ARTICULAÇÕES DO DUPLO
NA LITERATURA FANTÁSTICA DO SÉCULO XIX
Cristina Martinho (USS)
“Mas o homem espia o homem inexoravelmente”!
Cyro dos Anjos
“Minha personalidade tornou-se um fardo para mim”
Dorian Gray
O primeiro texto da tradição Ocidental, o Gênesis, relata que o homem começa sendo um. Deus corta o homem em dois; a cisão resulta num enfraquecimento da singularidade e a vida passa a ser uma constante busca pela outra metade perdida. Esta concepção presentifica-se nas religiões tradicionais, com a separação entre alma e corpo. Diante disso, o homem possui uma natureza dupla, estruturada através da união de dois elementos diferentes.
Esta dualidade, antítese, cisão, remete, em termos do imaginário, ao fenômeno especular inscrito no duplo: espelhos, duplos, e reflexos habitam as lendas, as histórias de magia e as tradições populares, articulando um profundo sentimento de insegurança individual, social ou comunitária. Esta temática faz parte dos temas literários com profundas raízes mitológicas. No mundo em que a diferença é articulada através do sentido e do valor, a noção do duplo, da réplica, perturba e inquieta a identidade porque testemunha a insuficiência do ser.
Ao discutir o imaginário cultural no século XIX em relação à representação do duplo, especialmente numa época tensa de descobertas fundamentais em relação ao comportamento biológico e psíquico do ser humano, investigo a dependência de símbolos paradoxais e alternativos no cenário fantástico. Ao recolher informações sobre os conceitos mitológicos, freudianos sobre o real, a ilusão e a arte, considero a reflexão e a análise a partir de uma ótica interdisciplinar. O duplo pertence ao lado escuro do mundo da mitologia e do folclore. Representa a dualidade em seu aspecto mais perplexo e sinistro.
A maior parte dos estudos realizados no século XX sobre o duplo privilegia o ângulo psicológico, a começar pela interpretação psicanalítica de Otto Rank ao relacionar os diferentes aspectos do duplo na literatura com o estudo da personalidade dos autores. Joseph Campbell e Mircea Eliade estudam os mitos e as tradições mitológicas percebendo as concepções do duplo oriundas de rituais primitivos e de religiões monoteístas.
O arquétipo da dualidade universal assume uma forma específica e especular, manifestando seu próprio conjunto de leis únicas e auto-referenciais. É uma temática vastamente utilizada no século XIX, representando o humano como um ser dividido entre um ‘eu’ e um ‘alter ego’. Considerado arquétipo e imagem, a representação do duplo parece inicialmente clara e acessível, embora logo se mostre indefinível e desconcertante. Um exame mais profundo revela, de maneira dramática, sua natureza fluida e enigmática, que escapa de esquemas meticulosamente organizados do real.
Clément Rosset, em seu livro O real e seus duplo, articula o parâmetro da origem do duplo na recusa do real, na figuração da ilusão, afirmando que :
Quem recusa o real, tem seu retorno com juros, em virtude do antigo adágio estóico segundo o qual ‘o destino guia aquele que consente e arrasta aquele que recusa (1988, p. 68).
Explicitando o duplo como algo presente em espaço mais amplo, Rosset realça a existência como um dado inelutável:
“Não se escapa ao destino” significa simplesmente que não se escapa ao real. O que é e não pode não ser. [...] O que existe é sempre unívoco: na borda do real, seja o acontecimento favorável ou desfavorável, os duplos se dissipam por encantamento ou maldição. (Ibid., p. 38)
Em determinados segmentos da realidade, os duplos tecem a vida, aplaudem o real. São verossímeis, verdades humanas com padrões de traços normais. No plano simbólico renovam várias instâncias. O dado expressivo, numem interior se consubstancia na entidade exterior - eis o duplo poderoso, a possibilidade de mergulhar no real precário, transitório, fugitivo. Festa de vida e de morte. Comemoração do auto-conhecimento e do auto-anular-se. Momento de enlevo e frustração, êxtase e agonia.
Espelhos, reflexos, sombras de diversos planos inauguram imagens deformadas, caleidoscópios de Narciso. Nos tempos primordiais e clássicos, representam a imagem dos deuses. Talvez a figuração mais conhecida na mitologia grega seja a de Galatéia, esculpida por Pigmalião, que, apaixonado pela sua obra, impressiona de tal forma a deusa Afrodite, que esta, ao ver tão grande amor, transforma o mármore sólido em criatura de carne e osso.
A imagem reflexiva e seus poderes têm uma origem bem arcaica. A arte sublima esta magia que, desde os primeiros tempos do homem e sob mil formas culturais, permite a ele assumir sua humanidade com recursos ligados permanentemente às conjunções do imaginário. A primeira iniciativa desta mentalidade mágica é a instauração de um duplo, um sósia, uma imagem-espectro. É um processo anterior à consciência e se reconhece no reflexo ou sombra, projetada no sonho, na alucinação, na representação pintada ou esculpida, fetichizada, totemizada, sublimada nas crenças, cultos e ritos das religiões primitivas.
Em O banquete, de Platão, Aristófanes comenta sobre o homem desdobrado, a mulher desdobrada e o andrógino como representantes da união primitiva, do estado de perfeição almejada. O homem, atingindo este estágio, ameaça os deuses: o castigo imposto, então, ao homem é a bipartição, o corte e seu destino se converte numa eterna busca em prol do duplo. É uma jornada de aspectos ambíguos - benéficos e maléficos. Este castigo da bipartição assemelha-se àqueles resultantes da revolta dos homens contra os deuses (Prometeu, Ícaro, etc.).
Sigmund Freud, em seu ensaio dedicado ao estudo do Estranho ("Das Unheimliche", 1919), investiga os sentidos da palavra alemã "heimlich". Verifica que, além da sua referência mais corriqueira de - pertencente à casa, familiar, doméstico, íntimo, não estranho -, o vocábulo se desdobra de tal forma que chega a atingir, no seu limite, o significado de "escondido", "algo oculto e perigoso", habitualmente atribuído ao seu oposto "unheimlich". Na língua alemã, portanto, o conhecido carreia junto consigo o seu duplo (o estranho) a partir da própria palavra que o nomeia. (Freud, 1976, p.279 e passim).
Quanto ao fenômeno específico do duplo, Freud afirma :
Assim, temos personagens que devem ser considerados idênticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens pelo que chamaríamos telepatia -, de modo que um possui conhecimento, sentimentos e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu self. (Ibid, p. 292)
A psicanálise organiza séries coerentes, recortadas de um discurso em fluxo de totalidade; discerne significados, agencia significações, constrói sentidos tentando desconstruir as explicações lógicas baseadas na ética e na religião. Vai ao fundo do espírito humano captar os mais recônditos arquétipos. Narciso, em todo o seu investimento, é uma forma de auto-observação, maneira de o indivíduo manter sua coesão e sua integridade. Aqui entra o duplo, a atividade fantasmática, o retorno da libido sobre a própria pessoa, um mecanismo de reversão. Como ideal do Ego, modelo a que o indivíduo procura conformar-se ou como Ego ideal, identifica objetos prestigiados e grandiosos, na busca de um enriquecimento para o eu. Duplo - expressão perfeita e imperfeita, acabada ou inacabada de um sujeito, espelho para medir o Ego. A imagem refletida acaba como uma projeção de traços significativos dependentes da prova do real.
Na literatura, o termo Doppelganger ou duplo é inicialmente introduzido no vocabulário da crítica no final do século XVIII. Motivo bastante recorrente na literatura romântica, tem a função de resgatar a mitologia. Um renovado interesse por estas manifestações é preponderante no pensamento desta época, quando a Filosofia e a Arte reconhecem estar diante de uma crise espiritual de dimensões profundas. Os escritores se caracterizam como aqueles que tentam salvar os conceitos tradicionais, os esquemas e valores baseados na relação de sujeito e objeto. Mesmo a mitologia truncada seduz os artistas que vivenciam a fragmentação acelerada e a despersonalização de uma sociedade incipientemente industrializada e cada vez mais urbanizada. É importante adaptar o mito aos tempos do homem do hoje, para que possamos descobrir o mundo como um sistema de correspondências, uma linguagem iluminada.
O problema do homem moderno é exatamente o oposto do homem da sociedade tradicional quando todo o sentido reside no grupo. Reabrir estas linhas de comunicação é o objetivo do movimento romântico. O duplo serve como um símbolo do elo que conecta as áreas isoladas da psique. Este motif recorrente, principalmente nas obras do século XIX, reflete o dilema do homem ao entrar na época moderna.
Umberto Eco afiança que, “o fato de a imagem especular ser, entre os casos de duplicatas, o mais singular, e exibir características de unicidade, sem dúvida explica por que os espelhos têm inspirado tanta literatura”. (1989, p. 20). Sendo assim, o duplo, como motif da literatura, é um artifício bastante complicado. Refere-se à espelhos, sombras, fantasmas, aparições, retratos. No espelho, somos duplicados, e poucos de nós têm a chance de descobrir, como Alice, o que está do outro lado. O duplo assemelha-se ao referente; reproduzido, reduplicado, conquista uma autonomia sem precedentes, na medida em que o próprio sujeito se intimida com sua existência. A realidade do duplo e a compulsão em escamoteá-lo acabam por fazer com que seu eu transite incessantemente de um pólo ao seu contrário.
A Europa do século XIX, tomada por mudanças radicais, repentinas em foro social, político, instituições religiosas, está preocupada com a busca da identidade. Não há mais uma ordem estável para prover uma identidade individual pronta - uma vez que o não racional contribui para moldar os acontecimentos sociais. Este fenômeno encoraja e sanciona a exploração literária de modos de percepção não racionais, com o ponto de vista da psicologia profunda. Não mais as fantasias, os sonhos, alucinações, a parapraxe - termo usado por Freud para dizer ou fazer coisas que você não intenciona de forma consciente - podem ser relegados como sintomas de fraqueza ou aberração vistos em indivíduos defeituosos. Além de duplicar o sujeito e objeto da narrativa, e reduplicar a linha narrativa, a literatura do século XIX acrescenta o duplicar do caráter individual para retratar conflitos interiores, mostrar uma décalage entre a mente consciente e inconsciente das personagens.
A literatura decadentista revive as fantasias góticas em O retrato de Dorian Gray. No caso, a arte tem a última palavra. Dorian busca a estética, o aplauso, a finesse, o savoir-dire, a ironia, o frisson da arte, a alegria de ser um expert, um dandy. O puro prazer narcísico, construído na aferição do outro. Um prazer de exaltação do Ego, com a demonstração de seus méritos - aqui o fantástico.
O duplo de Dorian e seu retrato, um recurso aparentemente simples da literatura fantástica, na realidade se mostra bem mais complexo. Esta obra possui um criador e sua criação monstruosa, e os sujeita a uma nova fragmentação, produzindo assim dois criadores - Henry Wotton e Basil Hallward, e dois monstros, Dorian e seu retrato.
O pintor Basil Hallward cria o que acabará sendo uma monstruosa obra de arte, na qual revela muito de sua própria vida, e, que por isso, deve permanecer em segredo. Mas a vida por ele pintada torna-se independente dele; o retrato afigura-se como original e duplo do próprio Dorian. Como fundamentação de um platonismo homoerótico, Basil se revela:
- Dorian, desde o momento em que o conheci, sua personalidade teve a mais extraordinária influência sobre mim. Fui dominado, alma, cérebro, e força, por você. Você se tornou para mim a encarnação visível daquele ideal invisível cuja memória nos obceca a nós artistas como um sonho perfeito. (...) Eu mesmo quase não compreendi isso. (...) Sabia apenas que tinha visto a perfeição de frente. [p .66]
A história de Dorian retoma o mito de Fausto, e é remanescente das alegorias de Nathaniel Hawthorne, para quem a pintura é explicitamente o emblema moral da consciência, símbolo visível da degradação e do pecado. A trama depende inteiramente da equação alegórica que Basil propõe a Dorian: “o pecado é algo que se escreve na face de um homem”. Embora Dorian seja obviamente culpado do orgulho em aspirar sobrepujar os limites naturais da vida, a decadência física, como um transgressor tradicional, Wilde complica um pouco o enredo. Em seu mundo, há pouco a ser transgredido, porque a natureza foi abolida. Este mundo é visto como um artifício. A obra diz menos sobre a natureza do bem e do mal, do que a manipulação ficcionalizada da personalidade humana.
Dorian simplesmente pensa num desejo impossível: ficar sempre jovem enquanto o seu retrato envelhece. Este desejo se realiza sem nenhum esforço, sem explicações, sem qualquer atmosfera sobrenatural criada para explicar “a intrusão deste milagre hawthorniano no ambiente ensolarado da modernidade.”
Que tristeza! [...] Eu irei ficando velho, feio, horrível. Mas esse retrato se conservará eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário! Se eu pudesse ser sempre jovem, se o quadro envelhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo! [...] Daria até a alma! (p. 33)
Wilde atesta o tema da inocência e da beleza como máscaras de uma depravação moral, uma monstruosidade da ética. Acrescenta os temas do esteticismo e da hipocrisia social. O retrato de Dorian Gray é o estudo mais completo dos princípios decadentistas que visam, eroticamente, a transformar o ser humano em objet d’art. Dorian é um narcisista enrustido, e não conseguindo realizar suas pulsões, desloca-as para o objeto na tentativa de obter a satisfação narcísica. Duplo - espectro, é, existe. Como eliminá-lo? Como libertar-se dele? Dorian não vislumbra uma solução para seu problema. Unificar-se no duplo é uma forma de eliminá-lo. Tenta afastar-se do risco de ver seu Ego empobrecido e torna-se inadaptado ao mundo. Na impossibilidade de exorcizar o outro, o jeito é assimilá-lo; para que deixe de ser outro. Para que ele deixe de ser.
O exercício de consciência crítica, peculiar a todo intelectual, pode deixar entrever um ideal de Ego, presente nas lacunas do discurso. Um ideal de Ego que nem por ser exterior ao sujeito - modelo a que este procura conformar-se - não deixa de ser parte dele, ainda que transitoriamente. Atividade narcisada, possessão narcísica, cacos, estilhaços, fragmentos de espelho - pedaços dos outros, do Outro, de si mesmo, de seu duplo. Em perfeita desarmonia com o sujeito de que é a imagem. Representação irônica, sarcástica, agente do desnudamento, revelação do lado menos visível, o espelho funciona na ironia. E como sói acontecer, exercendo sobretudo o papel de consciência, do Outro que observa e analisa o que o sujeito vivência e produz, o romance proclama: ‘a maldade é um mito inventado por pessoas boas para explicar a curiosa atração de outras’.
O espelho decodifica o mundo de Dorian. Seus pensamentos, desejos, frustrações, prevaricações. Seu eu de dentro. Metonímia perfeita de um duplo que se esconde no instrumento e o revela. Presença intermitente, expressão de narcisismo, lugar de uma imagem cujo destaque jamais deixa de existir, o espelho é. Multívoco e polissêmico. Plural. Poliedro. Em cada face perdida e subitamente recuperada, uma oportunidade para a afirmação do eu. Agente de um completo desvelamento, o retrato, na eficiência de sua simbolização, torna Dorian escravo, irremediavelmente:
‘deixava de repente os convidados e corria de volta à cidade para ver se não tinham mexido na porta, e se o retrato ainda estava lá’
“Minha personalidade tornou-se um fardo para mim”.
[...] há alguma coisa de fatal num retrato. Tem uma vida própria. [p. 171]
Duplicar é o principio gerador da narrativa. A ação narrativa inicia-se quando um protagonista se percebe como incompleto e direciona seu desejo em direção a um objeto externo que vai completá-lo. Uma vez a divisão entre sujeito e objeto tenha ocorrido, e o protagonista sujeito inicia sua busca em prol da reunião com o objeto, ele se divide mais uma vez entre realizador e observador. Há em todo o homem um espectador e um ator, diz Nerval em Aurélia. Aquele que fala e aquele que responde. Mas uma única linha dominante de acontecimentos, ligada por causa e efeito é suficiente para relatar as aventuras do protagonista, de forma autoconsciente, durante o purgatório da separação de seu objeto.
Eu ficarei com o verdadeiro Dorian - tornou, um tanto triste.
- Será o verdadeiro Dorian? - acudiu o original, correndo para ele. - Eu sou realmente assim?
E´. Exatamente assim.
- Que beleza, Basil!
- Pelo menos, parece-se com ele. Mas o retrato não mudará - suspirou Hallward. - É alguma coisa... [ p.36 ]
Quando Basil pinta o retrato de Dorian, o rapaz se apresenta jovial, interessante, nos seus últimos momentos de inocência. No dia em que o retrato é terminado, duas coisas acontecem para conspurcar a inocência do rapaz. Primeiro, a visão do retrato produz o primeiro momento de uma autoconscientização com a reflexão de que ele envelhecerá e o retrato permanecerá eternamente com a sua juventude. Segundo, a conversa com Lord Henry Wotton, presente no ateliê do pintor, desperta pela primeira vez a curiosidade sobre a vida que leva Dorian a uma busca desenfreada pelas sensações até crer que o mal propicia o último e único acesso à beleza.
Dorian está sujeito à influência de Lord Henry, que inicia o contato do rapaz com o mundo social. Cita e interpreta as idéias da arte, invertendo a monástica contemplatividade para a práxis: “a única maneira de se livrar de uma tentação é ceder a ela”. Logo depois do longo monólogo de Henry, o efeito sobre Dorian é imediato: ‘pare, fraquejou Dorian Gray, pare! você me confunde!. Dorian sente as palavras de Lord Henry como intrusões estranhas ao seu modo de viver. A lisonja de Henry faz Dorian separar-se mentalmente de si mesmo pela primeira vez Esse momento produz seu pacto faustiano: ele vê seu retrato a partir da nova distância que lhe possibilita ver a si mesmo:
Mal pousou o olhar no quadro, recuou e corou de prazer. Uma luz jubilosa lampejou-lhe nos olhos, como se nesse momento se visse pela primeira vez. E estacou imóvel e enlevado, mal percebendo que Basil Hallward lhe falava, sem captar o sentido do que ele dizia. A noção da própria beleza dominava-o como uma revelação. Nunca a tivera antes dessa hora.’[p.33]
Wilde mapeia sistematicamente o isolamento ritual da pintura. Basil recusa-se a expô-la. Dorian aceita-a como presente, mas, quando ela começa a transformar-se, oculta-a por trás de um biombo, depois de um reposteiro, e por fim num quarto trancado do sótão. A pintura torna-se cada vez mais tabu à medida que se torna mais daimônica. O romance avança pelo princípio da arte decadentista. A pintura é o precioso ostensório de um culto do rapaz bonito, modelado com base em protótipos pagãos. Wilde compara Dorian Gray a Adonis, Narciso, Paris, Antínoo. Com seus ‘anelados cabelos dourados’ e seu nome grego, o herói de Wilde representa
o absolutismo ariano dos invasores dórios, a categoria do andrógino efébico em seu desabrochar adolescente para a idade adulta. Dorian é meio feminino, com ‘lábios escarlate finamente curvos’ e, uma juventude branca de rosa branca”, e uma ‘juventude branca de rosa branca’ como uma donzela de contos de fada. [Paglia, 1992, p.476].
Semelhante a Hawthorne, Wilde credita o grande artista com a habilidade de ver a alma. Em ambos os casos, o retrato é quase literalmente a alma, a anima. Wilde inverte o motivo. Enquanto que no conto de Hawthorne, o modelo vivo gradualmente se aproxima da visão apresentada pelo retrato, Wilde sugere que o retrato vem a se assemelhar à imagem espiritual do modelo vivo. A implícita relação mágica entre o modelo e a anima é idêntica, em ambos os casos.
Wilde constrói um mundo informado pela imaginação; exclui a natureza compreendida como a desumana força caótica da matéria, como um inimigo da mente e do pensamento artístico contemplativo. Lord Henry Wotton chega a dissociar o pecado da natureza; é na mente, e na mente somente que os grandes pecados do mundo acontecem.‘a maldade é um mito inventado por pessoas boas para explicar a curiosa atração de outras’.
Nenhuma palavra aparece com mais freqüência em Dorian Gray do que ‘fascinante”. É usada para uma pessoa, uma experiência, um remédio, um livro (Às Avessas), pelo qual Dorian é ‘envenenado’. Freud fala do ‘fascínio’ das mulheres muito belas, narcisistas; o narcisismo exerce ‘uma grande atração’ sobre os outros pela ‘auto-suficiência e inacessibilidade’ partilhada por crianças e gatos. Os políticos narcisistas induzem o investimento de emoção nas massas por um processo de fascinação. Wilde dá a Dorian Gray um carisma puro. Seu narcisismo tem conseqüências desastrosas: suicídio, assassinato, vício. Dorian suscita um interesse mesmérico entre seus bem-nascidos companheiros. Basil pergunta:
Por que sua amizade é tão fatal para os jovens? (...) Você os encheu de loucura pelo prazer. Eles desceram às profundezas... (...) Dizem que você corrompe todos aqueles de quem se torna íntimo, e que basta você entrar numa casa para que algum tipo de vergonha venha em seguida.. [p.155]
Seduzir significa literalmente ‘desencaminhar. A influência da estética de Pater torna-se transe e compulsão. Dorian mesmeriza seus seguidores, deconstruindo a ordem social. No submundo londrino, ele é chamado de ‘Príncipe Encantador’. Dorian é atraente, no sentido original da palavra. Dirige a imaginação dos outros para si por um poder magnético inato. Wilde diz ‘a maldade é um mito inventado por pessoas boas para explicar a curiosa atração de outras’. Quer dizer, que os bons são regidos por sistemas abstratos, éticos e sociais, enquanto os não bons são regidos apenas pela personalidade, a ‘intensificação de personalidade’ gerando um fascínio sedutor.
Ninguém vê a pintura a não ser Dorian e o pintor. O fato de que o retrato parece ter deteriorado aos olhos de Dorian pode ser considerado como uma projeção de seu senso de culpa. O pintor, na única ocasião em que vê o retrato, numa luz fraca, tenta raciocinar sobre o fato apontando para o tempo e o mofo como responsáveis pelos estragos. É possível raciocinar sobre a aparente senilidade do retrato. Dorian permanece incrivelmente bem preservado durante os dezoito anos cobertos pela narrativa - a um grau que surpreende os amigos. Os anos passam e Dorian acaba reconhecendo o estranho poder do retrato. Finalmente decide mostrá-lo ao pintor. Considero bastante eficaz a citação integral desta passagem:
-
Está, então, convencido de que só Deus lê nas almas, Basil? Puxe aquele pano e lerá na minha.Dorian falara com voz fria e cruel. O pintor franziu a testa e murmurou:
-
Está brincando, Dorian, ou está fora de si? - Não quer? Pois eu mesmo o farei - tornou o moço, arrancando a cortina e atirando-a ao chão.Uma exclamação de horror escapou dos lábios do artista, ao ver o esgar hediondo do rosto pintado na tela, cuja expressão à luz indecisa o enchia de aversão e repugnância. Senhor! O que se lhe apresentava ali era o rosto de Dorian Gray! Apesar de horrível, ainda conservava alguma coisa da sua maravilhosa formosura; ainda havia ouro nos cabelos que rareavam, ainda restavam toques de carmim nos lábios sensuais. Os olhos baços não haviam perdido totalmente o belo matiz azul; nem haviam desaparecido de todo os contornos delicados das narinas e as linhas bem-torneadas do pescoço. Sim, era Dorian. {...]
Basil Hallward voltou-se e encarou Dorian com um olhar desvairado. A boca torcia-se-lhe; a língua seca tornara-se incapaz de articular um som. O pintor passou a mão na testa molhada de um suor viscoso.
Encostado à lareira, Dorian Gray observava-o com a expressão singular que se vê na fisionomia dos que se concentram em uma peça teatral, quando atua um grande artista,. Não era de tristeza verdadeira nem de satisfação real. Era simplesmente a atenção apaixonada do espectador, talvez com um lampejo de triunfo no fundo dos olhos. Dorian tirara a flor da lapela e cheirava-a, ou fingia aspirar-lhe o perfume.
- Que significa isso? - gritou Hallward afinal estranhando ele mesmo o som agudo e alterado da sua voz.
- Há anos passados, quando eu era ainda um adolescente - replicou Dorian, esmagando a flor entre os dedos -, você me conheceu, adulou-me, ensinou-me a envaidecer-me da minha beleza. Um dia, apresentou-me a um seu amigo; este me explicou as maravilhas de ser jovem. Você terminou o retrato que me revelou a maravilha de ser belo. Em um momento de loucura, de que ainda hoje não sei se me devo arrepender ou não, eu formulei um desejo insensato... que você talvez qualifique de súplica...
- Lembro-me! Oh! se me lembro! Não é possível! A sala é úmida; o mofo penetrou na tela. Talvez houvesse nas tintas que usei substâncias minerais nocivas... Digo-lhe que isso é impossível! [ p.178]
Dorian transmuta a si mesmo numa forma artística. Mesmo antes do retrato mudar e a magia engendrar a narrativa, Dorian se parece com um objeto esquisitamente elaborado. Ele passivamente se comporta como um belo objeto. Quando se transforma num dandy, é um papel que permite manter sua identidade enquanto investiga os eróticos prazeres do submundo de Londres. Seu propósito é inventar uma identidade ideal que não possa ser sobrepujada pelo inconsciente que ele deseja explorar. Sua identidade eventualmente rompe, pois sua personalidade se torna mais do que o que seu fantástico paraíso estético pode proporcionar e permitir. É um paraíso que leva ao crime. Seu remorso e obsessão e o desejo eventual pela virtude cria limitações que o expulsam deste mundo idealizado de fantasias edênicas.
Dorian sente prazer em examinar o seu retrato, ele trata a obra como um espelho onde se regozija ao contemplar aspectos de si mesmo que não são virtuosos no sentido vitoriano ou epicurista. Ele assassina o pintor em frente ao retrato. Depois disso, ele consegue evitar pensar no assunto, por algum tempo. Ele evita conhecer parte de si mesmo.
[...] e aí, de pé, um espelho na mão, diante da pintura de Basil Hallward, contemplava ora a figura envelhecida e má do retrato, ora o rosto radiante que o espelho polido lhe oferecia. A própria violência do contraste avivava nele o sentido do prazer. Apaixonava-se cada vez mais pela própria beleza e interessava-se pela corrupção de sua alma. (p. Ill) Espelho e retrato encontram-se tão intimamente relacionados que, no final da narrativa, querendo escapar ao malefício do duplo - que leva, como já vimos, a situar o real de uma pessoa precisamente fora dela mesma, Dorian, antes de destruir o retrato, destrói também o símbolo do seu infortúnio: “Depois, amaldiçoando a sua beleza, jogou o espelho ao chão, e o reduziu a cacos com o pé. A causa da sua desgraça fora a sua beleza; a beleza e a mocidade que ele almejara conservar perenemente (p. 175).
Nenhum temor, nem remorso pelo mal feito o aflige tanto quanto pensar que sua mente incontrolável pode forçá-lo a ter sentimentos contra sua vontade. E logo depois dessa passagem, Doriam relembra o assassinato de Basil e chora. Este momento não significa simplesmente que ele recobrou o seu sentido moral, e sim a desintegração de sua identidade como um epicurista reservado com a possibilidade de permanecer independente de suas próprias paixões.
Dorian internaliza os valores de Basil, deseja criar para si uma identidade coerente, consistente, com a vantagem adicionar de não se expor a sentimentos desagradáveis e incontroláveis. Infelizmente, este novo ideal é perigoso; como resultado do desaparecimento do desejo, haverá a fantástica explosão final de desordem. Ele corre para o retrato mágico, esperando encontrar nas linhas grotescas algo mais suave. Em vez disso, ele capta uma paródia da personalidade defendida por Wotton, um inesperado olhar hipócrita. Ele está profundamente desapontado. O retrato confronta as circunstancias impossíveis - força a abertura das contradições inerentes da identidade estável e personalidade múltipla.A moral da história diz que os excessos, as renúncias trazem a punição; esta moral é tão artística e deliberadamente suprimida que não enuncia sua lei como um principio geral, mas se realiza puramente na vida do individuo, é um elemento dramático na obra de arte, não o objeto da obra em si mesma
Um episódio vale lembrar: a paixão de Dorian por Sybil Vane. Inocente, jovem, Sybil representa as grandes heroínas do mundo num pequeno teatro de subúrbio, cheio de atores medíocres e com um cenário empobrecido, grotesco. Ela representa Julieta, Imogen, Rosalinda, Ofélia, Desdêmona. Dorian se deixa cativar pela estética de sua atuação e define suas qualidades em termos de arte. A descrição física de Sybil parece uma apoteose da arte:
[...] a criatura mais linda que eu já vira... na cena do jardim tinha toda a vibração, a extasiada dos rouxinóis, cantando antes do alvorecer.... a sua voz e a voz de Sybil Vane são duas impressões que nunca esquecerei... ela é tudo para mim... já a vi em todas as idades e em todos os trajes. As criaturas vulgares não nos impressionam a imaginação... mas um atriz! Como é diferente uma atriz, Henry! [p.59]
Antes de encontrar Dorian, representar é para Sybil, a única realidade de sua vida. Ela vive da sombra do real, e pensa ser isto o real. Dorian traz algo novo, vibrante, - a paixão. Esperando ser magnífica naquela noite especial, no momento em que vai conhecer os amigos dele, Sybil repentinamente compreende ser uma profanação o ato de representar estando apaixonada. E sua performance é fatal. Da mesma forma que a confissão de amor feita por Dorian deixa-a incapaz de atuar, a morte da sua arte mata o amor de Dorian. Ele a rejeita friamente, dizendo não querer vê-la novamente.
Dorian perambula pelo submundo da cidade até que o jardim se purifica com os tons suaves do amanhecer. Ao retornar a casa, percebe linhas de crueldade nos lábios do retrato. No dia seguinte, cheio de remorso, decide pedir perdão à moça, escrevendo uma carta apaixonada. Neste momento, Lord Henry chega com a notícia do suicídio de Sybil e consola o rapaz com a idéia de que o amor é um episodio da arte. A relação de Dorian e Sybil acontece entre os capítulos 4 e 9 e forma a ação crucial no romance. É o teste que confirma a dominação de Lord Henry sobre Dorian. Este se confronta com uma escolha e instintivamente escolhe a arte, e não o amor, confirmando na prática a teoria venenosa ouvida de Lord Henry, nos jardins do ateliê do pintor Basil Hallward. Esta escolha é análoga a de Fausto e a primeira atitude de Fausto é de um prazer egoísta; a figura mefistofélica de Lord Henry acentua as escolhas do protagonista.
Dorian, transfigurado pela arte, está perdido para Basil, Sybil, traduzida fora da arte, nada significa para Dorian. Wilde exprime vivamente a extrema fragilidade e a transitoriedade de suas imagens da perfeição, o momento em que o retrato é completado, que imediatamente lembra a mortalidade do modelo, a absorção da jovem nos papeis shakesperianos, que não podem se manter num contexto da realidade. Diante destas experiências requintadas embora trágicas, Wilde propõe a fria objetividade de Lord Henry, um espectador a julgar a vida pelos padrões de um connoisseur. Para Dorian, o retrato se transformará no símbolo vivo de sua escolha fáustica.
A morte de Dorian é simultânea com o golpe que ele desfere contra o retrato. O mistério é gritante
A entrarem na sala, viram na parede o magnífico retrato do amo, como eles o tinham conhecido, em pleno apogeu da sua esplêndida mocidade e beleza. No chão, jazia o cadáver de um homem em traje de rigor, com uma faca cravada no peito. Ele estava lívido, enrugado, repugnante. Só pelos anéis conseguiram identificá-lo, (p. 217)
Dorian pratica atos proibidos e recebe sua punição. Mas ele age sob prescrições mais rituais que éticas. A Bíblia, por exemplo, começa a história humana concedendo acesso a todas as árvores do mundo, menos uma. O mistério da lei divina aparece por todo o mundo em rituais arbitrários de proibição ou abstenção. Por desafiar o tempo, por sua hybris, Dorian entra num reino infra-humano, à mercê de cruéis agentes daimônicos. É devotado a seu retrato ( em latim clássico devotus é enfeitiçado, encantado, amaldiçoado, consagrado, dedicado ao serviço divino, marcado para o sacrifício) Dorian Gray não trata de moralidade, mas de tabu. O fim mostra, não a vitória da consciência, mas a destruição da pessoa pela obra de arte. Dorian diz - há alguma coisa de fatal num retrato. Tem uma vida própria.
Ao contemplar seu retrato, Dorian descobre sua beleza e jura a si mesmo manter-se sempre igual à própria efígie. Efetua, assim, a troca do animado, do vivente com o inanimado, do exterior com o interior. Dorian converte-se em sua efígie, objeto do culto de si mesmo que escapa ao envelhecimento (o duplo ideal), ao passo que o retrato torna-se o emblema de sua interioridade (imagem da consciência).
Dorian descobre um segundo duplo literário na história do parisiense que provou de todas as paixões e não se conforma em ter perdido sua beleza. O dândi perverso, companheiro de Lord Henry, que se coloca acima do humano por força do princípio do “tudo é permitido”, vê no retrato um espelho de sua alma; ao apunhalar sua efígie, suicida-se, efetuando na morte a inversão do superficial e do íntimo. Dorian petrifica-se numa imagem, sem ter alcançado a autoconsciência. A função de advertência, exercida pelo duplo ao ir enfeando, perdeu-se. Dorian luta até o fim contra a interiorização da consciência.
Parece-me interessante confrontar a obra literária com os parâmetros da crítica da realidade e terminar esta exposição com um lembrete: Narciso pode ignorar, por algum tempo, que estava enamorado de um reflexo da realidade. O perigo é de ter compreendido mal a existência do espelho.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPBELL, Joseph. Mitologia ocidental. São Paulo, Palas Atena, 1996.
ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino. São Paulo: Martins fontes, 1996.
ECO. Umberto. Sobre os espelhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989
FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d
GARDAIR, J.M. Fantasmes et logique du doublé. Paris: Larousse, 1992.
LASH, John. Twins and the Double. London: Thames and Hudson, 1993.
MORETTO. Fulvia.; Caminhos do decadentismo francês. São Paulo: Ática, 1996
PAGLIA. Camille. Personas Sexuais. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
RANK, Otto. Don Juan et le doublé. Paris: Payot, 1997
ROSSET, Clement. O real e seu duplo. Porto Alegre: L&PM, 1988
ROGERS, R. A psychoanalytic study of the double in literature, Detroit Wayne State University Press, 1990.
STOCKER, Dr. A. Le double. L’homme à la recontre de soi-même. Genebra, 1986.
TYMMS, R. Doubles in Literary psychology. Cambridge, 1999.
------ . “Histoires de doubles”, em La grande anthologie du fantastique, Presses Pocket, 1997.