condição a partir da especulação feita em relação ao biografado.
Se a biografia permite que se pense a condição do eu a partir do outro, estabelece-se uma estrutura binária que sintetiza a relativização proposta pela estética pós-moderna. Ao se considerar o sistema binário, anula-se a perspectiva etnocêntrica do eu como referencial. Pensa-se a identidade a partir da alteridade, o individual a partir do coletivo e, nessa linha, rompe-se com o estatuto do absoluto.
Essa nova forma de apreensão do texto, feita pelas brechas e fendas, reflete a tônica da narrativa contemporânea, marcada pela afirmação do seu caráter ficcional. Constatada a inviabilidade de apreensão do real, a autenticidade que se busca é a verdade da ficção. Desse modo, a ficção permite uma biografia em que se busca apenas a verdade do texto, relativizando-se o próprio conceito de verdade. Assim, enquanto a narrativa de outrora se caracterizava por uma tentativa de legitimação, a pós-modernidade é marcada por uma valorização do sujeito. Assim, o passado histórico subordina-se ao presente do narrador, numa desconstrução característica da pós-modernidade.
Em Adivinhas de Pedro e Inês, percebemos estar diante de um relato cujo segredo não está no que é dito, mas no que é calado. Sendo um romance cujos protagonistas são personagens históricos, a investigação questiona a veracidade do discurso oficial. Trata-se, então, de uma história outra, a ser escrita a partir das entrelinhas e ausências, uma vez que a criação/invenção constitui a verdadeira proposta da narrativa. Dessa forma, assistimos à escrita da história e à história da escrita, num processo auto-reflexivo em que a enunciação parece, por vezes, ser o verdadeiro objeto tratado. É com naturalidade que a instância narrante rejeita a 3ª pessoa, objetiva e linear, para narrar em 1ª pessoa, realizando digressões e permitindo que a narrativa oscile ao sabor de sua subjetividade. Ao fazê-lo, descortina o processo de criação literária, ao mesmo tempo em que demonstra a parcialidade de seu ponto de vista, recusando o dogmatismo que sempre caracterizou a História Oficial.
Uma das estratégias utilizadas inicialmente pela narradora consiste em levantar dados biográficos e informações históricas para, em seguida, questioná-los. Por meio da destituição do discurso oficial, comprometido com a ideologia vigente, a instância narrante reflete sobre a verdade histórica como representação : “(...) Mas o escândalo era já imenso, atinge proporções que é preciso reduzir para que a História não comprometa os juízos dos homens que a praticam”. (BESSA-LUÍS, 1983: 162)
À medida que avança em suas pesquisas, a narradora constata a inviabilidade de seu projeto. Percebe que é impossível descobrir uma verdade, pois esbarra em vazios intencionalmente deixados para que certos fatos jamais viessem à luz. Aos poucos, a narradora-detetive cede lugar à narradora-demiurga, que resolve as lacunas e silêncios deixados pela História por meio da ficção. Em suas digressões, aponta a primazia da verdade ficcional em relação às supostas verdades históricas, estas comprometidas com os interesses do poder:
Não sei porque se dá mais crédito à História arrumada em arquivos, do que à literatura divulgada como arte de poetas. Mentem estes menos do que os outros; porque a inspiração anda mais perto da verdade do que o conceito problemático da biografia, que é sempre cautelosa porque julga tratar de factos que a todos unem e interessam. (Ibidem, p.162.)
A partir desse momento, a narradora reavalia não mais os dados históricos, mas a própria noção de verdade. A recorrência de expressões modalizantes, como é possível, devia estar, o mais provável é que..., indicam a subjetividade e a relativização presentes na narrativa. A onisciência da terceira pessoa é substituída pela reflexão, numa reelaboração dos conteúdos históricos do passado. A apropriação de acontecimentos e personagens históricos, marca da metaficção historiográfica, conduz a uma reformulação dos próprios conceitos de realidade, mundo e arte. Contesta-se não mais a versão histórica, mas a ilusão de que haja uma verdade única e inequívoca. A nova apreensão da matéria histórica gera uma perspectiva na qual, em vez da verdade una e inquestionável, tem-se uma tentativa de construção a partir das múltiplas visões do passado. A metaficção historiográfica definida por Hutcheon demarca esse entrelugar entre o ficcional e o meramente factual, numa reconstrução do passado. Nas digressões acerca da História presentes no romance, a legitimação da verdade ficcional em detrimento da histórica, alvo de constantes manipulações:
A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito diferente, e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia humana. (Ibidem, p. 224)
Enquanto a História e as narrativas tradicionais apresentam Inês como a doce e frágil moça que trazia o nome do amado escrito no peito, o romance agustiniano revisita as circunstâncias que cercaram a morte de Inês, negando a visão maniqueísta e pondo a nu os membros da nobreza de Portugal. Pouco resta, então, da amante submissa e passiva, vítima do grande e fero Amor. A Inês da narrativa contemporânea irrompe, firme e decidida, ambiciosa a ponto de satisfazer as ânsias narcísicas do príncipe para chegar ao poder. Sua obstinação teria ameaçado o trono português, o que pode ter sido sua sentença de morte. A subversão por ela representada permite uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade portuguesa medieval. A Inês ficcional, olhar do presente lançado sobre a figura histórica do passado, nada tem de indefesa, e a mitificação que envolve sua história seria apenas uma estratégia para neutralizar sua figura política, reduzindo-a a vítima do amor:
(...) Era preciso destruí-la e, se possível, substituí-la pelo mito. (...) Ao exaltar o amor de Pedro e Inês nesse quadro romântico da obra tumular de Alcobaça, dá-se-lhe uma satisfação simbólica, tornando-o assim inofensivo para a sociedade. (Ibidem, p.158.)
A constatação do caráter tendencioso da versão oficial leva a narradora, antes envolvida na apuração dos fatos, a se libertar cada vez mais da História e dar asas ao texto ficcional. No diálogo com um padre que tivera acesso aos documentos originais mas se recusa a falar sobre eles, a narradora, exasperada, cessa a busca pela verdade histórica e se rende à verdade do texto:
(...) Não me distraia com isso, e fale do Infante. Alguém tem que saber a verdade. (...) Casou com Inês na data em que Constança estava presa em Toro? Diga, meu padre. Eu preciso dessa informação.(...)
Vou me embora, e escrevo de Pedro o que de Pedro creio. Isto é bem servir. (Ibidem, p.80.)
O romance traz ainda a imagem da rosácea, ornato arquitetônico em forma de rosa. Figura presente também nas catedrais do final da Idade Média, sua forma circular fazia com que fosse vista como uma representação do mundo ou da Roda da Fortuna. Em determinado momento, a instância narrante afirma serem as Adivinhas de Pedro e Inês uma leitura da rosácea, presente na cabeceira dos túmulos do casal. Aquilo que poderia parecer uma alusão à biografia gravada nas lápides em Alcobaça, entretanto, transcende a mera referência e metaforiza a própria estrutura romanesca: a rosácea, cuja figura parte de um centro e se estilhaça em diferentes direções, aponta a arquitetura polifônica da narrativa. Os movimentos centrífugos e multidirecionais das pétalas marcam a pluralidade de perspectivas, aliando o estilo arquitetônico medieval à relativização pós-moderna:
(...) É pois a leitura da rosácea o que este livro descreve: a leitura das suas pétalas interiores e exteriores, consagradas respectivamente aos amores idílicos e aos amores punidos. (Ibidem, p. 31.)
A instância narrante, que demonstra o seu envolvimento com a matéria romanesca, intensifica a subjetividade presente na narrativa. A imaginação e a especulação surgem como vislumbres das múltiplas verdades. Note-se que o título fala de adivinhas, numa sugestão do caráter relativizante do olhar que é lançado sobre as figuras históricas de Pedro e Inês. Ao final, a narradora ritualiza a comunhão com o leitor, encarregado de, também ele, escrever a sua versão:
As adivinhas de Pedro e Inês ficam entregues à imaginação do público, dos leitores, sobretudo aqueles que se preocupam com a descrição de uma identidade nacional (...). Ela é a soma de imagens em que não nos reconhecemos mas que estão presas a nós com singular firmeza e às quais não podemos escapar. Pedro e Inês são imagens dessas. (Ibidem, p. 230.)
Consciente da importância das imagens de Pedro e Inês, a narradora presenteia-nos com a perspectiva da interação. Mais do que a história canonizada nos livros, deparamo-nos com mitos e representações que povoam nosso imaginário sem que percebamos. Com as Adivinhas de Pedro e Inês, uma nova flor surge, à espera de que cada leitor a desfolhe, vagarosamente, saboreando imagens únicas. Cabe ao leitor conhecer a nova Inês, tirando-a definitivamente do sossego para, talvez, beijar-lhe a mão.
Bibliografia
BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães, 1983.
CONNOR, Steve. Cultura pós-moderna - introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1993.