Entre Deus e o Diabo: a presença de José Régio
Tatiana Alves Soares (UNESA/UniverCidade)
José Régio, um dos fundadores e principais colaboradores da revista Presença, possui uma vasta produção literária, que inclui poesias, romances, contos, teatro e ensaio crítico. Tendo como principais características a introspecção e o subjetivismo, sua obra é marcada por uma intensa carga dramática, decorrente dos conflitos e antagonismos presentes no ser humano. Dicotomias como Deus/Diabo, Bem/Mal, amor espiritual/amor carnal ou relativo/absoluto perpassam a obra regiana, constituindo o eixo central da mesma. O conflito entre pólos opostos, exacerbado pela subjetividade, é observado por Óscar Lopes, que vê nesse idealismo subjetivista o núcleo da lírica regiana:
Régio concebe cada indivíduo humano como um feixe de tendências antagónicas entre si, algumas sociais (ou morais), outras insociais (ou imorais, ou demoníacas). (Lopes, s/d:.88)
Desse modo, através de imagens arquetípicas, assiste-se a um combate moral, em que forças opostas se confrontam. A condição humana, múltipla e contraditória, é então analisada por esse eu-lírico que, ao falar de si, reflete sobre a humanidade como um todo. Esse processo de despersonalização, tão presente no modernismo, constitui um dos traços da poesia de Régio, como analisa Cleonice Berardinelli, na introdução à antologia do poeta:
Bastante minuciosa e aguda é a autocrítica regiana (...), mas não abrange senão o que preocupava principalmente o autor: o caráter fatal de sua poesia, o dobrar-se o poeta sobre si mesmo a revelar intimidades que chocam o seu pudor de homem, o centramento no eu que, como crítico de si mesmo, insiste em apresentar como ponto de partida para atingir os outros. (Berardinelli, 1985: 18)
O centramento no eu, um eu estilhaçado e fragmentado, cindido diante de suas incertezas, intensifica o conflito que marca a lírica de Régio, num processo dialético que atravessa a sua obra. A presença de três momentos distintos correspondendo à tese, antítese e síntese, tríade da dialética hegeliana, representa talvez a tentativa, por parte do eu-lírico, de lançar um olhar analítico às dúvidas e inquietações desse eu, paradoxalmente racional e marcadamente subjetivo. Tal dialética, verificada ainda nas diferentes máscaras com que o eu-lírico se apresenta diante do mundo, envolve o próprio processo do fazer poético, sendo a enunciação um dos temas mais freqüentes na lírica do autor.
O primeiro livro de Régio, Poemas de Deus e do Diabo, já sugere, a partir do título, o embate entre forças, se não opostas, ao menos complementares. A ausência de maniqueísmo na caracterização das emblemáticas imagens do Bem e do Mal apontam uma reflexão que transcende o mero dualismo, vislumbrando-se a síntese do processo dialético.
Dialética é , também, a condição humana, constatação presente nos poemas através das máscaras com que o eu-lírico se mostra. Arquétipos como o de Ícaro ou o de Narciso perpassam a obra, alegorizando angústias comuns a toda a humanidade. A constatação do uso de sucessivas máscaras , bem como da inevitável crise de identidade que isso acarreta, é explorada no poema Baile de máscaras, significativamente contido no livro Biografia:
Contínua tentativa fracassando,
Minha vida é uma série de atitudes.
Minhas rugas mais fundas que taludes,
Quantas máscaras, já, vos fui colando?
Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(-E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...)
Encontrar-me? iludir-me? ai que não o sei!
Sei mas é ter o rosto ensangüentado
O rol de quantas máscaras usei...
Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado! (Ibidem, p. 68)
A vida aparece metaforizada por um baile de máscaras, numa óbvia crítica às aparências que regem a vida em sociedade. Presente desde eras remotas e nos mais diversos grupos sociais, a máscara pode ter uma função lúdica, dramática, ritualística, ou mesmo religiosa. O eu-lírico alude ao uso de diferentes máscaras, sugerindo a despersonalização que as acompanha. Às diferentes máscaras correspondem diferentes papéis, diferentes personae com que o indivíduo se apresenta. E, a cada máscara utilizada, menos o eu se dá a conhecer:
(...)
Minha vida é uma série de atitudes
(...)
Quantas máscaras, já, vos fui colando? (Ibidem, p. 68)
A estrofe inicial, apresenta, pois, a tese: a vida é um eterno trocar de máscaras, num sucessivo exercício de alteração de imagens e de atitudes. Entretanto, a antítese surge na estrofe seguinte, em que o sujeito poético confessa que, no fundo, não conhece a si mesmo:
Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(-E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...) (Ibidem, p. 68)
A estrofe, expressivamente iniciada pela adversativa mas, demarca a mudança que se verifica então: da conveniente utilização das máscaras como recurso, o eu-lírico reconhece a ânsia pelo autoconhecimento, afirmando mesmo ser esse o sentido da vida, o bailar nesse entrudo miserando.
A estrofe subseqüente intensifica a sensação de esfacelamento vivenciada pelo eu-lírico, que sente o peso das máscaras usadas ao longo da vida:
Encontrar-me? iludir-me? ai que não o sei!
Sei é ter no rosto ensangüentado
O rol de quantas máscaras usei... (Ibidem, p. 68)
Ao afirmar trazer o rosto ensangüentado, seqüela do uso de sucessivas máscaras, o poeta constata o alto preço pago pelo disfarce: a despersonalização. E prossegue em sua busca, até que surge a síntese , mais trágica do que tudo: ele se descobre mais uma de suas máscaras:
Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado! (Ibidem, p. 68)
O sujeito lírico constata a falência de sua demanda, uma vez que esse eu que tenta encontrar a si mesmo nada mais é do que uma das muitas faces assumidas por ele durante a vida. A busca de caráter ontológico , uma das marcas da lírica de Régio, está presente na própria imagem da máscara, que invoca, em sua simbologia, o autoconhecimento:
O indivíduo que se cobre com a máscara se identifica, na aparência, com o personagem representado. O símbolo da máscara se presta a cenas dramáticas em contos, filmes, em que a pessoa se identifica a tal ponto com (...) sua máscara, que não consegue mais se desfazer dela, que não é mais capaz de retirá-la.(...)A psicanálise tem por objetivo arrancar as máscaras de uma pessoa, para colocá-la na presença de sua realidade profunda. (Chevalier, 1990: 598)
A imagem da máscara será ainda explorada como recurso poético, e significativo é o fato de os poemas que dialogam com mitos e arquétipos do inconsciente coletivo serem justamente aqueles em que a preocupação com o fazer poético se torna mais evidente. Assim, a idéia do fingimento pessoano encontra-se, em Régio, potencializada. Ora tem-se um fingimento confessado, ora um redimensionamento de mitos tradicionais, mostrando as múltiplas faces adotadas pelo eu-lírico. Um dos mais conhecidos da lírica regiana, o poema Narciso apresenta a face do espelho:
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!...
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!...
Assim me desejei nessas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho! (Régio, 1972: 19)
A primeira estrofe já parece justificar o título do poema: há uma tentativa, por parte do eu-lírico, de se conhecer intimamente. A tendência, recorrente na lírica regiana, apresenta uma releitura do mito original, uma vez que naquele Narciso surpreende-se ao se deparar com o próprio reflexo, e aqui o que se tem é alguém que deseja enxergar dentro de si. Além disso, o deslumbramento do Narciso mitológico aparece aqui substituído por um choque diante da face terrível que surge:
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia! (Ibidem, p. 19)
Diferentemente do mito tradicional, a imagem possui uma caracterização negativa, causando uma espécie de estranhamento no poeta. Além disso, enquanto no mito a autodescoberta ocorria a partir de um agente externo - o lago - , o poema regiano retrata um processo interior , no qual o sujeito olha para dentro de si, em busca de seu eu mais profundo.
O processo de autoconhecimento prossegue na estrofe seguinte, marcada pela contradição: nota-se, aqui, o antagonismo entre os diferentes aspectos da psique, gerando um conflito verificado, inclusive, pela antítese presente no texto:
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!...
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!... (Ibidem, p. 19)
A imagem do Narciso regiano traz consigo um silêncio esfíngico que, entretanto, faz-se ouvir pelo eu-lírico. Surge, então, a constatação de que se trata de imagens poéticas, numa reflexão acerca do processo de criação literária:
Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho: (Ibidem, p. 19)
Além de estabelecer novo paradoxo, na afirmação de que os versos são requintados e selvagens, o primeiro verso da estrofe encerra uma ambigüidade: o eu-lírico desejou a si mesmo a partir das imagens observadas ou projetou o próprio desejo nas imagens por ele criadas? A idéia do desejo em relação a si mesmo é intensificada pelo vermelho que lhe tinge os versos, sugerindo a paixão e a sensualidade que deles emana. Sensualidade essa que atingirá o ápice no último terceto do texto, em que todo o paradoxo se transforma, marcando a síntese do poema:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho! (Ibidem, p. 19)
O processo dialético que caracteriza a lírica regiana é novamente observado: o primeiro momento do soneto apresenta um eu que anseia pelo autoconhecimento, constituindo a tese do texto; em seguida, o confronto com a parcela mais íntima de seu ser traz um choque, pelo fato de ela não corresponder às expectativas, gerando um conflito , que a nosso ver constitui a antítese ; a síntese irrompe na confissão apaixonada da voz enunciadora, que admite aguardar ansiosamente o encontro com sua parte mais recôndita. E aqui surge um Narciso outro, não mais o mitológico, mas o psicanalítico . Se o poema contraria o Narciso da mitologia, por outro lado invoca o narcisismo da psicanálise, na ânsia pelo refúgio em si mesmo, e por um autocentramento que corresponde, em termos psicanalíticos, a um mergulho em si mesmo, visando ao autoconhecimento.
A estratégia de se utilizar de mitos e arquétipos para pensar a condição humana é retomada no soneto Ícaro, também integrante de Poemas de Deus e do Diabo. À semelhança do que se verificara em Narciso, Ícaro também subverte o mito original:
A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopéia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.
Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha Dor cantava de sereia...
Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:
Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. (Ibidem, p. 43)
O redimensionamento em relação ao mito faz-se notar pelo fato de não ser o eu-lírico, mas sim a Dor, por ele endeusada, o elemento a cair. Talvez mais do que qualquer outro, o soneto em questão reflete sobre a criação poética, constituindo-se num metapoema. Régio, criticado por muitos em virtude do excesso dramático em sua obra, tece um paralelo entre o labor poético e a derrocada de Ícaro, com destaque para a temática da exploração da dor:
A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopéia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a. (Ibidem, p. 43)
A valorização da dor, presente nos rituais de entronização e de adoração realizados pelo eu-lírico, metaforiza a exploração do sentimentalismo de forma exacerbada na poesia. O choro em melopéia, espécie de declamação utilizada principalmente para textos religiosos ou sagrados, intensifica a postura algo masoquista do sujeito lírico, confirmada pelo uso de maiúsculas , numa personificação do sofrimento. Entretanto, é através dessa exploração que o poeta consegue atingir as multidões, numa clara alusão à recepção da obra de arte pelo público:
Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia,
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha Dor cantava de sereia... (Ibidem, p. 43)
O canto da sereia, conhecida metáfora de sedução, enfatiza a mensagem do eu-lírico: a Dor é persuasiva, apelativa, e cativa o leitor. Entretanto, assim como no mito grego, a onipotência humana é breve, e ei-la a ruir:
Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. (Ibidem, p. 43)
A dor, antes adorada em pedestal, agora desce e iguala-se a ele, numa sugestão de uma escrita menos apelativa e sentimental. Apesar das semelhanças com o mito original, note-se que no soneto regiano o endeusamento ocorre em relação a um elemento externo, não havendo presunção por parte do eu-lírico. A dor, ainda que seja parte dele, aparece distanciada, inclusive pelo fato de possuir vida própria. O desdobramento do sujeito, desvinculando-o de sua própria dor, confere a ele um caráter demiúrgico, o que transcende o mito tradicional. As asas, signo de poder e de irreverência no mito grego, surgem aqui como o elemento desencadeador do processo de destronamento sofrido pela Dor. São elas que fazem ruir o trono de ouro. Ambos, dor e sujeito, ajoelham-se lado a lado. Expressiva é a imagem do lodo, numa ambivalência que sugere, por um lado, a recriação, pois se trata da matéria primordial, e por outro o retorno a um estado involutivo, marcando talvez uma poética mais voltada para os defeitos da humanidade, tema recorrente na lírica do autor.
Em Demasiado humano, soneto pertencente a Biografia, o fingimento poético constitui a temática do texto. Marcado pela auto-referencialidade, o poema estrutura-se a partir de uma dialética que resume, de forma inequívoca, o fingir tão explorado por Pessoa:
Escancarei, por minhas mãos raivosas,
As chagas que em meu peito floresciam.
Versos a escorrer sangue eis escorriam
Dessas chagas abertas como rosas...
Assim vos disse angústias pavorosas
Em versos que gritavam...ou sorriam.
Disse-as com tal ardor, que todos criam
Esse rol de misérias fabulosas!
Chegou a hora de cansar..., cansei!
Sabei as chagas todas que aureolei
São rosas de papel como as das feiras.
Que eu vivo a expor minh’alma nas estradas,
Com chagas inventadas retocadas...
Para esconder bem fundo as verdadeiras. (Berardinelli,. Op. cit., p. 67)
Já na primeira estrofe, temos a imagem de chagas sendo escancaradas, numa metáfora explicada pelo próprio eu-lírico: trata-se de versos a escorrer sangue, atitude de exploração do sofrimento, já apontada anteriormente. A consciência acerca do enaltecimento de imagens dramáticas , bem como a mea culpa diante do estilo grandiloqüente e declamatório, ficam patentes na segunda estrofe, momento em que o poeta desmonta o fingimento poético, confessando-o:
Assim vos disse angústias pavorosas
Em versos que gritavam...ou sorriam.
Disse-as com tal ardor, que todos criam
Esse rol de misérias fabulosas! (Ibidem, p. 67)
A explicitação do fingir é enfatizada pelo distanciamento do poeta em relação às angústias retratadas: em versos que gritavam...ou sorriam, num desnudar que prossegue na estrofe seguinte:
Chegou a hora de cansar..., cansei!
Sabei que as chagas todas que aureolei
São rosas de papel como as das feiras. (Ibidem, p. 67)
Desse modo, o eu-lírico desvenda o processo poético, numa auto-referencialidade marcada pela estrutura dialética: primeiro ele demonstra um sofrimento atroz, para em seguida admitir que jamais o sentira de fato. O último terceto, contudo, evidencia a síntese, ao revelar o verdadeiro motivo da dissimulação: o exagero das chagas fingidas nada mais era do que uma sublimação que visava a ocultar as verdadeiras:
Que eu vivo a expor minh’alma nas estradas,
Com chagas inventadas retocadas...
Para esconder bem fundo as verdadeiras. (Ibidem, p. 67)
Como o fingidor pessoano no poema homônimo, o eu regiano simula uma dor que de fato sente. Ao exibir o fingimento do indivíduo, desconstrói o poético, numa estratégia sugerida pelo título: Demasiado humano.
Outro grande núcleo temático da poesia regiana, a interrogação metafísica aparece ao longo de seus poemas, freqüentemente sob a forma de questionamento das próprias crenças. Em Ignoto Deo, integrante de Biografia, a dialética estabelece-se no espaço entre a negação de uma Fé que, quanto mais é negada, mais parece se afirmar:
Desisti de saber qual é Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu Sopro tão além de quanto vemos.
Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.
Chamar-Te amante ou pai..., grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
-Tu é que não desistirás de mim! (Berardinelli, Op. cit., p. 85)
O título do soneto sugere um afastamento, por parte do eu-lírico, de Deus; o termo desconhecido denota o distanciamento entre Criador e criatura, atitude que se verifica ao longo do texto. A negação da Fé é apresentada a partir de sucessivas recusas, acentuando a postura iconoclasta do poeta. A informação de que o eu nega uma crença que um dia sentiu é depreendida pelo contexto, nas reiteradas manifestações de arrependimento pelo fato de, algum dia, ter Nele acreditado. Além disso, o verso que abre o poema sugere uma atitude de quase resignação, como se o poeta houvesse desistido de Deus por ter tentado, incessantemente, encontrá-lo: Desisti de saber qual é Teu nome.
Se a tese contida no soneto expressa um momento anterior ao discurso, marcado pela busca de um Deus, a antítese estaria presente no soneto praticamente inteiro, uma vez que este estrutura-se a partir da negação. O último verso destrói toda a argumentação do eu-lírico, pois revela a crença no amor desmedido de Deus pelos seres criados. Ao negar a Fé, o poeta acaba por reafirmá-la.
Ao contrário dos poemas anteriormente analisados, contudo, a síntese não se restringe somente ao final, mas se faz sentir ao longo do texto, dialogando com o ceticismo que o eu-lírico tenta, em vão, defender. A utilização de maiúsculas nos pronomes , característica da forma de tratamento utilizada com referência à Divindade, é significativa, demonstrando a reverência do poeta ao se dirigir a um ser cuja existência ele questiona. O paradoxo que se instaura tem seu ápice no último verso, em que o sujeito desiste de acreditar em Deus, com a segurança de que não haverá problema, uma vez que Ele nunca o abandonará: Tu é que não desistirás de mim!
A dialética contida no poema torna-se ainda mais expressiva pelo fato de traduzir um conflito de caráter existencial: a crença em um Deus. Em se tratando de José Régio, um simples passeio pelos títulos de suas obras dá-nos a medida do quanto tal assunto lhe era instigante: Poemas de Deus e do Diabo; As encruzilhadas de Deus; Mas Deus é grande; A chaga do lado; Filho do homem, entre outros. A dialética, expressão maior do conflito que perpassa sua obra, sugere o equilíbrio entre dois pólos que não necessariamente se excluem. Régio, em sua poesia, defende a idéia de que entre Deus e o Diabo só há uma síntese possível: o Homem.
BIBLIOGRAFIA
BERARDINELLI, Cleonice. Antologia de José Régio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
MONIZ, António. Para uma leitura de sete poetas contemporâneos. Lisboa: Presença, 1997.
RÉGIO, José. Poemas de Deus e do Diabo. Porto: Brasília, 1972.
Entre Deus e o Diabo: a presença de José Régio
Tatiana Alves Soares (UNESA/UniverCidade)
José Régio, um dos fundadores e principais colaboradores da revista Presença, possui uma vasta produção literária, que inclui poesias, romances, contos, teatro e ensaio crítico. Tendo como principais características a introspecção e o subjetivismo, sua obra é marcada por uma intensa carga dramática, decorrente dos conflitos e antagonismos presentes no ser humano. Dicotomias como Deus/Diabo, Bem/Mal, amor espiritual/amor carnal ou relativo/absoluto perpassam a obra regiana, constituindo o eixo central da mesma. O conflito entre pólos opostos, exacerbado pela subjetividade, é observado por Óscar Lopes, que vê nesse idealismo subjetivista o núcleo da lírica regiana:
Régio concebe cada indivíduo humano como um feixe de tendências antagónicas entre si, algumas sociais (ou morais), outras insociais (ou imorais, ou demoníacas). (Lopes, s/d:.88)
Desse modo, através de imagens arquetípicas, assiste-se a um combate moral, em que forças opostas se confrontam. A condição humana, múltipla e contraditória, é então analisada por esse eu-lírico que, ao falar de si, reflete sobre a humanidade como um todo. Esse processo de despersonalização, tão presente no modernismo, constitui um dos traços da poesia de Régio, como analisa Cleonice Berardinelli, na introdução à antologia do poeta:
Bastante minuciosa e aguda é a autocrítica regiana (...), mas não abrange senão o que preocupava principalmente o autor: o caráter fatal de sua poesia, o dobrar-se o poeta sobre si mesmo a revelar intimidades que chocam o seu pudor de homem, o centramento no eu que, como crítico de si mesmo, insiste em apresentar como ponto de partida para atingir os outros. (Berardinelli, 1985: 18)
O centramento no eu, um eu estilhaçado e fragmentado, cindido diante de suas incertezas, intensifica o conflito que marca a lírica de Régio, num processo dialético que atravessa a sua obra. A presença de três momentos distintos correspondendo à tese, antítese e síntese, tríade da dialética hegeliana, representa talvez a tentativa, por parte do eu-lírico, de lançar um olhar analítico às dúvidas e inquietações desse eu, paradoxalmente racional e marcadamente subjetivo. Tal dialética, verificada ainda nas diferentes máscaras com que o eu-lírico se apresenta diante do mundo, envolve o próprio processo do fazer poético, sendo a enunciação um dos temas mais freqüentes na lírica do autor.
O primeiro livro de Régio, Poemas de Deus e do Diabo, já sugere, a partir do título, o embate entre forças, se não opostas, ao menos complementares. A ausência de maniqueísmo na caracterização das emblemáticas imagens do Bem e do Mal apontam uma reflexão que transcende o mero dualismo, vislumbrando-se a síntese do processo dialético.
Dialética é , também, a condição humana, constatação presente nos poemas através das máscaras com que o eu-lírico se mostra. Arquétipos como o de Ícaro ou o de Narciso perpassam a obra, alegorizando angústias comuns a toda a humanidade. A constatação do uso de sucessivas máscaras , bem como da inevitável crise de identidade que isso acarreta, é explorada no poema Baile de máscaras, significativamente contido no livro Biografia:
Contínua tentativa fracassando,
Minha vida é uma série de atitudes.
Minhas rugas mais fundas que taludes,
Quantas máscaras, já, vos fui colando?
Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(-E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...)
Encontrar-me? iludir-me? ai que não o sei!
Sei mas é ter o rosto ensangüentado
O rol de quantas máscaras usei...
Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado! (Ibidem, p. 68)
A vida aparece metaforizada por um baile de máscaras, numa óbvia crítica às aparências que regem a vida em sociedade. Presente desde eras remotas e nos mais diversos grupos sociais, a máscara pode ter uma função lúdica, dramática, ritualística, ou mesmo religiosa. O eu-lírico alude ao uso de diferentes máscaras, sugerindo a despersonalização que as acompanha. Às diferentes máscaras correspondem diferentes papéis, diferentes personae com que o indivíduo se apresenta. E, a cada máscara utilizada, menos o eu se dá a conhecer:
(...)
Minha vida é uma série de atitudes
(...)
Quantas máscaras, já, vos fui colando? (Ibidem, p. 68)
A estrofe inicial, apresenta, pois, a tese: a vida é um eterno trocar de máscaras, num sucessivo exercício de alteração de imagens e de atitudes. Entretanto, a antítese surge na estrofe seguinte, em que o sujeito poético confessa que, no fundo, não conhece a si mesmo:
Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(-E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...) (Ibidem, p. 68)
A estrofe, expressivamente iniciada pela adversativa mas, demarca a mudança que se verifica então: da conveniente utilização das máscaras como recurso, o eu-lírico reconhece a ânsia pelo autoconhecimento, afirmando mesmo ser esse o sentido da vida, o bailar nesse entrudo miserando.
A estrofe subseqüente intensifica a sensação de esfacelamento vivenciada pelo eu-lírico, que sente o peso das máscaras usadas ao longo da vida:
Encontrar-me? iludir-me? ai que não o sei!
Sei é ter no rosto ensangüentado
O rol de quantas máscaras usei... (Ibidem, p. 68)
Ao afirmar trazer o rosto ensangüentado, seqüela do uso de sucessivas máscaras, o poeta constata o alto preço pago pelo disfarce: a despersonalização. E prossegue em sua busca, até que surge a síntese , mais trágica do que tudo: ele se descobre mais uma de suas máscaras:
Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado! (Ibidem, p. 68)
O sujeito lírico constata a falência de sua demanda, uma vez que esse eu que tenta encontrar a si mesmo nada mais é do que uma das muitas faces assumidas por ele durante a vida. A busca de caráter ontológico , uma das marcas da lírica de Régio, está presente na própria imagem da máscara, que invoca, em sua simbologia, o autoconhecimento:
O indivíduo que se cobre com a máscara se identifica, na aparência, com o personagem representado. O símbolo da máscara se presta a cenas dramáticas em contos, filmes, em que a pessoa se identifica a tal ponto com (...) sua máscara, que não consegue mais se desfazer dela, que não é mais capaz de retirá-la.(...)A psicanálise tem por objetivo arrancar as máscaras de uma pessoa, para colocá-la na presença de sua realidade profunda. (Chevalier, 1990: 598)
A imagem da máscara será ainda explorada como recurso poético, e significativo é o fato de os poemas que dialogam com mitos e arquétipos do inconsciente coletivo serem justamente aqueles em que a preocupação com o fazer poético se torna mais evidente. Assim, a idéia do fingimento pessoano encontra-se, em Régio, potencializada. Ora tem-se um fingimento confessado, ora um redimensionamento de mitos tradicionais, mostrando as múltiplas faces adotadas pelo eu-lírico. Um dos mais conhecidos da lírica regiana, o poema Narciso apresenta a face do espelho:
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!...
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!...
Assim me desejei nessas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho! (Régio, 1972: 19)
A primeira estrofe já parece justificar o título do poema: há uma tentativa, por parte do eu-lírico, de se conhecer intimamente. A tendência, recorrente na lírica regiana, apresenta uma releitura do mito original, uma vez que naquele Narciso surpreende-se ao se deparar com o próprio reflexo, e aqui o que se tem é alguém que deseja enxergar dentro de si. Além disso, o deslumbramento do Narciso mitológico aparece aqui substituído por um choque diante da face terrível que surge:
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia! (Ibidem, p. 19)
Diferentemente do mito tradicional, a imagem possui uma caracterização negativa, causando uma espécie de estranhamento no poeta. Além disso, enquanto no mito a autodescoberta ocorria a partir de um agente externo - o lago - , o poema regiano retrata um processo interior , no qual o sujeito olha para dentro de si, em busca de seu eu mais profundo.
O processo de autoconhecimento prossegue na estrofe seguinte, marcada pela contradição: nota-se, aqui, o antagonismo entre os diferentes aspectos da psique, gerando um conflito verificado, inclusive, pela antítese presente no texto:
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!...
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!... (Ibidem, p. 19)
A imagem do Narciso regiano traz consigo um silêncio esfíngico que, entretanto, faz-se ouvir pelo eu-lírico. Surge, então, a constatação de que se trata de imagens poéticas, numa reflexão acerca do processo de criação literária:
Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho: (Ibidem, p. 19)
Além de estabelecer novo paradoxo, na afirmação de que os versos são requintados e selvagens, o primeiro verso da estrofe encerra uma ambigüidade: o eu-lírico desejou a si mesmo a partir das imagens observadas ou projetou o próprio desejo nas imagens por ele criadas? A idéia do desejo em relação a si mesmo é intensificada pelo vermelho que lhe tinge os versos, sugerindo a paixão e a sensualidade que deles emana. Sensualidade essa que atingirá o ápice no último terceto do texto, em que todo o paradoxo se transforma, marcando a síntese do poema:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho! (Ibidem, p. 19)
O processo dialético que caracteriza a lírica regiana é novamente observado: o primeiro momento do soneto apresenta um eu que anseia pelo autoconhecimento, constituindo a tese do texto; em seguida, o confronto com a parcela mais íntima de seu ser traz um choque, pelo fato de ela não corresponder às expectativas, gerando um conflito , que a nosso ver constitui a antítese ; a síntese irrompe na confissão apaixonada da voz enunciadora, que admite aguardar ansiosamente o encontro com sua parte mais recôndita. E aqui surge um Narciso outro, não mais o mitológico, mas o psicanalítico . Se o poema contraria o Narciso da mitologia, por outro lado invoca o narcisismo da psicanálise, na ânsia pelo refúgio em si mesmo, e por um autocentramento que corresponde, em termos psicanalíticos, a um mergulho em si mesmo, visando ao autoconhecimento.
A estratégia de se utilizar de mitos e arquétipos para pensar a condição humana é retomada no soneto Ícaro, também integrante de Poemas de Deus e do Diabo. À semelhança do que se verificara em Narciso, Ícaro também subverte o mito original:
A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopéia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.
Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha Dor cantava de sereia...
Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:
Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. (Ibidem, p. 43)
O redimensionamento em relação ao mito faz-se notar pelo fato de não ser o eu-lírico, mas sim a Dor, por ele endeusada, o elemento a cair. Talvez mais do que qualquer outro, o soneto em questão reflete sobre a criação poética, constituindo-se num metapoema. Régio, criticado por muitos em virtude do excesso dramático em sua obra, tece um paralelo entre o labor poético e a derrocada de Ícaro, com destaque para a temática da exploração da dor:
A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopéia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a. (Ibidem, p. 43)
A valorização da dor, presente nos rituais de entronização e de adoração realizados pelo eu-lírico, metaforiza a exploração do sentimentalismo de forma exacerbada na poesia. O choro em melopéia, espécie de declamação utilizada principalmente para textos religiosos ou sagrados, intensifica a postura algo masoquista do sujeito lírico, confirmada pelo uso de maiúsculas , numa personificação do sofrimento. Entretanto, é através dessa exploração que o poeta consegue atingir as multidões, numa clara alusão à recepção da obra de arte pelo público:
Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia,
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha Dor cantava de sereia... (Ibidem, p. 43)
O canto da sereia, conhecida metáfora de sedução, enfatiza a mensagem do eu-lírico: a Dor é persuasiva, apelativa, e cativa o leitor. Entretanto, assim como no mito grego, a onipotência humana é breve, e ei-la a ruir:
Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. (Ibidem, p. 43)
A dor, antes adorada em pedestal, agora desce e iguala-se a ele, numa sugestão de uma escrita menos apelativa e sentimental. Apesar das semelhanças com o mito original, note-se que no soneto regiano o endeusamento ocorre em relação a um elemento externo, não havendo presunção por parte do eu-lírico. A dor, ainda que seja parte dele, aparece distanciada, inclusive pelo fato de possuir vida própria. O desdobramento do sujeito, desvinculando-o de sua própria dor, confere a ele um caráter demiúrgico, o que transcende o mito tradicional. As asas, signo de poder e de irreverência no mito grego, surgem aqui como o elemento desencadeador do processo de destronamento sofrido pela Dor. São elas que fazem ruir o trono de ouro. Ambos, dor e sujeito, ajoelham-se lado a lado. Expressiva é a imagem do lodo, numa ambivalência que sugere, por um lado, a recriação, pois se trata da matéria primordial, e por outro o retorno a um estado involutivo, marcando talvez uma poética mais voltada para os defeitos da humanidade, tema recorrente na lírica do autor.
Em Demasiado humano, soneto pertencente a Biografia, o fingimento poético constitui a temática do texto. Marcado pela auto-referencialidade, o poema estrutura-se a partir de uma dialética que resume, de forma inequívoca, o fingir tão explorado por Pessoa:
Escancarei, por minhas mãos raivosas,
As chagas que em meu peito floresciam.
Versos a escorrer sangue eis escorriam
Dessas chagas abertas como rosas...
Assim vos disse angústias pavorosas
Em versos que gritavam...ou sorriam.
Disse-as com tal ardor, que todos criam
Esse rol de misérias fabulosas!
Chegou a hora de cansar..., cansei!
Sabei as chagas todas que aureolei
São rosas de papel como as das feiras.
Que eu vivo a expor minh’alma nas estradas,
Com chagas inventadas retocadas...
Para esconder bem fundo as verdadeiras. (Berardinelli,. Op. cit., p. 67)
Já na primeira estrofe, temos a imagem de chagas sendo escancaradas, numa metáfora explicada pelo próprio eu-lírico: trata-se de versos a escorrer sangue, atitude de exploração do sofrimento, já apontada anteriormente. A consciência acerca do enaltecimento de imagens dramáticas , bem como a mea culpa diante do estilo grandiloqüente e declamatório, ficam patentes na segunda estrofe, momento em que o poeta desmonta o fingimento poético, confessando-o:
Assim vos disse angústias pavorosas
Em versos que gritavam...ou sorriam.
Disse-as com tal ardor, que todos criam
Esse rol de misérias fabulosas! (Ibidem, p. 67)
A explicitação do fingir é enfatizada pelo distanciamento do poeta em relação às angústias retratadas: em versos que gritavam...ou sorriam, num desnudar que prossegue na estrofe seguinte:
Chegou a hora de cansar..., cansei!
Sabei que as chagas todas que aureolei
São rosas de papel como as das feiras. (Ibidem, p. 67)
Desse modo, o eu-lírico desvenda o processo poético, numa auto-referencialidade marcada pela estrutura dialética: primeiro ele demonstra um sofrimento atroz, para em seguida admitir que jamais o sentira de fato. O último terceto, contudo, evidencia a síntese, ao revelar o verdadeiro motivo da dissimulação: o exagero das chagas fingidas nada mais era do que uma sublimação que visava a ocultar as verdadeiras:
Que eu vivo a expor minh’alma nas estradas,
Com chagas inventadas retocadas...
Para esconder bem fundo as verdadeiras. (Ibidem, p. 67)
Como o fingidor pessoano no poema homônimo, o eu regiano simula uma dor que de fato sente. Ao exibir o fingimento do indivíduo, desconstrói o poético, numa estratégia sugerida pelo título: Demasiado humano.
Outro grande núcleo temático da poesia regiana, a interrogação metafísica aparece ao longo de seus poemas, freqüentemente sob a forma de questionamento das próprias crenças. Em Ignoto Deo, integrante de Biografia, a dialética estabelece-se no espaço entre a negação de uma Fé que, quanto mais é negada, mais parece se afirmar:
Desisti de saber qual é Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu Sopro tão além de quanto vemos.
Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.
Chamar-Te amante ou pai..., grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
-Tu é que não desistirás de mim! (Berardinelli, Op. cit., p. 85)
O título do soneto sugere um afastamento, por parte do eu-lírico, de Deus; o termo desconhecido denota o distanciamento entre Criador e criatura, atitude que se verifica ao longo do texto. A negação da Fé é apresentada a partir de sucessivas recusas, acentuando a postura iconoclasta do poeta. A informação de que o eu nega uma crença que um dia sentiu é depreendida pelo contexto, nas reiteradas manifestações de arrependimento pelo fato de, algum dia, ter Nele acreditado. Além disso, o verso que abre o poema sugere uma atitude de quase resignação, como se o poeta houvesse desistido de Deus por ter tentado, incessantemente, encontrá-lo: Desisti de saber qual é Teu nome.
Se a tese contida no soneto expressa um momento anterior ao discurso, marcado pela busca de um Deus, a antítese estaria presente no soneto praticamente inteiro, uma vez que este estrutura-se a partir da negação. O último verso destrói toda a argumentação do eu-lírico, pois revela a crença no amor desmedido de Deus pelos seres criados. Ao negar a Fé, o poeta acaba por reafirmá-la.
Ao contrário dos poemas anteriormente analisados, contudo, a síntese não se restringe somente ao final, mas se faz sentir ao longo do texto, dialogando com o ceticismo que o eu-lírico tenta, em vão, defender. A utilização de maiúsculas nos pronomes , característica da forma de tratamento utilizada com referência à Divindade, é significativa, demonstrando a reverência do poeta ao se dirigir a um ser cuja existência ele questiona. O paradoxo que se instaura tem seu ápice no último verso, em que o sujeito desiste de acreditar em Deus, com a segurança de que não haverá problema, uma vez que Ele nunca o abandonará: Tu é que não desistirás de mim!
A dialética contida no poema torna-se ainda mais expressiva pelo fato de traduzir um conflito de caráter existencial: a crença em um Deus. Em se tratando de José Régio, um simples passeio pelos títulos de suas obras dá-nos a medida do quanto tal assunto lhe era instigante: Poemas de Deus e do Diabo; As encruzilhadas de Deus; Mas Deus é grande; A chaga do lado; Filho do homem, entre outros. A dialética, expressão maior do conflito que perpassa sua obra, sugere o equilíbrio entre dois pólos que não necessariamente se excluem. Régio, em sua poesia, defende a idéia de que entre Deus e o Diabo só há uma síntese possível: o Homem.
BIBLIOGRAFIA
BERARDINELLI, Cleonice. Antologia de José Régio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
MONIZ, António. Para uma leitura de sete poetas contemporâneos. Lisboa: Presença, 1997.
RÉGIO, José. Poemas de Deus e do Diabo. Porto: Brasília, 1972.