Hoffmann - uma
experiência
unheimlich
Cristina Monteiro de
Castro
Pereira
(UERJ)
O
conto
de Hoffmann "O
Homem
da
Areia"
começa
com
a
apresentação
de uma
carta,
através
da
qual
o
leitor
vai tomando
ciência
do
drama
de Natanael,
que
deixa
a
mãe,
a
noiva
e o
amigo
à
sua
espera
e
parte
para
estudar
em
outra
cidade.
Um
encontro
com
um
vendedor
de
barômetros
traz à
tona
lembranças
soturnas de
sua
infância.
Escreve
então
para
Lotar,
amigo
e
irmão
de
sua
noiva,
revelando
seu
problema:
quando
criança,
fora
atormentado
por
uma
figura
de
certa
fábula
infantil,
o
Homem
da
Areia,
que
- diziam -
joga
areia
nos
olhos
das
crianças,
que demoram a
dormir à
noite. Os
olhos,
então,
saltam, ensangüentados, e o
malévolo
extraterrestre
(já
que
habita na
lua)
os
leva
consigo.
Natanael identifica o
Homem
da
Areia
com
o
advogado
Coppelius,
que
aparecia à
noite
em
sua
casa
e modificava os
hábitos
da
família,
promovendo uma
atmosfera
"estranha"
pela
expectativa
de
sua
chegada
(seu
pai
ficava
calado;
sua
mãe,
nervosa;
Natanael,
com
um
misto
de
terror
e
fascínio).
Ao
ser
pego,
certa
noite
no
gabinete,
espionando
seu
pai
e o
visitante,
Natanael afirma
ter
sido torturado e aterrorizado
por
Coppelius,
que
ameaçou jogar-lhe
brasas
nos
olhos.
Natanael considera Coppelius culpado
pela
morte
de
seu
pai,
ocorrida
durante
uma
explosão
em
seu
"laboratório
caseiro"
-
após
o
acidente
incendiário,
o
advogado
sumira,
sem
deixar
vestígios.
Nessa
primeira
carta,
num
tom
desesperado, Natanael revela
acreditar
que
o
vendedor
de
barômetros,
de
nome
Coppola, e o
advogado
Coppelius
são
a
mesma
pessoa:
Coppelius retornara
sob
a
identidade
de Coppola.
A
segunda
carta
vem de
Clara,
a
noiva,
que
lera a
primeira,
induzida
por
um
engano
do
próprio
missivista,
pois
ele
havia subscritado a
ela,
e
não
ao
verdadeiro
destinatário,
o
envelope.
Oposta
à
primeira,
que
apresenta
um
tom
soturno,
essa
carta
tenta
esclarecer
racionalmente
cada
ponto
do
mistério.
Clara
encontra
explicações
razoáveis
para
os
temores
de Natanael e afirma
que
os
monstros
só
existem
em
sua
cabeça.
A
terceira
carta,
novamente
de Natanael
para
Lotar,
expõe
seu
descontentamento
perante
a
atitude
racional
de
Clara,
incapaz
de
penetrar
no
mistério
e
compreender
sua
angústia.
Ao
mesmo
tempo,
Natanael renega
suas
antigas
preocupações:
um
professor
seu,
Spalanzani, assegura
conhecer
o
vendedor
e
lhe
garante
não
se
tratar
da
mesma
pessoa.
Termina a
carta
levantando
um
outro
assunto:
comenta
com
Lotar
sobre
a
filha
de
seu
professor,
Olímpia,
bonita
porém
estranha,
sempre
trancada
em
casa.
Quando
o
leitor
já
está familiarizado
com
a
situação,
certo
de se
tratar
de
um
conto
estruturado a
partir
da
troca
de
missivas,
entra
um
narrador
que
interrompe o
andamento
do
texto.
Como
um
"elemento
estranho",
o narrador "conversa"
com
o
leitor
e tece
comentários
a
respeito
de
seus
problemas
e
dúvidas
quanto
à
forma
de
apresentação
do
texto
antes
de
começar
efetivamente
a
sua
narrativa:
Não
me
ocorreu
nenhum
discurso
que
pudesse,
pelo
menos,
refletir
o
brilho
colorido do
quadro
que
eu
elaborara no
espírito.
Decidi
então
simplesmente
não
começar.
Aceite
portanto,
caro
leitor,
as
três
cartas
que
o
amigo
Lotar
gentilmente
me
cedeu
como
o
esboço
da
imagem
à
qual
a
partir
de
agora
me
esforçarei
para
dar
mais
e
mais
cor.
(HOFFMANN, 1993: 127)
O narrador
em
terceira
pessoa
irrompe no
conto
de Hoffmann "O
Homem
da
Areia",
quando
o
leitor
já
pensava se
tratar
de uma
obra
epistolar.
De uma
relação
direta
e
objetiva
com
os
fatos,
o
leitor
passa
a
tomar
conhecimento
deles
através
da
leitura
subjetiva
de
um
narrador
que,
prontamente,
o envolve, criando uma
cumplicidade
inspiradora de
certa
credibilidade.
O narrador disserta
sobre
sua
dificuldade
em
começar
a
história.
Sua
intenção
é "colocar
diante
dos
olhos"
do
leitor
um
quadro
que
o fará
perceber
a
grandiosidade
da
história
que
vai
contar.
Começa
um
discurso
que
ecoa o paragone instituído
por
Leonardo da Vinci no
século
XVI, uma competição
entre
as
artes
da
poesia
e da
pintura,
na
qual,
pelas
mãos
do
artista
plástico,
a
última
sai vencedora. O narrador,
como
Leonardo da Vinci, acredita
que
a imediaticidade da
imagem
é o
meio
mais
eficaz
para
convencer
o
leitor
de
sua
verdade.
Segundo
o narrador de "O
Homem
de
Areia",
as
palavras
não
conseguem
expressar
sentimentos
e
sensações
maravilhosas e fantásticas,
por
mais
que
tentem explicá-los. O
escritor
precisa
aproximar-se do
pintor
e
tentar
"pintar
quadros"
com
as
palavras,
formular
imagens
capazes
de
mostrar
ao
leitor
aquilo
que
quer
dizer:
Talvez
eu
consiga
rabiscar
algumas
figuras
como
um
bom
pintor
de
retratos,
fazendo
com
que
você
ache parecido
sem
conhecer
o
original,
sim,
como
se
você
tivesse a
sensação
de
ter
visto
a
pessoa
muitas
vezes
com
os
próprios
olhos
(Idem).
O narrador
começa
seu
texto,
segundo
sua
vontade,
"colocando
diante
de
nossos
olhos"
três
cartas:
se o
poder
da
visão
é o
mais
potente,
então,
vejamos as
provas
de
sua
narrativa.
Esboçadas as
figuras,
desenhados os
contornos,
o narrador se apresenta
para
"dar
mais
e
mais
cor",
para
continuar
seu
trabalho
de
envolver
o
leitor
na
trama,
agora
através
da
eloqüência.
A
preocupação
com
o
efeito
estético,
com
a
recepção
da
obra,
imperou na
arte
alemã dos
séculos
XVIII e XIX. O
fantástico,
o
horrível,
o
maravilhoso
não
foram
temas
gratuitamente
explorados
pelo
Romantismo
alemão.
O
conto
de Hoffmann "O
Homem
da
Areia"
(1817) é
um
campo
fértil
para
uma
leitura
que
se propõe a
enfocar
recursos
utilizados
para,
através
da
forma,
da
montagem
estrutural do
conto,
provocar
no
leitor
uma
experiência
estética
similar
àquela
que
sofre
sua
personagem
principal,
Natanael. É
justamente
essa
importância
dada
ao
efeito
da
leitura,
na
recepção
que
pode
ser
detectada
através
de uma
iluminação
de
suas
estruturas.
A
estrutura
do
conto
é montada
sob
a
forma
de
paradoxos,
de
opostos
que
se impõem
em
uma
convivência
"tensa",
"estranha".
Começando
pela
apresentação
de duas
formas
discursivas
diferentes:
uma
direta,
imediata
"como
uma
pintura"
- a
exposição
do relato e das
conjecturas
das
personagens
através
das
cartas;
a
outra,
indireta
- a
história
de Natanael filtrada
por
um
narrador
extremamente
retórico:
um
narrador
que
visa
a
provocar
no
receptor
a
mesma
sensação
experienciada
por
Natanael.
O
fantástico,
a
aproximação
do
real
e do
sonho,
da
lucidez
e da
loucura,
a
ambigüidade
é o
caminho
de Natanael e
também
da
estrutura
da
narrativa:
uma
estrutura
montada
em
paradoxos
e uma
personagem
vivendo
em
seu
limiar,
na
tensão
entre
forças
opostas,
com
uma inquietante
sensação
de "perigo
iminente".
A
mesma
dúvida
entre
o
que
é
real
e o
que
é
loucura,
que
é a
tônica
da
vida
de Natanael, é incutida no
leitor
através
da
estrutura
montada
pelo
autor.
Em
se tratando de
um
conto
fantástico
- a indecidibilidade, a
verdade
em
suspenso é de
enorme
importância
para
uma
fruição
estética
da
obra.
Assim
como
Natanael, caminhamos no
texto
com
a
insegurança
de
quem
não
sabe o
que
é
real
e o
que
não
é. O
conto
de Hoffmann
nos
encaminha
para
a iminência de
perigo,
para
o paralizante,
terrível
e
atraente.
Mais
do
que
contar
uma
história
fantástica,
Hoffmann
nos
leva
a
vivenciar
o
abismo:
provoca,
em
seus
leitores,
através
de uma "atomização
formal"
do
texto,
uma
sensação
estranha,
semelhante
àquela
que
paira
como
uma
névoa
insistente
sobre
Natanael e evoca o
efeito
de
torpor
trazido
pelo
sono,
ou
a ofuscação
sob
a arenosidade causada
pelo
Sandmann. O
texto
contrapõe
situações,
personagens
e
imagens,
mas
elas
não
se anulam,
não
chegam ao
ponto
de uma
urgência
de
decisão.
O
balanço
entre
as
extremidades
mantém a
tensão
estrutural do
texto,
levando o
leitor,
através
de
um
recurso
formal,
a uma
sensação
estranha,
paralela
à de Natanael.
As
estruturas
em
tensão
permanente
possibilitam e ressaltam,
através
de
um
recurso
formal,
uma
sensação,
um
insight da
experiência
de Natanael. O
sentido
escapa,
produz
um
"excesso"
que
permite ao
leitor
uma
experiência
mais
ampla
do
texto
- lido
não
só
como
conteúdo,
mas
"vivenciado"
também
através
da
forma.
Essa
tensão,
permanente
na
estrutura
do
conto,
é a
base
para
uma ativação
formal
que
provoca no
receptor
uma
sensação
de
desconforto
e
deixa
o
leitor
um
pouco
alterado,
em
suspenso... O
conto
explora ao
máximo
essa "suspensão"
provocada
pela
tensão
estrutural. Simultaneamente à
trama,
a
forma,
a
estrutura
do
conto
também
prende o
leitor
num
universo
sombrio,
nebuloso,
ambíguo,
que
o faz
duvidar
de
suas
certezas.
Freud analisou "O
Homem
da
Areia"
de
acordo
com
os pressupostos da
psicanálise.
Sublinhou a
importância
do
conceito
de unheimlich no
conto.
Das Unheimliche é o
estranho,
mas
um
estranho
que
surge do
familiar,
que
irrompe do pressupostamente
seguro
e
confortável.
Um
efeito
unheimlich é
passível
de
ser
produzido
através
de uma
relação
de
ambigüidade
entre
o
que
é
real
e
cotidiano
e o
que
é da
ordem
do
sonho,
da
imaginação.
Das
Unheimliche, "o
estranho",
está no
conto
ligado à
imagem
do
grotesco.
O
desejo
de Natanael está voltado
para
o
sombrio,
para
o
estranho.
Ao
mesmo
tempo
que
sente
repulsa
em
relação
ao
Homem
da
Areia
(a
imagem
de Coppelius,
um
homem
com
modos
e
feições
animalescas,
reforça
a
sensação
de
asco),
este
o atrai.
O
texto
é
todo
estruturado
em
termos
de
luz
e
sombra,
claridade
e
escuridão,
olhos
e
cavidades
vazias. A
alusão
a "olhos"
é
um
mote
contínuo
do
conto.
É
preciso
entender
a
importância
da
idéia
de "visão"
para
uma
fruição
estética
desse
conto.
É
através do
sentido da
visão
que
mais
facilmente se alcança o
sublime. Uma
profusão de
olhos e
palavras
ligadas ao
campo
semântico da
visão se
dissemina
pelo
texto,
servindo
como
dobradiças,
encaixes
que produzem a
mobilidade – ao
mesmo
tempo
que a
união - do
texto. A
fixação de
Natanael
por
olhos é
refletida no
âmbito
formal num
uso
excessivo da
palavra "olhos"
e de
elementos do
campo
semântico da
visão
(incluindo os
nomes das
personagens,
também ligados
a
esse
tema). A
repetição
desses
elementos,
agindo
subliminarmente,
não
deixa o
leitor se
afastar da
idéia de "visão",
como uma
lembrança
insistente
quanto à
importância de
uma "sensação
visual", a
importância da
visão
para a
experiência
tanto de
Natanael
quanto do
próprio
leitor.
Além do
olhar, o
fogo e
seus
desdobramentos (as
brasas, o
ardor),
também marcam
a
sua
presença. Essas
palavras
funcionam no
texto
como "pequenas
agulhadas"
que despertam,
ativam no
leitor uma
capacidade de
intuir o
sublime
através de
alguns de
seus
traços.
Em
sua
interpretação,
Freud considera a
fixação de
Natanael
em "olhos"
como
um
medo da
castração.
Sob o
ponto de
vista da
estética do
Romantismo,
esse
medo de "não
mais
ver"
poderia
ser lido
como
um
medo da
castração de
seus
sonhos, do
desejo
romântico de
viver
em "êxtase",
em
gozo
eterno,
próximo da
morte.
Voltando-me
para
uma
leitura
estética,
proponho
relações
triangulares,
nas
quais
o "olhar"
de Natanael é o
ponto
de
partida
e de
chegada.
Sugiro
também
que
esse
"olhar"
se desdobre no "olhar"
do
leitor,
em
prol
de
quem
foi montada uma
estrutura
"em
tensão",
que
o permite,
através
de uma
experiência
estética,
dobrar
em
si
a
experiência
de Natanael. O
receptor
(que
é
duplo:
Natanael e o
leitor)
é
exposto
a
situações,
cujas
características
o induzem a uma
experiência
unheimlich. Pensando
sob
esse
aspecto,
posso
citar
rapidamente
alguns
"triângulos"
em
que
Natanael está envolvido:
Natanael/Lotar/O
Homem
da
Areia:
Lotar,
a
razão
que
chama
Natanael,
um
reflexo
de
sua
imagem,
"se" se mantivesse
preso
à
realidade;
o
Homem
da
Areia,
seu
medo
e
seu
desejo,
representação
de
seu
impulso
para
a
loucura
e a
imaginação.
Natanael transita
entre
o
real
e a
fantasia.
Natanael/pai/Coppelius:
o Unheimliche irrompe do "familiar",
do "seguro"
para
o
inóspito,
o
que
não
é
confortável,
o
que
"não
abriga".
Na
interpretação
de Freud, o "bom
pai"
entra
em
conflito
com
o "pai
castrador" na
fantasia
de Natanael: de uma
figura
paterna,
familiar,
surge o Unheimliche, o
inóspito,
o
pai
que
não
"acolhe".
Esse
triângulo
se "repete
em
diferença",
na
relação
Natanael/professor/Coppola.
Natanael/mãe/babá:
a
mãe,
apoiada na
razão,
nega
o
perigo
do
Homem
da
Areia,
enquanto
que
a
babá,
o
elemento
"estranho
dentro
do
familiar",
ligada
às
crendices
populares
e ao misterioso, confirma a
lenda,
acrescentando a
ela
alguns
detalhes
escabrosos.
Natanael/Clara/Olímpia:
Clara
é,
para
Natanael, a
própria
razão,
a
claridade
excessiva,
o
real
que
chega
a
ofuscar.
Olímpia,
repositório
e
espelho
de
seus
desejos,
de
seus
sonhos,
suas
fantasias.
Olímpia é
um
autômato
animado,
o
que,
de
acordo
com
Jentsch, citado
por
Freud
em
seu
texto
"O
estranho"
(Das Unheimliche), provoca uma
incerteza
intelectual
quanto
ao
objeto
ter
ou
não
vida
e
cria
uma
imagem
de
grotesco
favorável
a uma
sensação
unheimlich.
Natanael/Coppelius/Coppola: o
aparecimento
de Coppola e a
imediata
analogia
que
Natanael faz
com
a
figura
de Coppelius ilustra uma
outra
possibilidade
através
da
qual
se consegue
um
efeito
unheimlich:
algo
já
conhecido,
pertencente ao
passado,
um
antigo
trauma
esquecido e recalcado reaparece de
repente.
Segundo
Freud, o Unheimliche pode se
manifestar
também
através
de uma
situação
recorrente,
que
se repete, causando uma
sensação
estranha.
As
situações
recorrentes
afetam
também
o
leitor
através
da
forma
do
texto,
das
repetições
de
palavras
e de
construções
textuais:
olhos
e
óculos
são
arremessados
por
diversas
vezes;
a
presença
constante
de
brasas;
o
fogo
que
destrói o
gabinete
do
pai
e o
quarto
do
filho;
os
personagens
que
se desdobram: Coppelius/Coppola,
Clara/mãe,
pai/
Spalanzani.
Os
exemplos
no
texto
de
situações
triangulares,
nas
quais
Natanael atua
como
"receptor"
de uma
experiência
estética,
ponto
de
tensão
entre
duas
forças
opostas e
complementares
para
a
experiência
do unheimlich, podem
ser
relacionados às
situações,
também
triangulares,
que
o
autor
incute ao
leitor.
Freud comparou o
texto
de
ficção
de Hoffmann aos
binóculos
que
Natanael comprara de Coppola: uma
espécie
de "portal"
capaz
de
transportar
a
personagem
e o
leitor
para
uma
outra
realidade
-
ou
para
a
ficção.
Um
dos
recursos
mais
comuns
do
gênero
fantástico
é
criar
uma
estrutura
em
paradoxo
que
não
permite ao
leitor
ter
certeza
absoluta
das
fronteiras
entre
o
real
e a
imaginação.
É o
que
o
conto
faz, ao
opor
constantemente
situações
e
ponderações
das
personagens
que
oscilam
entre
o
real
e a
fantasia,
sem
que
uma
solução
seja encontrada.
Aliado
a
isso,
o
conto
repete essas
situações,
que
se multiplicam "em
diferença",
o
que
reforça
a
impressão
de unheimlich na
recepção.
Quanto
à
experiência
do
grotesco
e do
sublime,
o
receptor
a alcança
também
por
um
insight, a
partir
da
constante
alusão
a
figuras
e
palavras
ligadas
ao
campo
da
visão.
Freud
fala
de uma "solução"
para
o
enigma:
ao
final
do
conto,
ficaria
claro
que
Coppellius e Coppola
são
a
mesma
pessoa,
logo,
o
Homem
da
Areia
seria
real.
Numa
abordagem
estética,
a
questão
muda
e a
estrutura
permanece
em
aberto.
Voltemos ao narrador.
Quem
é o narrador?
Pergunta
sem
resposta
definitiva,
o narrador se apresenta
como
"um
amigo"
de Natanael. E se o narrador fosse o
próprio
Natanael? E se a
história
de Natanael
não
terminasse
com
sua
morte?
E se tivesse morrido
apenas
em
mais
uma de
suas
histórias
fantásticas? O
poema
que
leu
para
Clara,
que
tanto
a horrorizou,
desdobra-se e se realiza na
cena
em
que
Spalanzani
joga
os
olhos
arrancados de Olímpia no
peito
de Natanael. O
poema
de Natanael, sendo uma
parte
da
história
que
o narrador apresenta aos
leitores,
se repete nela. O
conto
poderia,
então,
ser
também
obra
de Natanael (como
o
poema),
personagem
que
se desdobra
em
narrador e
autor,
identificando-se
com
Hoffmann. Natanael,
autor
do
poema,
o narrador e Hoffmann, o
autor
do
conto,
apresentam variações da
mesma
história.
Hoffmann dissemina "olhos"
pelo
texto,
arremessa "olhos"
em
brasa
contra
nós,
receptores,
visando
atingir
nosso
peito,
incendiar
nossos
corações.
A
cena
se repete
mais
uma
vez,
o "estranho"
está
novamente
presente.
O
leitor
encontra-se num
limiar,
ao
mesmo
tempo
dentro
e
fora
do
conto.
O
texto
é a
lente
através
da
qual
o
leitor
experiencia o "estranho",
assim
como
as
lentes
do
binóculos
que
Natanael comprou de Coppola alteraram
seu
modo
der "ver":
os
dois
instrumentos
permitem uma
adulteração
da
realidade
na
recepção:
subjetivizam o
real.
Hoffmann prende o
leitor
nas
amarras
do
texto,
torna-o
um
seu
personagem
e coloca-o numa
rede
de
estrutura
paralela
àquela de Natanael.
Novamente
ficção
e
realidade
se misturam. Pode-se
pensar
agora
na
figura
de uma
esfera,
rodando e repetindo-se
como
os
gritos
de Natanael: "Roda
de
fogo,
gire -
roda
de
fogo,
gire". O
leitor
encontra-se,
como
Natanael, no
limiar
entre
o
real
e a
fantasia,
é
receptor
e
personagem.
As
relações
triangulares
se inter- relacionam
dentro
de
um
círculo,
uma mandala
que
representa o
infinito,
que
une
real,
fantasia,
realidade
e
ficção.
O
símbolo
do
círculo
é relacionado
com
a
idéia
de self: "ele
expressa
a
totalidade
da
psique
em
todos
os
seus
aspectos,
incluindo o relacionamento
entre
o
homem
e a
natureza"
(JAFFÉ, 1964: 240). Os
triângulos,
que
se interpenetram no
interior
da mandala, repetem
ainda
uma
vez
essa
mesma
simbologia:
Os
dois
triângulos
interpenetrados têm
um
significado
simbólico
semelhante
ao da mandala
circular
mais
comum:
representam a
unidade
e a
totalidade
da
psique
ou
self, de
que
fazem
parte
tanto
o
consciente
quanto
o
inconsciente.
(Idem)
A "identidade
absoluta"
é, de
certa
forma,
alcançada esteticamente no
conto
de Hoffmann, na
imagem
de uma mandala,
que
une a
natureza,
a "consciência
obscura",
e o
homem,
a "consciência
clara",
apontando
para
a
união
do
múltiplo.
Essa
idéia
remete a Schelling, filósofo do
Idealismo
alemão
citado rapidamente
em
um
exemplo
por
Freud
em
seu
artigo
"O
estranho",
cujas
idéias
influenciaram a
literatura
do
Romantismo.
Para
Schelling,
somente
através
da
arte,
através
de uma
experiência
estética,
é
possível
um
insight da "identidade
absoluta".
Na
arte
convivem o
real
e a
fantasia,
um
alimentando-se do
outro,
numa circularidade
infinita,
divina.
O
conto
de Hoffmann é
circular:
é uma
mônada
que
apresenta o
leitor
como
sujeito
e
objeto
de uma
experiência
estética,
através
da
qual
o
próprio
receptor
também
se desdobra
em
real
e
ficção.
Numa
leitura
que
visa
a aproximar-se da
visão
de
mundo
da
época,
das Unheimliche é o
estranho
insight do
possível
religamento do
eu
consciente
e do
eu
inconsciente
através
de uma
experiência
estética.
Bibliografia
FREUD, Sigmund. O
estranho
in
Obras
Completas.
Rio
de
Janeiro:
Editora
Imago. v. XVII.
HOFFMANN, E.T.A. O
Homem
da
Areia
in
Contos
fantásticos.
Rio
de
Janeiro:
Imago, 1993.
http://theliterarylink.com/hoffmann.html
JUNG, Carl G. O
homem
e
seus
símbolos.
Rio
de
Janeiro:
Nova
Fronteira,
1964.
www.angelfire.com/ak/acropole/page23.html
www.unicamp.br/iel/alunos/publicacoes/textos/h00001.htm
www.uol.com.br/percurso/main/pcs03/BernardoUnheimlich.htm