De
texto em texto
lendo e escrevendo na “era eletrônica”
Ana Cláudia Viegas
Pierre Lévy, em suas reflexões sobre o que é o virtual, afirma que “o texto continua subsistindo, mas a página furtou-se” (LÉVY, 1996: 48), apagando-se esta sob a inundação informacional, indo seus signos, não mais cercados pelas margens, juntar-se à torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxo e metamorfose constantes, apresenta-se nas telas como a atualização de um hipertexto de suporte informático.
Ao pensarmos a literatura contemporânea em diálogo com as novas tecnologias, queremos observar de que modo o uso destas se traduz em inovações estéticas nas narrativas atuais, ou seja, como se dá o trânsito entre página e tela, de que modo a primeira, tendo-se “furtado”, se recompõe para expressar esse texto virtualizado. Não se consideram, entretanto, os meios como fontes de inovações em si, mas as mediações entre novas práticas de comunicação e transformações sociais. (Cf. MARTÍN-BARBERO, 2001) Walter Benjamin, em seu clássico texto sobre as mudanças que a invenção da fotografia e do cinema teriam provocado na natureza da arte e na percepção humana (BENJAMIN, s/d: 185-6), identifica três linhas evolutivas nas intersecções entre arte e técnica: em primeiro lugar, a técnica atua sobre uma certa forma de arte; em segundo, as formas artísticas tradicionais tentam produzir efeitos que adiante serão obtidos mais facil e eficazmente pelas novas formas; em terceiro, transformações sociais acarretam mudanças na recepção, posteriormente utilizadas pelas novas formas de arte. Por essa perspectiva, não se vêem as estratégias retóricas utilizadas na criação literária atual como absolutas novidades introduzidas pelo uso das tecnologias eletrônica e digital, mas sim num contexto de reorganização da percepção e da experiência, potencializada por esses novos media.
O estudo das obras do final do século XIX e início do XX pelo viés de sua interação com a fotografia, o cinema, a máquina de escrever, a imprensa, enfim os media emblemáticos da vida moderna, tem-se mostrado bastante produtivo para um mapeamento do processo de profissionalização do escritor e de uma revisão da literatura enquanto técnica. Passando de uma representação da técnica à apropriação de alguns de seus procedimentos, transforma-se, naquelas décadas, o próprio fazer literário, redefinindo-se, inclusive, seu espaço de circulação e seus valores. (Cf. SÜSSEKIND, 1987)
Na virada do século XX para o XXI, a articulação dos circuitos de produção, transmissão e recepção da literatura com outras esferas da mídia e a apropriação de recursos expressivos destas pelos textos literários lançam novos desafios para essa prática tradicionalmente fundamentada na cultura do livro, mas hoje hibridizada com gêneros não-literários e meios de comunicação audiovisuais. Afinal, a difusão desses meios, sobretudo a televisão a partir dos anos 1950, e, já no final da década de 1970, dos computadores marcaria um novo limite nas transformações das representações e dos saberes. Para autores como Pierre Lévy, viveríamos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, “um novo estilo de humanidade é inventado” (LÉVY, 1993: 17).
O modo de assistir à televisão transformou-se a partir da invenção do controle remoto, que permite ao telespectador “zapear” entre imagens de diferentes canais, assim como a conexão em rede permite ao internauta navegar através de sites e links diversos. A leitura das telas, portanto, caracterizar-se-ia por um deslizamento entre superfícies, acompanhado da montagem fragmentária de novos textos. Detalhemos esses dois procedimentos, o zapping e o modo de leitura hipertextual, característicos, respectivamente, da estética televisiva e da informática, para, em seguida, verificar como as páginas de Luiz Ruffato os encenam no papel.
Segundo Beatriz Sarlo (1997: 57-8), o uso do controle remoto, essa “máquina sintática”, “moviola caseira de resultados imprevisíveis e instantâneos”, se faz segundo leis que a própria televisão ensinou a seus espectadores: produção de um grande acúmulo de imagens de alto impacto e, paradoxalmente, baixa quantidade de informação ou alta quantidade de informação indiferenciada por unidade de tempo, oferecendo um “efeito de informação”; uma velocidade superior à nossa capacidade de reter seus conteúdos; fuga da pausa e da retenção do fluxo de imagens, visto que elas não se adequam à “atenção distraída” solicitada pelos meios de massa e ao seu principal valor estético, a variada repetição do mesmo; movimentação contínua das câmeras, combinação de planos muito breves, enchendo o vídeo de imagens, para tentar evitar a mudança de canal.
Embora o ritmo acelerado e a ausência de silêncio ou vazio busquem evitar o zapping, a autora ressalta que seriam justamente essas características das imagens de tv que lhe abririam espaço. Se os diretores de câmera têm no switcher sua arma para a troca rápida e aleatória de ponto de vista, os espectadores lhes respondem com o controle remoto, fazendo cortes e montagens não previstas por aqueles.[1] Essas montagens, entretanto, revogam a hierarquia de planos e o “princípio unificador” de Eisenstein, justapondo, ao acaso, imagens de diferentes câmeras, canais, lugares. O excesso de imagens de pouca significação e a repetição serial, característicos da estética televisiva, permitem cortes em qualquer ponto, porque todas as partes se equivalem.
Também a leitura em computador pode ser definida como uma edição, uma montagem singular, através da qual uma reserva de informação possível se realiza para um leitor particular. Pierre Lévy distingue os pares real/possível e atual/virtual, de modo que o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. O possível se define por ser como o real, apenas sem existência, latente. Estando já todo constituído, ao se realizar, não implica criação. A atualização do virtual, ao contrário, constitui a invenção de uma solução exigida por um complexo problemático. Não se trata de ocorrência de um estado predefinido ou escolha entre um conjunto predeterminado, mas de produção de qualidades novas, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades. Seguindo estas concepções filosóficas, as imagens digitais não são virtuais, mas imagens possíveis sendo exibidas. A dialética virtual/atual só se dá com a interação entre os sistemas informáticos e as subjetividades humanas, “quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou seja, uma interpretação, resolverá na leitura” (LÉVY, 1996: 40).
O ato de leitura se define, assim, como uma atualização das significações de um texto, sendo o hipertexto uma virtualização dos processos de leitura. A progressiva organização do texto escrito em parágrafos, capítulos, sumários, índices, notas, remissões contribui para sua articulação além da leitura linear, fazendo do ato de ler um processo de seleção, esquematização, construção de uma rede intertextual. A estruturação do hipertexto em uma rede formada por nós e pelas ligações entre esses nós não o restringe ao suporte digital. Conceitos como os de intertextualidade e dialogismo já pressupõem o texto como tecido de múltiplas textualidades, assim como a leitura de uma enciclopédia já é do tipo hipertextual. O que se apresentaria como novo na digitalização seria a rapidez da passagem de um nó a outro e a associação, no mesmo media, de textos, sons e imagens em movimento.
Uma concepção dinâmica de leitura embaralha as funções de leitor e autor, na medida em que aquele, na posição de navegador, edita o texto que lê, participando da estruturação do hipertexto, criando novas ligações. O questionamento da noção de identidade autoral vista como uma subjetividade integrada, responsável pela doação de sentido ao texto, também encontra eco na leitura-escrita hipertextual, na qual a condição do texto singular, propriedade de um autor único, cede lugar ao texto em constante transformação pela participação das múltiplas vozes autorais.
O título do livro de Luiz Ruffato, eles eram muitos cavalos (2001), reiterado pela epígrafe (“Eles eram muitos cavalos, / mas ninguém mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua origem...” – Cecília Meireles) e pela dedicatória (“Para Cecília”), nos remete a esse outro texto, o Romanceiro da Inconfidência, abrindo também um link no texto de Cecília, que pode nos levar a Ruffato. Assim como os personagens do caos urbano não têm nome, nem se sabe de onde vieram ou para onde vão - só captamos, no ritmo vertiginoso da narrativa, pedaços de cenas -, também as palavras, “testemunhas sem depoimento, / diante de equívocos enormes” (MEIRELES, 1983:228), galopam em torvelinho, sem origem, reapropriadas, ressemantizadas.
Impossível não ver no texto de Ruffato ecos oswaldianos. Os fragmentos de Memórias sentimentais de João Miramar (ANDRADE, 2001), nos quais se misturam vários gêneros textuais e se ressalta a materialidade gráfica, estão virtualmente presentes em seu hipertexto, podendo ser atualizados pelo leitor. Parece, no entanto, que os cortes cinematográficos e a escrita telegráfica de Oswald de Andrade se aceleraram ainda mais, desfazendo-se até mesmo a tênue trajetória da personagem que perpassa aquelas memórias descontínuas. A montagem cinematográfica[2] cede lugar ao zapping, imagens que surgem e desaparecem como se pelo comando de um controle remoto. A rapidez dos cortes e da troca de pontos de vista, neste caso, entretanto, não obedece às “leis da tv” enunciadas acima. Nem as imagens têm baixo teor semântico, nem os cortes são aleatórios. A página, ao assimilar um traço característico da estética televisiva, o suplementa: alternando o deboche, a ternura, a violência, a ingenuidade, a esperança, a decepção, expõe feridas, tensões, causando impacto no leitor. Se o ritmo alucinante da cidade contemporânea, expresso num texto em permanente movimento, leva a uma “atenção distraída”, esta, ao focalizar-se instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa.
Pierre Lévy identifica, na passagem de técnicas anteriores de leitura em rede (índices, sumários, notas remissivas) à digitalização, uma “pequena revolução copernicana”, na qual não é mais o leitor que se desloca, mas sim o texto. Embora, no caso do livro de Ruffato, o leitor ainda se movimente fisicamente no hipertexto, virando páginas, buscando os livros de Cecília Meireles, Oswald de Andrade ou outros na estante, também o texto gira, dobra-se e desdobra-se, caleidoscópico, diante do leitor. Nele, a interpretação não remete mais exclusivamente a uma intenção autoral. “O sentido emerge de efeitos de pertinência locais, surge na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma trajetória de eficácia ou prazer.” (LÉVY, 1996: 49)
A narrativa se compõe como um zapping urbano, com “setenta flashes, takes, zoons avançando sobre a sufocante paulicéia”, como afirma Fanny Abramovich, em sua apresentação. Os setenta fragmentos, numerados e intitulados, não apresentam nenhuma espécie de continuidade: não há resquício de um enredo como fio condutor, apenas a “montagem efervescente”[3] de closes que se entrecortam e se justapõem. Trata-se de um mosaico de diversos tipos de textos - um cabeçalho, previsões meteorológicas, anúncios classificados, orações, cartas, cardápios, conselhos astrológicos, simpatias, lista de livros, recados de secretária eletrônica, duas páginas com um retângulo preto - dispostos com diferentes diagramações, formatos de letras, sinais tipográficos. A leitura pode começar em qualquer ponto e seguir qualquer direção, a multiplicidade desafiando a linearidade, que tropeça e se desdobra indefinidamente. Assim como nos novos espaços virtuais, “em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte” (LÉVY, 1996: 23).
Esses novos media, a televisão e o computador, fazem parte dessa paisagem urbana, interagindo com as personagens de formas diversas. Um empresário bem sucedido imagina a relação de amizade que poderia ter estabelecido com o vizinho, vítima de um seqüestro-relâmpago:
Trocaríamos e-mails e encheríamos o computador de spams, piadas de português, correntes da felicidade, abaixo-assinados, alertas sobre a descoberta de novos vírus, as mais recentes modalidades de crimes, fotos indecentes, vídeos de sacanagem, charges e até mesmo endereços interessantes, lojas virtuais de cedês e de livros (...). (p. 45).
Em outro fragmento, “Via internet”, o narrador se orgulha de já ter arrumado vinte e cinco mulheres nos chats e ICQ: “No chat, eu faço o primeiro contato, me apresento, ali a gente já sabe se somos ou não, digamos assim, almas gêmeas... Aí, se der, trocamos o número do ICQ, o e-mail...” (p. 116).
Françoise, ou Fran, como se intitula o fragmento 15, em “outros tempos, esteve ligada à Rede Globo, papéis secundários em novelas, pontas em especiais, aparições rápidas em programas dominicais, vilã, ingênua” e, hoje, vive deprimida, bêbada, aguardando um convite, via telefone, para um novo papel. O desejo de fama se converte em decepção diante da descoberta de que “Televisão é pra poucos, pra uns.” (p. 35).
Luiz Ruffato faz parte da “primeira geração de escritores cuja infância foi bombardeada pelo veículo de comunicação mais agressivo do planeta: a televisão”. Escreve “longe da máquina de escrever”, colado no computador, “na popularização do personal computer, da Internet e do e-mail” (OLIVEIRA, 2001: 8-9), para leitores também antenados com a “era eletrônica”, acostumados ao zapping e ao modo de leitura hipertextual. No mundo das imagens, sua página se faz tela, ou vice-versa.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. 14ª ed. São Paulo: Globo, 2001.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: –––. Obras escolhidas. vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, s/d, p. 185-6 [1935-6].
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
––––––. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência; Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
OLIVEIRA, Nelson de. Geração 90: manuscritos de computador. São Paulo: Boitempo, 2001.
RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001.
SARLO, Beatriz. Zapping. In: –––. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 57-8.
SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
[1] Beatriz Sarlo recusa a associação dessa “sintaxe irreverente”, que embaralha imagens planetárias, com a noção de “obra aberta”. Segundo a autora, “para pensar assim, é preciso cultivar uma indiferença cínica diante do problema da densidade semântica dessas imagens”. (id. ib., p. 59)
[2] Sergei Eisenstein a define como o “fato de que dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposição”. O cineasta russo reitera, ainda, a importância do “princípio unificador”, isto é, do princípio que deve “determinar tanto o conteúdo do plano quanto o conteúdo revelado por uma determinada justaposição desses planos”. (Cf. EISENSTEIN,1990:13-47)
[3] Canclini define a cidade contemporânea “como um videoclipe: montagem efervescente de imagens descontínuas”. (CANCLINI, 1995:131)