DE COMO A EMÉRITA COZINHEIRA DONA FLOR
APORTA NA GUANABARA

Benedito Veiga (UNEB/UCSal)

Ai, nunca mais seus lábios,
sua língua, nunca mais
sua ardida boca de cebola crua!

Jorge Amado (1997: 35)

Não foi desprovido de provocações e de equívocos o lançamento de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, na Guanabara. A entrevista concedida por seu autor ao Correio da Manhã, publicada em 4 de junho de 1966, anuncia a chegada da heroína e explicita claramente esta afirmação: logo abaixo do título da matéria jornalística, “Jorge Amado: Dona Flor e seus dois maridos”, a redação do periódico, ao transcrever o sub-título do romance, “Esotérica e comovente história vivida por Dona Flor, emérita professora de arte culinária, e seus dois maridos o primeiro, Vadinho de apelido; de nome Dr. Teodoro Madureira, e farmacêutico o segundo[...]”, comete a esdrúxula substituição: “Estérica e comovente história de amor vivida por Dona Flor [...]”(AMADO, 4 jun. 1966:.2,1).

Apesar do erro gráfico evidente, a sonoridade do vocábulo não engana em sua significação: Dona Flor, com a estranheza dos dois maridos, deixa de ter uma história misteriosa (esotérica) e passa a desfrutar de uma história de psicopatia ligada ao descontrole histérico, a certo exagero sensual.

Esse escorrego midiático serve para esclarecer certas posições adotadas em referência à recepção crítica de Dona Flor, que muitas vezes resvalam em representações preconceituadas da mulher, em especial da baiana. De mudança em mudança de qualificativos, Dona Flor passa a despertar imagens atrativas ao turismo sexual na Bahia.

Nessa entrevista concedida a Guido Guerra, o escritor assume posições ante as recepções críticas. Em princípio, sem deixar de preocupar-se com questões estruturais do romance, ligadas ao aproveitamento do tempo e do espaço, Jorge Amado reafirma ser conscientemente, um escritor político:

D. Flor e seus dois maridos, sátira à pequena-burguesia, é um livro de intenção social e política, pois combate determinadas mazelas sociais e aponta um caminho. Política na expressão mais ampla da palavra.

Amado, seguindo tal posicionamento, recusa a idéia de que o romance contenha uma mensagem, uma palavra pouco de seu agrado, por ser pernóstica, e que serve não apenas para cobrir falhas e defeitos dos livros, peças e filmes como também para agredir bons livros, boas peças, bons filmes; no caso específico de Dona Flor, “sendo ela uma história moral contém um exemplo e uma lição. Contém um ensinamento, palavra que me agrada muito mais que mensagem” (Id., loc. cit).

Nessa mesma linha dedutiva, Jorge Amado, no discurso de recepção a Dias Gomes na Academia Brasileira de Letras, em 16 de julho de 1991, já advertia:

Socialismo sem democracia significa ditadura, e nenhuma ditadura presta, seja de direita ou de esquerda. Atrevo-me a dizer que as de esquerda são as piores, pois contra os de direita pode-se lutar de peito aberto; quem o fizer contra as de esquerda acaba patrulhado, acusado de reacionário, vendido, traidor.

Os lançamentos de Dona Flor na Guanabara são antecedidos pelo de São Paulo, em 15 de junho, na Livraria Teixeira, e seguidos pelos três ocorridos em Salvador: o emblemático lançamento d’Ajuda, o primeiro dessa ficção na Bahia, ocorrido na sede da Livraria Civilização Brasileira, na Rua Padre Vieira, nº 9 (antiga Rua d’Ajuda), em 1º de julho; o lançamento da Civilização, evento em conjunto com outros escritores baianos, efetivado no mesmo local do anterior, em 14 de julho; e o lançamento da Pindorama, acontecido na livraria do mesmo nome, na Rua Horácio César, nº 2, loja 1, Mercês, em 29 de julho.

Os acontecimentos fora do Estado da Bahia, realizados no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, por razões econômicas e/ou políticas ganham maior repercussão. O calendário dos lançamentos de Dona Flor cumpre interesses de marketing, midiáticos: a Livraria Martins, responsável pela primeira edição dessa narrativa, hoje empresa defunta, era uma conceituada editora paulista; por outra, a sede da Academia Brasileira de Letras, da qual Jorge Amado já se tornara um “imortal”, continua sendo no Rio de Janeiro, a ex-capital da República.

Politicamente, o campo está minado. É o tempo da ditadura militar, implantada no Brasil, após o golpe de 1964: o poder executivo, inchado de mando, impõe a insuficiência ao legislativo e ao judiciário. A república federativa se torna, na prática, unitária. Os lançamentos de Dona Flor na Guanabara são testemunhos dessa fase da história da pátria.

São exemplos desse tempo de desrespeitos democráticos em periódicos da Guanabara, na Tribuna da Imprensa:

Em 23 de junho de 1966, na primeira página do caderno primeiro, sai a manchete: “Jorge Amado: há ditadura”; no texto da notícia, diz o escritor que “o atual governo é uma ditadura igual a dos outros países latino-americanos, e que os intelectuais são perseguidos porque lutam pela liberdade” (NOTÍCIA DE REDAÇÃO, 23 jun. 1966:1,1).

No mesmo dia, a coluna de Mauro Braga divulga que Jorge Amado definiu-se sobre o regime do marechal Castelo Branco, ao afirmar que se trata daquela “clássica ditadura militar tão conhecida de nossos vizinhos da América Latina e que, agora, nos é imposta” (BRAGA, 23 jun. 1966:1,5)

No dia seguinte, 24 de junho, o mesmo periódico registra em seu noticiário: “Intelectuais acusam Negrão: cerceia liberdades do povo”. No texto, sabe-se que um manifesto, com mais de cem assinaturas de intelectuais e artistas, foi entregue ao governador Negrão de Lima, protestando contra o terrorismo cultural praticado por sua administração e acusando o não cumprimento das promessas contidas em sua plataforma eleitoral. Segundo a notícia:

Na manifestação, encabeçada por Otto Maria Carpeaux e Jorge Amado, a inteligência nacional demonstra sua repulsa às atitudes do governador, denunciando o cerceamento das liberdades individuais na Guanabara (NOTÍCIA DE REDAÇÃO, 24 jun. 1966: 1,4).

Sobre essas manifestações amadianas, não se pode esquecer as idéias de Walnice Nogueira Galvão, em Saco de gatos, a respeito dos relacionamentos entre o escritor e o Estado - mais especificamente, envolvendo Jorge Amado e Érico Veríssimo -, quando são discutidas as relatividades dos pontos de vista autorais, ante as situações históricas das relações entre escritores e governo e escritores e mercado cultural.

Silviano Santiago, em Vale quanto pesa, retoma as suposições de Galvão e, sem desmerecer os desempenhos de Jorge Amado e Érico Veríssimo, lembra que

Ao contrário da maioria dos nossos escritores, todos funcionários públicos e, portanto, compelidos ao silêncio conivente, Amado e Veríssimo puseram a boca no trombone e por isso mereciam os elogios da atenta leitora das entrevistas jornalísticas e dos romances. (SANTIAGO, 1982: 69).

Precedendo ao lançamento de Dona Flor na Guanabara, os jornais insistem nas qualidades culinárias da heroína amadiana, como André Ville, em sua coluna literária da Tribuna da Imprensa, de 6 de junho, que resume o romance dessa forma: “Uma famosa quituteira baiana, Dona Flor, está às voltas com intrincados problemas domésticos”.

A prioridade em ressaltar os méritos culinários de Dona Flor permite fazer surgir imagens/representações da mulher brasileira/baiana, associadas aos liames cama/cozinha, ou melhor, mulher/comida. O colunista completa o cardápio do imaginário do receptor quando acrescenta: “A paz de seu segundo casamento, com o pacato boticário Dr. Teodoro, é perturbada pelo estranho aparecimento de seu segundo marido, o inveterado jogador Vadinho, falecido cinco anos (VILLE, 30 jun. 1966:2,2)

Comida e infidelidade deliciam o gosto glutão do leitor - não sem certa vocação de Jorge Amado em satisfazer as aparências de um lauto banquete servido: as recepções de Dona Flor já começam a produzir imagens da baianidade e, em especial, da mulher baiana com suas verdades e idiossincrasias ligadas à classe social, miscigenação, etc. Tudo situado no cenário de uma cultura híbrida e pós-colonial, predominante na sociedade baiana.

Ao levantar algumas dessas figurações da mulher brasileira/baiana, sustentadas pela recepção crítica da obra deste escritor, constato vários modelos: o da mulher doméstica encarregada da preparação da boa comida caseira, servidora de seu senhor/esposo; o da mulher “rechonchuda, servida de carnes” (AMADO, op. cit., p. 65), modulada para os exercícios sexuais: esses dois exemplos se fundem no da mulher “sabor e arte”, a mulher boa de mesa e boa de cama. Seguem-se outros modelos: o da mulher socialmente desprendida do comportamento familiar pequeno-burguês, que a deixa livre e degradada, desejada enquanto fêmea, mas relegada para ser esposa; o da mulher fisicamente de aparência exótica - miscigenada, negra -, com costumes estranhos, o que a torna “mulher misteriosa”, ambiguamente amada e odiada; o da mulher livre da aceitação dos cânones ocidentais da escolha entre um ou outro, a mulher Dona Flor.

Se em Gabriela a crítica de Jorge Amado à hipocrisia dos padrões pequeno-burgueses de comportamento da sociedade perante o casamento, por exemplo, ainda se faz na perspectiva da heroína, em virtude de seu vínculo de classe social e de sua etnia, poder ou não se envolver em tal procedimento (“Mas como (eu, Nacib) casar com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no mercado dos escravos? Casamento era com senhorita prendada, de família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade” (AMADO, 2000: 200-201), em Dona Flor os ângulos de observação tomam, aparentemente, outros rumos, embora reforçando a recepção da supremacia do macho: com Vadinho, a personagem rompe com as normas do casamento, este considerado como escada de ascensão social, (como discute dona Lita: “Por que diabo você (Dona Rozilda) não deixa a menina (Dona Flor) casar, ela gosta do rapaz (Vadinho) e ele está caído por ela. Porque ele não é um todo-poderoso como você se meteu na cabeça?” (AMADO, 1997: 99); com Doutor Teodoro Madureira, as normas do jogo capitalista das uniões matrimoniais se afirmam, estas tomadas enquanto instrumentos de vida pacata e com segurança econômica (como afiança dona Dinorá:

- Adivinhei há muitos meses, vi na bola de cristal e disse a todo mundo: um senhor distinto (Doutor Teodoro), homem de bem, doutor e com dinheiro. Não foi verdade? Minhas alvíssaras, senhora dona Flor! (Id., ibid., p. 239).

Nessas representações amadianas, tem lugar marcante a subordinação feminina a critérios machistas, que crivam a condição de mulher escolhida por um homem.

No Rio de Janeiro, a capital do Estado da Guanabara, o primeiro evento ligado à nova ficção amadiana acontece,por exemplo, como confirma o Jornal do Comércio, de 10-11 de junho: “O lançamento do novo romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, será a 17 do corrente, na Livraria São José, às 17 horas” (MORAES, 10-11 jun. 1966: 1,6). E o Correio da Manhã, de 12 de junho, confirma: “Sexta-feira, dia 17, na Livraria São José; tarde de autógrafos de Jorge Amado, com Dona Flor e seus dois maridos” (CONDÉ, 12 jun. 1966:4,4).

Em certo momento, como trazem alguns periódicos, como o Jornal do Comércio de 6-7 de junho, o lançamento da São José vem conjugado a notícias sobre o jantar que será feito após, em homenagem a Adonias Filho, no mesmo dia 17: amigos deste escritor vão-se confraternizar, por motivo do recente sucesso do seu livro Corpo Vivo em tradução alemã, e pelo trabalho que o Diretor da Biblioteca Nacional vem desenvolvendo: “A homenagem constará de um grande jantar na Churrascaria Recreio, às 21 horas daquele dia. As listas de adesão se encontram na Livraria São José, na Livraria Santana e no Pen Clube do Brasil” (MORAES, 6-7 jun. 1966:1,6).

Em Salvador, na coluna de Sylvio Lamenha do Diário de Notícias de 17 de junho, ecoavam os acontecimentos sulinos:

Hoje, na Livraria São José, na Guanabara, uma sensacional tarde d’autógrafos, até agora, a maior do ano: o lançamento de Dona Flor e seus dois maridos, do nosso grande Jorge Amado (com ilustrações de Floriano).

Sem deixarem de evocar o próximo lançamento d’Ajuda, que depois irromperia na capital baiana, também com prognósticos recordes, comenta o colunista: “A Bahia vai esperar ansiosamente até primeiro de julho, quando o último romance do ‘Ficcionista da Bahia’ estará em nossas livrarias, em outra grande tarde cultural (LAMENHA, 17 jun. 1966:2,3).

O Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, em 18 de junho registra a positividade do ocorrido: “Foi um grande sucesso o lançamento ontem, no Rio, do novo romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos” (MORAES, 18 jun. 1966: 1, 6). A Tribuna da Imprensa de 22 de junho mostra dados da vendagem: “Na última quinta-feira houve o lançamento oficial do livro, na São José. E só nesse dia, nessa livraria, foram vendidos 657 exemplares do novo romance de Jorge Amado” (FERNANDES, 22 jun. 1966:1,3).

No dia 21 de junho, o Correio da Manhã registra o segundo lançamento de Dona Flor, na Guanabara, o terceiro nacional:

A União Brasileira de Escritores promove hoje às dezenove horas um coquetel em homenagem ao escritor Jorge Amado, no Berro D’Água, no Panorama Palace Hotel. O escritor autografará o seu livro Dona Flor e seus dois maridos (NOTÍCIA DE REDAÇÃO, 21 jun. 1966:1,10).

No mesmo periódico e na mesma data, José Conde, em sua coluna “Escritores e Livros”, reitera:

União Brasileira de Escritores convida para o coquetel e noite de autógrafos, no Berro D’Água (Panorama Palace Hotel), hoje, a partir das 18 h, com que homenageia Jorge Amado, pelo lançamento do seu novo romance Dona Flor e seus dois maridos (CONDÉ, 21 jun. 1966:2,2).

A Tribuna da Imprensa, em 22 de junho, faz um rápido balanço do lançamento do Berro D’Água de Dona Flor:

Ontem, continuando esse verdadeiro ‘festival Jorge Amado`, à beira do bar que tem o nome inspirado num dos personagens do próprio Jorge: Berro D’Água. E mais 312 livros foram vendidos nessa ocasião.

Dona Flor receberia da Guanabara uma das melhores - senão a melhor - oferta de âncoras para seu navegar em um oceano, muitas vezes, tumultuado por um vendaval de desencontros. Roberto DaMatta, intelectual brasileiro e internacional, antropólogo, crítico literário, no melhor sentido dos Estudos Culturais, por vezes fixado no Rio de Janeiro, lhe ofereceria a oportunidade de um abrigo, talvez, o mais seguro.

A ênfase dada por Jorge Amado ao carnavalesco, em seu primeiro romance, é curiosa, sobretudo quando tal recurso é tomado como um caminho oportuno na leitura do Brasil. DaMatta, próximo a Bakhtin, escreve que o carnaval estabelece, nas sociedades hierarquizadas, um continuum crivado pelo diálogo e pela comunicação explosiva, sensual e concreta de todas as categorias e grupos sociais:

As distâncias são eliminadas precisamente porque o mundo está de cabeça para baixo, perdendo temporariamente a sociedade os seus centros regulares de poder e hierarquização. Há, pois, no carnaval, a possibilidade de surgimento de muitas vozes e de muitos diálogos, numa fragmentação e pulverização dos esquemas dominantes que se fundam em um controle jurídico-religioso-político ancorado no Estado. (DaMATTA, 1997:109)

Jorge Amado atinge uma nova fase de sua produção, por exemplo, no romance Dona Flor. Novamente, o Brasil está sob um regime de governo ditatorial; agora, o implantado no País, desde a instauração do golpe militar de 1964. A ficção Dona Flor chega um ano e meio antes do famigerado AI-5; contudo já encontra, entre outros arbítrios, as intervenções federais nos municípios, já encontra as cassações pelo executivo federal dos mandatos do legislativo em todos os níveis, já encontra a não convocação dos suplentes dos titulares cassados, mas presencia o Marechal Castelo Branco decretar o recesso do Congresso.

O escritor, à procura de outros modos de leitura do Brasil, emprega, como tipo de narrativa, a novela carnavalesca, onde escritor, público leitor e personagens trocam continuamente de posição e abre espaço para os fatos da vida e da sociedade. Suas personagens são os marginais, os sem mercado de trabalho, tendo como opção suas relações de amizade. Jorge Amado, nesse momento, procura dar espaço para que a obra literária, num país de analfabetos como o Brasil, venha a tornar-se um instrumento de transformação social, como analisa Roberto DaMatta:

[...] responde com o carnavalesco; ao jurídico e partidário, ele contrapõe o pessoal, o singular e o milagroso; ao materialismo formalista e retórico, ele ataca com o informal e o misterioso; à vida definida como fórmula econômica, ele apresenta o mundo como uma complicada teia de relações pessoais que sustenta a esperança nas boas amizades e encontros onde se pode celebrar a relação pela relação. (DaMATTA, 1997: 117)

Neste sentido, a compreensão do Brasil como o país do carnaval não se colocaria nas polaridades: nem somente o lugar da seriedade e das leis, nem também apenas o espaço da anarquia, da brincadeira, da folia. Os extremos estariam dialeticamente relacionados, em vertentes quase sempre despercebidas, ou não levadas em conta. Estaria Jorge Amado sugerindo a junção das crenças burguesas da igualdade, da liberdade e da fraternidade com nosso hibridismo institucionalizado?

O carnaval, tomado, pois, como uma possibilidade de leitura do Brasil, atenta sobre os três modos básicos por meio dos quais se pode ritualizar o mundo brasileiro, desdobrando-se a realidade brasileira diante de si própria, colocado, como o faz Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis, ao lado da parada militar e ao lado da procissão. O carnaval, fundado como um ritual nacional, aberto às possibilidades de se dramatizar valores globais, críticos e abrangentes da nossa sociedade:

[...] os carnavais são momentos muito mais individualizados, sendo vistos como propriedade de todos e como momentos em que a sociedade se descentraliza. Daí o uso do adjetivo “carnaval” para situações de alto desentendimento, quando o bate-boca e a confusão atingem o limite da desordem porque todos falam ao mesmo tempo, sinal de uma descentralização máxima. (DaMATTA, 1997: 48)

O descentrar de campos de poder, durante o carnaval, permite que inúmeras vozes soem, que múltiplas visibilidades apareçam - mesmo as mascaradas -, dando espaço a que o polifônico e o múltiplo da sociedade brasileira possam ser escutados, vistos e - quem sabe - decifrados ou traduzidos ou aceitos..., mesmo que por apenas três dias.

As descrenças de Paulo Rigger na possibilidade de leitura do dilema do Brasil - um Estado ruim de se morar e uma sociedade boa de se viver - talvez se encontrem sanadas na leitura relacional (carnavalizada) de Dona Flor e Seus Dois Maridos, quando, nos termos da proposta de Roberto DaMatta, em “Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e seus dois brasis” (DaMATTA, 1997-a), o construto europeizante, central - ser ou não ser -, é deslocado por Dona Flor, na escolha da opção/não opção de aceitar seus dois maridos, deixando de lado a dúvida que a atormentava:

Por que cada criatura se divide em duas, por que é necessário sempre se dilacerar entre dois amores, por que o coração contém de uma só vez dois sentimentos, controversos e opostos? [...] Por que optar se quero as duas coisas? Por que, me diga? (AMADO, 1997: 410).

A convivência amorosa de Dona Flor com Vadinho e com Dr. Teodoro Madureira representaria, então, o encontro tranqüilo do prazer com o dever nos brasileiros?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Jorge (Entrevista). In: GUERRA, Guido. Jorge Amado: Dona Flor e seus dois maridos. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 jun. 1966. Caderno 2, p. 1.

------. Dona Flor e seus dois maridos. 48ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.

------. Gabriela, cravo e canela. 83ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

BRAGA, Mauro. Jorge Amado: governo é ditadura. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23 jun. 1966. Caderno 1, p. 5.

CONDÉ, José. Escritores e livros - Dia a dia. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 12 jun. 1966. Caderno 4, p. 4.

------. Escritores e livros - Dia a dia. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 21 jun. 1966. Caderno 2, p. 2.

FERNANDES, Hélio. Fatos e rumores - Em primeira mão - Ur - gente. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 22 jun. 1966. Caderno 1, p. 3.

LAMENHA, Sylvio. HI - SO. Diário de Notícias. Salvador, 17 jun. 1966. Caderno 2, p. 3.

MORAES, Santos. Gazetilha literária - Notícias. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 10-11 jun. 1966. Caderno 1, p. 6.

------. Gazetilha literária. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 6-7 jun. 1966. Caderno 1, p. 6.

NOTÍCIA DE REDAÇÃO. Intelectuais acusam Negrão: cerceia liberdades do povo. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 24 jun. 1966. Caderno 1, p. 4.

------. Jorge Amado: há ditadura. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 23 jun. 1966. Caderno 1, p. 1.

------. Quatro cantos. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 21 jun. 1966. Caderno 1, p. 10.

Roberto DaMATTA. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

------. Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e seus dois brasis. Cadernos de literatura brasileira: Jorge Amado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 3, p. 120-135, mar. 1997.

SANTIAGO, Silviano. O teorema de Walnice e sua recíproca. In: ---. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 69-88. p. 69.

SANTOS, Itazil Benício dos. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993.

VILLE, André. Dona Flor e seus dois maridos. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30 jun. 1966. Caderno 2, p. 2.

DE COMO A EMÉRITA COZINHEIRA DONA FLOR
APORTA NA GUANABARA

Benedito Veiga (UNEB/UCSal)

Ai, nunca mais seus lábios,

sua língua, nunca mais

sua ardida boca de cebola crua!

Jorge Amado (1997: 35)

Não foi desprovido de provocações e de equívocos o lançamento de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, na Guanabara. A entrevista concedida por seu autor ao Correio da Manhã, publicada em 4 de junho de 1966, anuncia a chegada da heroína e explicita claramente esta afirmação: logo abaixo do título da matéria jornalística, “Jorge Amado: Dona Flor e seus dois maridos”, a redação do periódico, ao transcrever o sub-título do romance, “Esotérica e comovente história vivida por Dona Flor, emérita professora de arte culinária, e seus dois maridos o primeiro, Vadinho de apelido; de nome Dr. Teodoro Madureira, e farmacêutico o segundo[...]”, comete a esdrúxula substituição: “Estérica e comovente história de amor vivida por Dona Flor [...]”(AMADO, 4 jun. 1966:.2,1).

Apesar do erro gráfico evidente, a sonoridade do vocábulo não engana em sua significação: Dona Flor, com a estranheza dos dois maridos, deixa de ter uma história misteriosa (esotérica) e passa a desfrutar de uma história de psicopatia ligada ao descontrole histérico, a certo exagero sensual.

Esse escorrego midiático serve para esclarecer certas posições adotadas em referência à recepção crítica de Dona Flor, que muitas vezes resvalam em representações preconceituadas da mulher, em especial da baiana. De mudança em mudança de qualificativos, Dona Flor passa a despertar imagens atrativas ao turismo sexual na Bahia.

Nessa entrevista concedida a Guido Guerra, o escritor assume posições ante as recepções críticas. Em princípio, sem deixar de preocupar-se com questões estruturais do romance, ligadas ao aproveitamento do tempo e do espaço, Jorge Amado reafirma ser conscientemente, um escritor político:

D. Flor e seus dois maridos, sátira à pequena-burguesia, é um livro de intenção social e política, pois combate determinadas mazelas sociais e aponta um caminho. Política na expressão mais ampla da palavra.

Amado, seguindo tal posicionamento, recusa a idéia de que o romance contenha uma mensagem, uma palavra pouco de seu agrado, por ser pernóstica, e que serve não apenas para cobrir falhas e defeitos dos livros, peças e filmes como também para agredir bons livros, boas peças, bons filmes; no caso específico de Dona Flor, “sendo ela uma história moral contém um exemplo e uma lição. Contém um ensinamento, palavra que me agrada muito mais que mensagem” (Id., loc. cit).

Nessa mesma linha dedutiva, Jorge Amado, no discurso de recepção a Dias Gomes na Academia Brasileira de Letras, em 16 de julho de 1991, já advertia:

Socialismo sem democracia significa ditadura, e nenhuma ditadura presta, seja de direita ou de esquerda. Atrevo-me a dizer que as de esquerda são as piores, pois contra os de direita pode-se lutar de peito aberto; quem o fizer contra as de esquerda acaba patrulhado, acusado de reacionário, vendido, traidor.

Os lançamentos de Dona Flor na Guanabara são antecedidos pelo de São Paulo, em 15 de junho, na Livraria Teixeira, e seguidos pelos três ocorridos em Salvador: o emblemático lançamento d’Ajuda, o primeiro dessa ficção na Bahia, ocorrido na sede da Livraria Civilização Brasileira, na Rua Padre Vieira, nº 9 (antiga Rua d’Ajuda), em 1º de julho; o lançamento da Civilização, evento em conjunto com outros escritores baianos, efetivado no mesmo local do anterior, em 14 de julho; e o lançamento da Pindorama, acontecido na livraria do mesmo nome, na Rua Horácio César, nº 2, loja 1, Mercês, em 29 de julho.

Os acontecimentos fora do Estado da Bahia, realizados no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, por razões econômicas e/ou políticas ganham maior repercussão. O calendário dos lançamentos de Dona Flor cumpre interesses de marketing, midiáticos: a Livraria Martins, responsável pela primeira edição dessa narrativa, hoje empresa defunta, era uma conceituada editora paulista; por outra, a sede da Academia Brasileira de Letras, da qual Jorge Amado já se tornara um “imortal”, continua sendo no Rio de Janeiro, a ex-capital da República.

Politicamente, o campo está minado. É o tempo da ditadura militar, implantada no Brasil, após o golpe de 1964: o poder executivo, inchado de mando, impõe a insuficiência ao legislativo e ao judiciário. A república federativa se torna, na prática, unitária. Os lançamentos de Dona Flor na Guanabara são testemunhos dessa fase da história da pátria.

São exemplos desse tempo de desrespeitos democráticos em periódicos da Guanabara, na Tribuna da Imprensa:

Em 23 de junho de 1966, na primeira página do caderno primeiro, sai a manchete: “Jorge Amado: há ditadura”; no texto da notícia, diz o escritor que “o atual governo é uma ditadura igual a dos outros países latino-americanos, e que os intelectuais são perseguidos porque lutam pela liberdade” (NOTÍCIA DE REDAÇÃO, 23 jun. 1966:1,1).

No mesmo dia, a coluna de Mauro Braga divulga que Jorge Amado definiu-se sobre o regime do marechal Castelo Branco, ao afirmar que se trata daquela “clássica ditadura militar tão conhecida de nossos vizinhos da América Latina e que, agora, nos é imposta” (BRAGA, 23 jun. 1966:1,5)

No dia seguinte, 24 de junho, o mesmo periódico registra em seu noticiário: “Intelectuais acusam Negrão: cerceia liberdades do povo”. No texto, sabe-se que um manifesto, com mais de cem assinaturas de intelectuais e artistas, foi entregue ao governador Negrão de Lima, protestando contra o terrorismo cultural praticado por sua administração e acusando o não cumprimento das promessas contidas em sua plataforma eleitoral. Segundo a notícia:

Na manifestação, encabeçada por Otto Maria Carpeaux e Jorge Amado, a inteligência nacional demonstra sua repulsa às atitudes do governador, denunciando o cerceamento das liberdades individuais na Guanabara (NOTÍCIA DE REDAÇÃO, 24 jun. 1966: 1,4).

Sobre essas manifestações amadianas, não se pode esquecer as idéias de Walnice Nogueira Galvão, em Saco de gatos, a respeito dos relacionamentos entre o escritor e o Estado - mais especificamente, envolvendo Jorge Amado e Érico Veríssimo -, quando são discutidas as relatividades dos pontos de vista autorais, ante as situações históricas das relações entre escritores e governo e escritores e mercado cultural.

Silviano Santiago, em Vale quanto pesa, retoma as suposições de Galvão e, sem desmerecer os desempenhos de Jorge Amado e Érico Veríssimo, lembra que

Ao contrário da maioria dos nossos escritores, todos funcionários públicos e, portanto, compelidos ao silêncio conivente, Amado e Veríssimo puseram a boca no trombone e por isso mereciam os elogios da atenta leitora das entrevistas jornalísticas e dos romances. (SANTIAGO, 1982: 69).

Precedendo ao lançamento de Dona Flor na Guanabara, os jornais insistem nas qualidades culinárias da heroína amadiana, como André Ville, em sua coluna literária da Tribuna da Imprensa, de 6 de junho, que resume o romance dessa forma: “Uma famosa quituteira baiana, Dona Flor, está às voltas com intrincados problemas domésticos”.

A prioridade em ressaltar os méritos culinários de Dona Flor permite fazer surgir imagens/representações da mulher brasileira/baiana, associadas aos liames cama/cozinha, ou melhor, mulher/comida. O colunista completa o cardápio do imaginário do receptor quando acrescenta: “A paz de seu segundo casamento, com o pacato boticário Dr. Teodoro, é perturbada pelo estranho aparecimento de seu segundo marido, o inveterado jogador Vadinho, falecido cinco anos (VILLE, 30 jun. 1966:2,2)

Comida e infidelidade deliciam o gosto glutão do leitor - não sem certa vocação de Jorge Amado em satisfazer as aparências de um lauto banquete servido: as recepções de Dona Flor já começam a produzir imagens da baianidade e, em especial, da mulher baiana com suas verdades e idiossincrasias ligadas à classe social, miscigenação, etc. Tudo situado no cenário de uma cultura híbrida e pós-colonial, predominante na sociedade baiana.

Ao levantar algumas dessas figurações da mulher brasileira/baiana, sustentadas pela recepção crítica da obra deste escritor, constato vários modelos: o da mulher doméstica encarregada da preparação da boa comida caseira, servidora de seu senhor/esposo; o da mulher “rechonchuda, servida de carnes” (AMADO, op. cit., p. 65), modulada para os exercícios sexuais: esses dois exemplos se fundem no da mulher “sabor e arte”, a mulher boa de mesa e boa de cama. Seguem-se outros modelos: o da mulher socialmente desprendida do comportamento familiar pequeno-burguês, que a deixa livre e degradada, desejada enquanto fêmea, mas relegada para ser esposa; o da mulher fisicamente de aparência exótica - miscigenada, negra -, com costumes estranhos, o que a torna “mulher misteriosa”, ambiguamente amada e odiada; o da mulher livre da aceitação dos cânones ocidentais da escolha entre um ou outro, a mulher Dona Flor.

Se em Gabriela a crítica de Jorge Amado à hipocrisia dos padrões pequeno-burgueses de comportamento da sociedade perante o casamento, por exemplo, ainda se faz na perspectiva da heroína, em virtude de seu vínculo de classe social e de sua etnia, poder ou não se envolver em tal procedimento (“Mas como (eu, Nacib) casar com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no mercado dos escravos? Casamento era com senhorita prendada, de família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade” (AMADO, 2000: 200-201), em Dona Flor os ângulos de observação tomam, aparentemente, outros rumos, embora reforçando a recepção da supremacia do macho: com Vadinho, a personagem rompe com as normas do casamento, este considerado como escada de ascensão social, (como discute dona Lita: “Por que diabo você (Dona Rozilda) não deixa a menina (Dona Flor) casar, ela gosta do rapaz (Vadinho) e ele está caído por ela. Porque ele não é um todo-poderoso como você se meteu na cabeça?” (AMADO, 1997: 99); com Doutor Teodoro Madureira, as normas do jogo capitalista das uniões matrimoniais se afirmam, estas tomadas enquanto instrumentos de vida pacata e com segurança econômica (como afiança dona Dinorá:

- Adivinhei há muitos meses, vi na bola de cristal e disse a todo mundo: um senhor distinto (Doutor Teodoro), homem de bem, doutor e com dinheiro. Não foi verdade? Minhas alvíssaras, senhora dona Flor! (Id., ibid., p. 239).

Nessas representações amadianas, tem lugar marcante a subordinação feminina a critérios machistas, que crivam a condição de mulher escolhida por um homem.

No Rio de Janeiro, a capital do Estado da Guanabara, o primeiro evento ligado à nova ficção amadiana acontece,por exemplo, como confirma o Jornal do Comércio, de 10-11 de junho: “O lançamento do novo romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, será a 17 do corrente, na Livraria São José, às 17 horas” (MORAES, 10-11 jun. 1966: 1,6). E o Correio da Manhã, de 12 de junho, confirma: “Sexta-feira, dia 17, na Livraria São José; tarde de autógrafos de Jorge Amado, com Dona Flor e seus dois maridos” (CONDÉ, 12 jun. 1966:4,4).

Em certo momento, como trazem alguns periódicos, como o Jornal do Comércio de 6-7 de junho, o lançamento da São José vem conjugado a notícias sobre o jantar que será feito após, em homenagem a Adonias Filho, no mesmo dia 17: amigos deste escritor vão-se confraternizar, por motivo do recente sucesso do seu livro Corpo Vivo em tradução alemã, e pelo trabalho que o Diretor da Biblioteca Nacional vem desenvolvendo: “A homenagem constará de um grande jantar na Churrascaria Recreio, às 21 horas daquele dia. As listas de adesão se encontram na Livraria São José, na Livraria Santana e no Pen Clube do Brasil” (MORAES, 6-7 jun. 1966:1,6).

Em Salvador, na coluna de Sylvio Lamenha do Diário de Notícias de 17 de junho, ecoavam os acontecimentos sulinos:

Hoje, na Livraria São José, na Guanabara, uma sensacional tarde d’autógrafos, até agora, a maior do ano: o lançamento de Dona Flor e seus dois maridos, do nosso grande Jorge Amado (com ilustrações de Floriano).

Sem deixarem de evocar o próximo lançamento d’Ajuda, que depois irromperia na capital baiana, também com prognósticos recordes, comenta o colunista: “A Bahia vai esperar ansiosamente até primeiro de julho, quando o último romance do ‘Ficcionista da Bahia’ estará em nossas livrarias, em outra grande tarde cultural (LAMENHA, 17 jun. 1966:2,3).

O Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, em 18 de junho registra a positividade do ocorrido: “Foi um grande sucesso o lançamento ontem, no Rio, do novo romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos” (MORAES, 18 jun. 1966: 1, 6). A Tribuna da Imprensa de 22 de junho mostra dados da vendagem: “Na última quinta-feira houve o lançamento oficial do livro, na São José. E só nesse dia, nessa livraria, foram vendidos 657 exemplares do novo romance de Jorge Amado” (FERNANDES, 22 jun. 1966:1,3).

No dia 21 de junho, o Correio da Manhã registra o segundo lançamento de Dona Flor, na Guanabara, o terceiro nacional:

A União Brasileira de Escritores promove hoje às dezenove horas um coquetel em homenagem ao escritor Jorge Amado, no Berro D’Água, no Panorama Palace Hotel. O escritor autografará o seu livro Dona Flor e seus dois maridos (NOTÍCIA DE REDAÇÃO, 21 jun. 1966:1,10).

No mesmo periódico e na mesma data, José Conde, em sua coluna “Escritores e Livros”, reitera:

União Brasileira de Escritores convida para o coquetel e noite de autógrafos, no Berro D’Água (Panorama Palace Hotel), hoje, a partir das 18 h, com que homenageia Jorge Amado, pelo lançamento do seu novo romance Dona Flor e seus dois maridos (CONDÉ, 21 jun. 1966:2,2).

A Tribuna da Imprensa, em 22 de junho, faz um rápido balanço do lançamento do Berro D’Água de Dona Flor:

Ontem, continuando esse verdadeiro ‘festival Jorge Amado`, à beira do bar que tem o nome inspirado num dos personagens do próprio Jorge: Berro D’Água. E mais 312 livros foram vendidos nessa ocasião.

Dona Flor receberia da Guanabara uma das melhores - senão a melhor - oferta de âncoras para seu navegar em um oceano, muitas vezes, tumultuado por um vendaval de desencontros. Roberto DaMatta, intelectual brasileiro e internacional, antropólogo, crítico literário, no melhor sentido dos Estudos Culturais, por vezes fixado no Rio de Janeiro, lhe ofereceria a oportunidade de um abrigo, talvez, o mais seguro.

A ênfase dada por Jorge Amado ao carnavalesco, em seu primeiro romance, é curiosa, sobretudo quando tal recurso é tomado como um caminho oportuno na leitura do Brasil. DaMatta, próximo a Bakhtin, escreve que o carnaval estabelece, nas sociedades hierarquizadas, um continuum crivado pelo diálogo e pela comunicação explosiva, sensual e concreta de todas as categorias e grupos sociais:

As distâncias são eliminadas precisamente porque o mundo está de cabeça para baixo, perdendo temporariamente a sociedade os seus centros regulares de poder e hierarquização. Há, pois, no carnaval, a possibilidade de surgimento de muitas vozes e de muitos diálogos, numa fragmentação e pulverização dos esquemas dominantes que se fundam em um controle jurídico-religioso-político ancorado no Estado. (DaMATTA, 1997:109)

Jorge Amado atinge uma nova fase de sua produção, por exemplo, no romance Dona Flor. Novamente, o Brasil está sob um regime de governo ditatorial; agora, o implantado no País, desde a instauração do golpe militar de 1964. A ficção Dona Flor chega um ano e meio antes do famigerado AI-5; contudo já encontra, entre outros arbítrios, as intervenções federais nos municípios, já encontra as cassações pelo executivo federal dos mandatos do legislativo em todos os níveis, já encontra a não convocação dos suplentes dos titulares cassados, mas presencia o Marechal Castelo Branco decretar o recesso do Congresso.

O escritor, à procura de outros modos de leitura do Brasil, emprega, como tipo de narrativa, a novela carnavalesca, onde escritor, público leitor e personagens trocam continuamente de posição e abre espaço para os fatos da vida e da sociedade. Suas personagens são os marginais, os sem mercado de trabalho, tendo como opção suas relações de amizade. Jorge Amado, nesse momento, procura dar espaço para que a obra literária, num país de analfabetos como o Brasil, venha a tornar-se um instrumento de transformação social, como analisa Roberto DaMatta:

[...] responde com o carnavalesco; ao jurídico e partidário, ele contrapõe o pessoal, o singular e o milagroso; ao materialismo formalista e retórico, ele ataca com o informal e o misterioso; à vida definida como fórmula econômica, ele apresenta o mundo como uma complicada teia de relações pessoais que sustenta a esperança nas boas amizades e encontros onde se pode celebrar a relação pela relação. (DaMATTA, 1997: 117)

Neste sentido, a compreensão do Brasil como o país do carnaval não se colocaria nas polaridades: nem somente o lugar da seriedade e das leis, nem também apenas o espaço da anarquia, da brincadeira, da folia. Os extremos estariam dialeticamente relacionados, em vertentes quase sempre despercebidas, ou não levadas em conta. Estaria Jorge Amado sugerindo a junção das crenças burguesas da igualdade, da liberdade e da fraternidade com nosso hibridismo institucionalizado?

O carnaval, tomado, pois, como uma possibilidade de leitura do Brasil, atenta sobre os três modos básicos por meio dos quais se pode ritualizar o mundo brasileiro, desdobrando-se a realidade brasileira diante de si própria, colocado, como o faz Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis, ao lado da parada militar e ao lado da procissão. O carnaval, fundado como um ritual nacional, aberto às possibilidades de se dramatizar valores globais, críticos e abrangentes da nossa sociedade:

[...] os carnavais são momentos muito mais individualizados, sendo vistos como propriedade de todos e como momentos em que a sociedade se descentraliza. Daí o uso do adjetivo “carnaval” para situações de alto desentendimento, quando o bate-boca e a confusão atingem o limite da desordem porque todos falam ao mesmo tempo, sinal de uma descentralização máxima. (DaMATTA, 1997: 48)

O descentrar de campos de poder, durante o carnaval, permite que inúmeras vozes soem, que múltiplas visibilidades apareçam - mesmo as mascaradas -, dando espaço a que o polifônico e o múltiplo da sociedade brasileira possam ser escutados, vistos e - quem sabe - decifrados ou traduzidos ou aceitos..., mesmo que por apenas três dias.

As descrenças de Paulo Rigger na possibilidade de leitura do dilema do Brasil - um Estado ruim de se morar e uma sociedade boa de se viver - talvez se encontrem sanadas na leitura relacional (carnavalizada) de Dona Flor e Seus Dois Maridos, quando, nos termos da proposta de Roberto DaMatta, em “Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e seus dois brasis” (DaMATTA, 1997-a), o construto europeizante, central - ser ou não ser -, é deslocado por Dona Flor, na escolha da opção/não opção de aceitar seus dois maridos, deixando de lado a dúvida que a atormentava:

Por que cada criatura se divide em duas, por que é necessário sempre se dilacerar entre dois amores, por que o coração contém de uma só vez dois sentimentos, controversos e opostos? [...] Por que optar se quero as duas coisas? Por que, me diga? (AMADO, 1997: 410).

A convivência amorosa de Dona Flor com Vadinho e com Dr. Teodoro Madureira representaria, então, o encontro tranqüilo do prazer com o dever nos brasileiros?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FERNANDES, Hélio. Fatos e rumores - Em primeira mão - Ur - gente. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 22 jun. 1966. Caderno 1, p. 3.

LAMENHA, Sylvio. HI - SO. Diário de Notícias. Salvador, 17 jun. 1966. Caderno 2, p. 3.

MORAES, Santos. Gazetilha literária - Notícias. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 10-11 jun. 1966. Caderno 1, p. 6.

------. Gazetilha literária. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 6-7 jun. 1966. Caderno 1, p. 6.

NOTÍCIA DE REDAÇÃO. Intelectuais acusam Negrão: cerceia liberdades do povo. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 24 jun. 1966. Caderno 1, p. 4.

------. Jorge Amado: há ditadura. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 23 jun. 1966. Caderno 1, p. 1.

------. Quatro cantos. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 21 jun. 1966. Caderno 1, p. 10.

Roberto DaMATTA. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

------. Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e seus dois brasis. Cadernos de literatura brasileira: Jorge Amado. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 3, p. 120-135, mar. 1997.

SANTIAGO, Silviano. O teorema de Walnice e sua recíproca. In: ---. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 69-88. p. 69.

SANTOS, Itazil Benício dos. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993.

VILLE, André. Dona Flor e seus dois maridos. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30 jun. 1966. Caderno 2, p. 2.