GABRIELA, CRAVO E CANELA: A RECEPÇÃO CRÍTICA
Benedito Veiga (UNEB/UCSal)
Só desejava o amor
dos homens pra bem amar.
Jorge Amado (200: 241)
Que no peito dos desafinados também
bate um coração
A.C. Jobim e N. Mendonça
(GILBERTO, 1988: Faixa 2)
A narrativa de Jorge Amado Gabriela, Cravo e Canela, produzida em sua fase final na cidade de Petrópolis, é lançada pela Livraria Editora Martins, de São Paulo, em agosto de 1958, o que se torna um convite para minha reflexão sobre esse instante e para uma tomada de fôlego sobre a acolhida dispensada a essa ficção pela crítica, sobretudo a imediata.
O caminho da recepção crítica passa necessariamente pelo da leitura contextual, entendida esta nos termos enunciados por Dominique Maingueneau, em O contexto da obra literária, ao escrever da impossibilidade de se reconhecer enunciados literários sem entendê-los vinculados a suas relações de representatividade e aos procedimentos ligados a essa condição:
Os trabalhos de certos sociólogos da literatura, em particular os de P. Bourdieu, tiveram o grande mérito de mostrar que o “contexto” da obra literária não é somente a sociedade considerada em sua globalidade, mas, em primeiro lugar, o campo literário, que obedece a regras específicas. (MAINGUENEAU, 1995: 27)
Essa preocupação com o interior do campo literário consta dos roteiros da recepção crítica, como aparecem nos ensinamentos de Regina Zilberman, em Estética da recepção e história da literatura, quando discute as teses metodológicas de Hans Robert Jauss, voltadas para “[...] a natureza eminentemente histórica da literatura [que] se manifesta durante o processo de recepção e efeito de uma obra, isto é, quando esta se mostra apta à leitura”.
Insiste a autora que o texto não se depara apenas com um código artístico consolidado, que contraria, enquanto afirma, sua identidade e originalidade. Ele responde a premências do público com o qual dialoga: a reconstituição do horizonte de expectativas diante do qual foi criada e recebida uma obra possibilita chegar às perguntas a que respondeu, o que significa descobrir como o leitor da época pode percebê-la e compreendê-la, recuperando o processo de comunicação que se instalou. O texto explicita sua historicidade, respondendo a novas questões em épocas distintas; ao mesmo tempo, essas novas questões respondidas contrariam a idéia de estar o texto possuído por um “presente atemporal”, com um sentido fixado para sempre.
Resumindo esse envolvimento do externo versus interno contextual, Zilberman observa que os elementos necessários à recepção do texto - e para medir sua validade - encontram-se no interior do texto literário. Não haveria essa oposição dentro e fora, afastando o texto do contexto, este se torna parte integrante daquele: o contexto oferece como se fossem normas que delimitam o texto.
Em vez do leitor real, com suas idiossincrasias e particularidades, Jauss procura o leitor, com seu virtual “saber prévio”. A leitura é feita, pois, de obras, na medida em que elas participam de um processo de comunicação, precisam ser compreendidas e se apropriam de elementos de um código vigente; a obra predispõe seu público, por meio de “[...] indicações, sinais evidentes ou indiretos, marcas conhecidas ou avisos implícitos”. Cada leitor pode reagir, individualmente, a um texto, mas a recepção é um fato social (ZILBERMAN, 1989:29-40).
Da análise e interpretação de documentos de fontes primárias, sobretudo de periódicos e escritos da década de 50 do século XX, acompanho os prenúncios de mudanças de comportamentos e valores que aconteciam, como a crença ainda vigente na vitória da democracia sobre os regimes fascistas na Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, apesar dos estragos deixados, inclusive pelos vitoriosos, como a hecatombe de Hiroxima-Nagasáqui.
Para incentivar certas propostas de otimismo, havia inovações científicas e tecnológicas em conseqüência de investimentos da própria guerra: avanços na medicina, na biologia e na química trouxeram novas perspectivas de cura para diversas doenças, o prolongamento da expectativa de vida e a possibilidade de obtenção de quantidades crescentes de alimentos. Das pesquisas efetivadas para o aperfeiçoamento do material bélico, resultaram novas matérias-primas, como as derivadas do petróleo, que possibilitaram a fabricação de objetos de uso doméstico, com desenhos arrojados, e permitiram a renovação estética e a simplificação dos hábitos diários.
O crescimento dos transportes aéreos e o das comunicações encurtaram distâncias e aceleraram a rápida circulação de informações; pensava-se que os homens se tornariam mais unidos e companheiros. Tais conquistas do bem-estar coletivo foram insuficientes para reduzir a diferença dos níveis de vida existentes dentro dos países e entre as mais diversas nações do mundo. A paz, como alguns esperavam, não foi muito duradoura como registra Marly Rodrigues, em A década de 50: “A maior partes dos confrontos do pós-guerra esteve relacionada à disputa de posições políticas entre as duas potências [Estados Unidos e União Soviética], o que gerou uma situação de instabilidade e insegurança que se convencionou chamar de guerra fria” (RODRIGUES, 1996: 8).
Os países coloniais da Europa, enfraquecidos com os gastos do conflito internacional, não conseguem manter seus impérios: são liberadas as colônias da África e da Ásia: as francesas, como aquelas ao sul do Saara, após o referendum gaullista de 1959; e as inglesas, como a Índia e o Paquistão; na América, Cuba se torna a primeira nação socialista do continente, em 1959. Contudo, como assinala Frederic Jameson, em “Periodizando os anos 60”:
Mais precisamente é hora de lembrar o óbvio: a descolonização caminhou historicamente de mãos dadas com o neocolonialismo e que o fim elegante, rancoroso ou violento de um imperialismo fora de moda decerto significou o fim de um dado tipo de dominação, mas, evidentemente, também a invenção e a construção de um tipo novo - simbolicamente, algo como a substituição do Império Britânico pelo Fundo Monetário Internacional. (JAMESON, 1992: 81-126)
Há nomes que se tornam verdadeiros ícones desse momento de perplexidade e rebeldia, alimentando sonhos, alegrias, contentamentos e frustrações, valendo-se, sobretudo, da mídia cinematográfica no apogeu, como: Brigitte Bardot (... E Deus criou a mulher, em 1957), James Dean (Juventude transviada, em 1955), Marilyn Monroe (Nunca fui santa, em 1956), Elvis Presley (Prisioneiro do rock, em 1957).
O Brasil sofre os reveses da política norte-americana implantada pelo presidente/general Eisenhower de converter o combate ao comunismo numa cruzada, impondo uma política rigorosa em relação aos problemas financeiros dos países em desenvolvimento: desprezar a assistência estatal e assumir a prioridade de investimentos privados.
Os anos JK, de 1956 a 1961 - imediatamente envolvendo o lançamento de Gabriela, dado a público, como dito, em 1958 -, são tomados como de estabilidade política, considerados que foram como anos de otimismo, levando em conta os altos índices de crescimento econômico, pela proposta da construção de Brasília: a propaganda oficial de “cinqüenta anos em cinco” teve ampla repercussão nas camadas populares.
No período de Juscelino, os maiores problemas convergiam para as áreas do comércio exterior e das finanças; os gastos do governo com o programa de industrialização e a construção de Brasília ocasionam uma queda no intercâmbio com o exterior, resultando em crescentes déficits do orçamento federal. Como amostra desses tumultos governamentais, Boris Fausto, em História concisa do Brasil, registra:
Em junho de 1958, o ministro da Fazenda - José Maria Alkmin - demitiu-se, desgastado pelas dificuldades em enfrentar os problemas apontados. [...] As tentativas de restringir o crédito para os industriais provocaram protestos em São Paulo, com o apoio do presidente do Banco do Brasil. Os cafeicultores organizaram em outubro de 1958 uma marcha da produção contra o confisco cambial e contra as novas medidas do governo limitando as compras dos estoques de café. (FAUSTO, 2001: 239)
A meu ver, caracterizam esse momento nacional alguns fatos acontecidos e a atuação de algumas personalidades, em variados campos: no cinema: em 1953, Lima Barreto (O cangaceiro, premiado em Cannes); em 1955, Nélson Pereira dos Santos (Rio, 40 graus, com a inauguração do “cinema novo”); na comunicação: em 1950, a inauguração da PRF-3 TV Tupi, em São Paulo, a primeira emissora de TV da América Latina; em 1951, início da circulação do jornal Última Hora; em 1952, o início da circulação da revista Manchete; inauguração da TV Paulista, em São Paulo; no futebol: em 1950, a inauguração do Estádio do Maracanã; em 1958, a conquista da taça Jules Rimet pela Seleção Brasileira de Futebol; na música: em 1958, lançamento do 78 rpm Desafinado, assinalando o início da “bossa nova”; na política: em 1950, Getúlio Vargas é eleito presidente da República; em 1951, Vargas toma posse; em 1954, o suicídio de Vargas; a formação da primeira liga camponesa, no engenho Galiléia, PE; em 1955, vitória de Juscelino Kubitschek para presidente da República; em 1956, posse de JK; em 1959, a criação da SUDENE; a visita de Fidel Castro ao Brasil; em 1960, a inauguração de Brasília por JK; na política cultural: em 1955, a formação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB, ligado ao MEC; no teatro: em 1953, a formação do grupo de teatro Arena; em1958, a criação do grupo de teatro Oficina; estréia no Arena da peça Eles não usam black-tie; na tecnologia e ciência: em 1958, a montagem do primeiro reator nuclear da América Latina, na USP.
Na literatura: em 1950, o lançamento da revista Anhembi, dirigida por Paulo Duarte; em 1955, o lançamento da Revista Brasiliense, dirigida por Caio Prado Júnior; em 1956, a publicação do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa; Jorge Amado assume a direção do quinzenário Para todos, juntamente com seu irmão James Amado, Oscar Niemeyer, Moacir Werneck de Castro e outros; em 1957, as publicações: do Manifesto concretista, no Jornal do Brasil; de Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freire; em 1958, a publicação de Os donos do poder, de Raimundo Faoro; em 1959, as publicações: de Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido; de Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado; e de Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda.
Um acontecimento político internacional vai repercutir em Gabriela: a troca de liderança na União Soviética, como conseqüência da morte de Stalin, em 1953, faz Nikita Kruschev iniciar a política do “Degelo”, ou seja, orientar a adoção de medidas econômicas para ampliar a produção industrial, acompanhadas de atos de liberalização cultural e de uma política externa mais flexível. Na prática, tais procedimentos levaram à revisão do culto da personalidade e da burocracia vigentes - a chamada “Desestalinização” - com resultados que atingiram os diversos partidos comunistas do mundo. Como atestado dessa nova tendência, está a visita de Kruschev a Eisenhower, em 1959.
Jorge Amado retorna com a família ao Brasil, em 1952, depois de um exílio de mais de quatro anos na Europa: de janeiro de 1948 a maio de 1952, passando a residir no Rio de Janeiro (Cf. SANTOS, 1993: 149-156). Aqui chegando, Amado, já vencedor do Prêmio Stalin de Literatura, recebido em Moscou, em fins de 1951, retoma suas atividades de funcionário do Partido Comunista e de escritor.
No mesmo ano, é reativado o processo contra a publicação amadiana O mundo da paz, com a primeira edição publicada pela Editora Vitória-RJ, no ano anterior, e desde então considerado por isso seu autor como incurso na lei de segurança. Defendido por João Mangabeira e Alfredo Franjan, “[...] o juiz arquiva o processo, alegando ser o livro sectário e não subversivo”. Por fim, a quinta edição do livro é lançada, em 1953. No entanto, como consta de Jorge Amado 80 anos de vida e obra, “O escritor proíbe novas edições por considerar que o livro apresenta uma visão desatualizada e sectária sobre os países do Bloco Socialista” (RUBIM, 1992: 47-49).
Em dezembro de 1955, dá-se o desligamento de Jorge Amado do Partido Comunista, quando comunica “[...] que havia terminado sua atividade de militante, de funcionário do Partido” (SANTOS, Op. cit., p. 159). De há muito o escritor já vinha solicitando junto aos dirigentes da organização partidária que o deixassem voltar a sua ocupação de origem; não mais lhe agradava o cargo que estava exercendo desde 1945.
Gabriela é um dos frutos dessa opção, o que não vem a ser indiferente para a recepção crítica.
No calor da hora do lançamento dessa narrativa, Paulo Dantas, em A Gazeta, de São Paulo, em 6 de agosto de 1958, inicia a cobrança político-estética ao escritor, que “[...] voltou ao tema de sua terra natal, após alguns anos de excursão paulista a uns malogrados Subterrâneos da Liberdade”. Procura o crítico, com perplexidade e malícia, pelo Jorge Amado primitivo, meio bárbaro e densamente poético das “terras do sem fim”, e constata: “Agora o que temos neste Gabriela, Cravo e Canela é um jocoso narrador, de propósito tornado picaresco, já que não querendo repetir-se, optou pelo recurso do ‘cronista da cidade’ [...]”. Não satisfeito, insiste:
Gabriela, Cravo e Canela é o romance dos “recuerdos” de Ilhéus, com alguns ímpetos-comoções de beira de cais, com alguns lampejos de matas virgens. O típico virou fácil universal e o romancista atingiu o que desejava, frustrou, porém, os seus leitores mais ardentes, mais jorgeamadeanos, tão saudosos dos terreiros de Jubiabá, ou dos gritos de cobras e sapos, dos tiros em meio das matas virgens. DANTAS, 1958
A ânsia de anotar a presença do meramente folclórico não permite ao crítico perceber as inovações na temática e na estrutura da obra que serão, por outros, apontadas. Aliás, tal procedimento discriminador da crítica tem, por vezes, tomado o regional como pitoresco e jocoso, forçando a leitura da produção de Jorge Amado a ser tomada com ares de marcado provincianismo. É o que acontece, mais recentemente, no caso de Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, quando, ao analisar o conjunto da obra amadiana, conclui:
[...] mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos). [...] Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e de 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no saboroso, no apimentado do regional. (BOSI, 1997: 405-407)
Nelson Werneck Sodré, por exemplo, malgrado sua forte inclinação marxista, em Última Hora, de 16 de agosto de 1958, contra-ataca e reconhece os méritos literários do novo romance, afirmando que Jorge Amado, com Gabriela, deixa de ser apenas o romancista do pós-moderno, pois abandona a classificação já superada na história de nossa literatura e ganha um lugar novo nela, muito maior, muito mais firme e importante:
Se tivesse permanecido subordinado aos seus vínculos de origem a história lastimaria que, tendo alcançado grandes momentos, não tivesse realizado a sua obra, a obra para a qual estava destinado. Agora não é possível que isso aconteça. Jorge Amado conquistou um lugar inequívoco em nossa literatura que se emancipa inclusive por sua obra, assume os seus traços nacionais com sua contribuição, define a universalidade de que se reveste agora pela representação do que é peculiar à terra e a gente brasileira. Isso é um índice de grandeza. (SODRÉ, 1958)
O Diário de Notícias, de Salvador, na coluna de Cláudio Tavares, de 31 de agosto, comparece à estréia dessa ficção amadiana, considerando que ela reúne toda a força de criação do poderoso escritor internacional, reunindo as mais amplas qualidades positivas da temática e da técnica da obra de ficção nacional, já reveladas em romances como “Jubiabá”, “Mar Morto”, “São Jorge dos Ilhéus” e “Terras do Sem Fim”.
O crítico avalia que, numa obra de realização amadurecida pela linguagem e pela imaginação voltada para os problemas do povo e suas histórias, para o folclore da gente do sul da Bahia no sentido mais elástico, Jorge Amado não demonstra ser um romancista que parou. Segundo Tavares, o escritor
[...] vive com uma verdadeira expressão da dialética da sociedade brasileira, de que se tornou uma figura cultural de importância, chegando a internacionalizar a sua mensagem de arte, sem fugir ao genuíno conteúdo popular do seu país. Exemplo disso é a tradução dos romances de Jorge Amado para 31 línguas diferentes e o seu aproveitamento como assunto para outras artes, como o Cinema e o Teatro. (TAVARES, 1958: 2)
A plasticidade da narrativa de Gabriela já havia sido notada por Glauber Rocha, em dois artigos publicados no Suplemento Dominical do Diário de Notícias, de Salvador. No primeiro deles, Gabriela I (ou Rififi à moda do cacau), publicado em 24-25 de abril de 1960, Rocha analisa o texto amadiano com seu desvio de cineasta: “Quando Jorge Amado diz que é um contador de histórias e que o sucesso de seu trabalho nasce do povo, discordo dele. O sucesso nasce de sua capacidade de reinventar e girar seus personagens. Se eu falasse de um romancista ‘metteur-en-scène’[...]” (ROCHA, 1960: 1).
Glauber Rocha persiste, em “Cravo e canela (ou Jorge Amado diretor de cena)”, divulgado no mesmo periódico, em 8-9 de maio de 1960, na leitura de Gabriela sob a ótica cinematográfica:
O “metteur-en-scène” que existe em Jorge Amado assegura futuro eterno para Gabriela. Um romancista não se basta como apenas criador de personagens. [...] A força de Gabriela é tamanha - e seu caráter tão bem forjado - que todo seu roteiro futuro se projeta além das mãos de Jorge Amado. O romance não deve ficar preso. O romance amadiano é “solto” e Gabriela cresce para ser a maior personagem feminina da literatura brasileira. E não reparte suas glórias com a chata da Capitu. (ROCHA, 8-9 maio 1960: 1)
Teria esse caráter de ser Jorge Amado “um romancista ‘metteur-en-scène’” influenciado no grande êxito da Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, estreado em 1976 e atingido o pique de dez milhões e oitocentos mil espectadores, até hoje recorde absoluto do cinema nacional?
Juarez da Gama Batista, em seu artigo “Gabriela, seu cravo e sua canela”, permanece na contemplação do visual do romance, comparando-o com o de outro monumento, seu coetâneo; para o crítico, Gabriela tem algo em comum com Brasília: mal tocam elas no chão das coisas subalternas, sujeitas à lei da gravidade:
Aquela vaporosa espontaneidade tem qualquer coisa de uma pose distinta e admirável. Fica-se à espera de que voltem ao natural, como se as pesadas massas suspensas e erguidas pudessem, de repente, sair da posição de sentido, como se Gabriela pudesse, um dia, soltar amarga, banal e humana queixa.
Ajunta que Gabriela e Brasília compõem no ar rápidos e sucessivos momentos de único equilíbrio, além do qual está a sufocação e o vácuo. Vivem, assim, numa terrível solidão. Numa tentativa de possível paralelo entre a arquitetural e o humano escreve que Brasília tem no seu gosto pelo grandioso a própria razão de ser; ocupa-se, só, da sua monumentalidade, espantosa e silente: nada tem a ver com as ruas expressivamente atuantes que definem o caráter dos grandes centros urbanos do mundo. Gabriela, do mesmo passo, não representa, não define, não reinvidica. Nada é e nada quer. Espera na cama o árabe Nacib, leva-lhe o almoço no bar, suporta os ditos e beliscões dos freqüentadores do “Vesúvio”, sempre a sorrir, muito pessoal, ausente, as ancas a rebolar.
E arremata uma tentativa de conclusão:
Gabriela é mais um valor plástico do que uma expressão romanesca. Mais elemento visual do que representação de atos, vontades, situações ou formas de ser e de viver. É pura imagem. É cor, forma, iluminação. Vale como estampa em movimento. Seu andar tem a contextura dramática e aflitiva de um “strip tease”, processa-se dentro do mesmo cerimonial exaustivo, tem a mesma convicção do valor decisivo de cada movimento, isolado e joga com a expectação dos circunstantes com perfeita consciência do fator durabilidade dos quadros sucessivos dessa alegoria. (BATISTA, 1961: 85-104)
De uma tônica de Gabriela, todos são unânimes: o êxito estrondoso da venda dos exemplares do livro.
Afrânio Coutinho faz coro no Correio Paulistano, de 6 de maio de 1959, nove meses após o lançamento da narrativa, considerando os 70 mil exemplares já esgotados, assinalando o fato como sem precedentes em nossa literatura, o que coloca seu escritor em posição ímpar no comércio livreiro nacional, além de ser uma prova da popularidade que o autor granjeia de norte a sul do País. No entendimento do professor e crítico, é uma nova experiência que está sendo posta em arte:
Graças a artista de profunda percepção criadora, recebendo de seu povo a melhor inspiração. É por isso, como no caso de Jorge Amado, esse o ama e se encontra nos seus livros. Por isso ele é popular. Porque identifica o valor nacional com o valor literário, numa obra-prima de arte literária que é, ao mesmo tempo, um livro genuinamente brasileiro. (COUTINHO, 6 maio 1959)
O poeta Menotti del Picchia, um dos mentores da semana modernista, também se pronuncia sobre o sucesso editorial da famosa Gabriela, em A Gazeta-SP, de 6 de agosto de 1958, informando que a critica foi unânime em exaltar nesse novo volume de Jorge Amado - “uma fascinante narrativa cheia de graça literária, de episódios, e cheia de interesse”. Salienta, com certo humor e ressaltando o ineditismo do êxito editorial, que o “[...] editor Barros Martins quase que esgotou o papel da praça com as nove sucessivas edições alcançadas até agora pelo livro que, em um ano apenas, viu se esgotarem noventa mil exemplares.”
Mostrando otimismo e incentivando o escritor por ele denominado de “cravo e canela”, o autor de Juca mulato investe: “O jorro fluvial de volumes, saindo a jato dos prelos, mostra que o Brasil, apesar do pessimismo de mentes, tem sobejos leitores quando são bons os livros. Esses leitores sabem premiar “quem escreve para eles”.
Picchia, talvez em repulsa aos trabalhos literários de oficinas ou de laboratórios lingüísticos, quem sabe, lembrando-se de obras como as de Guimarães Rosa, finaliza: “Sua [de Jorge Amado] concepção de romance - que é um romance mesmo, não pesquisa literária ou ensaio transcendental - atrai leitores de todas as classes. Do que precisamos é de muitos ficcionistas assim” (PICCHIA, 6 ago. 1959).
A nova obra amadiana, num reflexo de todo esse burburinho e com alterações em sua composição ficcional, divide as opiniões: trata-se de uma obra de mera continuidade na temática do cacau ou de um marco de outra postura do autor ante seu “ofício de escritor”?
Renard Perez, em “Jorge Amado: notícia bibliográfica”, editado em JORGE AMADO: povo e terra: 40 anos de literatura, de alguma maneira ataca a questão, quando afirma que Gabriela difere, por completo, de tudo que até então escreveu o romancista: “[...] é um romance politicamente descompromissado. E conta, em tom picaresco - divertida e ao mesmo tempo complicada história de amor.”
Perez destaca que a ficção amadiana “[...] arrebata - fato igualmente inédito - nada menos de cinco prêmios literários” PEREZ, 1961: 231-247), referindo-se, certamente, às láureas conquistadas por Gabriela, no ano de sua chegada: Prêmio Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro; Prêmio Paula Brito, pela Prefeitura do Distrito Federal, no Rio de Janeiro; Prêmio Luísa Cláudio de Souza, pelo Pen Clube do Brasil, no Rio de Janeiro; Prêmio Carmen Dolores Barbosa, em São Paulo; Prêmio Jabuti, da câmara Brasileira do Livro, em São Paulo (Cf. RUBIM, Op. cit., p. 54).
Por sua vez, Luís Costa Lima, em seu ensaio sobre “Regionalismo”(José Américo, José Lins do Rego, Jorge Amado), estuda os dois planos sob os quais se desenrola Gabriela, o político e o amoroso, e interroga: “Gabriela, cravo e canela é involução ou avanço?”, indicando que devem ser considerados o lado político e o propriamente estético.
O ensaísta examina se a perspectiva da realidade do escritor mudou. E indica que o importante em uma análise de cunho estético é saber se a qualidade da criação foi afetada para melhor ou pior. Em seu entender, Jorge Amado supera em Gabriela a rigidez primitiva, a dividir o mundo entre os grupos tão opostos e distintos quanto o preto e o branco, o grupo dos bons separado dos maus. E adianta:
Em relação à obra geral de Jorge Amado, o recuo político não significa uma involução estética. As coisas não são tão geométricas como pretende o realismo socialista. Se não houve tal paralelismo entre recuo político e depreciação estética foi porque a dimensão política de seus personagens não conseguia aglutinar-se com a urdidura do romance. Superpostos e desligados da estrutura da ficção, seu afastamento não representou uma perda, do ponto de vista estrito da ficção. Serviu sim para marcar os limites do realismo do autor. (LIMA, 1999: 364-389)
Ivia Alves, contumaz estudiosa da produção de Jorge Amado, abre espaço para conciliar os caminhos percorridos na interpretação da obra amadiana, quando, em seu ensaio “As mudanças de posição da crítica em torno dos romances amadianos”, constata a postura do falecido crítico literário brasileiro Roberto Reis, ex-professor da Universidade de Minesota, nos Estados Unidos, que desloca o romance Gabriela de uma possível segunda fase da obra de Jorge Amado e o recoloca junto com os romances da década de trinta.
Desse modo, afirma a possibilidade de ressignificação desse romance, dando-lhe uma nova leitura: “Ele [Roberto Reis] mostrou como Amado, em outro patamar, retomou o mesmo problema sócio-político do País, dos anos trinta. Isto quer dizer, Amado voltou a discutir como o conservadorismo do poder político rural encontra-se, embate-se e alia-se com os segmentos mais liberais”.
E acrescenta Ivia Alves, ao avaliar a idéia de a narrativa Gabriela falar de outra maneira, ser lida de outra forma:
Para mim, Amado discute como o País não se projeta para frente, não alcança a plena modernidade ou a industrialização e não desfaz a desigualdade entre as classes, na medida em que o comando político dos homens que detêm a terra impede qualquer segmento moderno de transformar a sociedade, porque suas armas são fortes demais: primeiro utilizam a guerra e o embate, não podendo vencer os segmentos que os enfrentam, criam o estratagema de alianças, enfraquecendo com elas as transformações. Assim, o romance Gabriela vai criar sentido para dois momentos: aquele que está encenado no romance, Ilhéus, 1925, às vésperas do tenentismo e de 30, com Getúlio Vargas, e o momento de 1958, vésperas da ditadura militar. (ALVES, No prelo)
Com o registro da movimentação de forças antagônicas acontecidas nos anos 30, estaria Jorge Amado profetizando a ditadura militar que viria em 1964? As reivindicações dos segmentos sociais excluídos da sociedade brasileira, retardadas pelo poder político conservador, não estariam contidas nas idéias de avanço e de recuo presentes em Gabriela?
No momento da posse de Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras, em 17 de julho de 1961, Raimundo Magalhães Júnior o recepciona com um discurso, em que faz a trajetória da vida do escritor e encerra com a chamada de suas criaturas, reservando um lugar de destaque para Gabriela, uma das responsáveis, senão a maior delas, pelo ingresso unânime de seu autor na Casa de Machado de Assis:
Mestres de saveiros, capitães da areia, pais-de-santo, moradores do Tabuão, da Baixa dos Sapateiros e do Pelourinho, habitantes suarentos dos encardidos sobradões da Salvador das velhas ladeiras e dos quitutes gostosos, vinde todos!
Mas, cuidado: nada de atropelos! Primeiro, deixai passar a senhora Dona Gabriela, com cheiro de cravo e cor de canela.
Vinde, já que estais aqui! Vinde, já que não podeis faltar, pois que por toda parte andais à frente do vosso criador, iluminando-lhe o caminho.
Vinde e cercai-o! O instante maior de sua glória é um reflexo da vossa maravilhosa eternidade! (MAGALHÃES JÚNIOR, 1961: 230)
Portanto: Jorge Amado, Cravo e Canela.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOSI, Alfredo. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 35ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 405-407.
COUTINHO, Afrânio. Gabriela. Correio Paulistano. São Paulo, 6 maio 1959.
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LIMA, Luís Costa. Jorge Amado. In: COUTINHO, Afrânio (Direção); COUTINHO, Eduardo de Faria (Co-direção). A literatura no Brasil; parte II/ estilos de época: era modernista. 5ª ed. revista. e atualizada. São Paulo: Global, 1999. v. 5. p. 364-389.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Discurso de recepção, na Academia Brasileira, na posse de Jorge Amado. In: --- et alii. JORGE AMADO: povo e terra: 40 anos de literatura. São Paulo: Martins, 1961. p. 211-230
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. Tradução Marina Appenzeller; revisão Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
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