Imprensa
&
Literatura
sociedades
e
imaginários
Alexsandra
Ferreira
da Silva (UERJ)
Iza Quelhas (UERJ)
O
presente
trabalho resulta do
Projeto de
Iniciação
Científica “Literatura
e
Imprensa:
ecos da
tradição”,
apoiado
pela FAPERJ
com uma
bolsa de IC.
Este
projeto
procura
reunir,
analisar e
relacionar
à
vida
política e
social os
textos
literários
publicados
pelo
jornal “O
São Gonçalo”
nas
décadas de 40
e 50. Nesta
época o
jornal possuía
uma
coluna
chamada “Feira
de
Novidades”, na
qual
era publicada
uma
enorme
variedade de
textos de
formato
variado –
poemas,
poesias,
crônicas,
assim
como
outros
textos de
gênero
híbrido.
Algumas
considerações
sobre
textos
literários, do
que compreendemos
como
literatura e
sua
função se fazem,
então, necessárias.
Antes de
mais
nada é
preciso
ressaltar
que
tanto as
obras literárias
quanto as não-literárias propiciam
um
acervo
significativo
para a
compreensão das
formações
sociais.
Obras de
teoria destacam o
que pode
ser chamado de “literariedade” dos
fenômenos não-literários.
Isso significa
que as
marcas do
literário, no
seu
sentido
mais
amplo – literariedade –, estão
presentes numa
grande
variedade de
textos,
inclusive
nos de
cunho não-
literário.
A
função da
literatura assume
um
papel
ainda
maior.
Ela pode
ser utilizada
como o
veículo de uma
ideologia, promovendo o
questionamento,
ou
não, da
autoridade e dos
arranjos
sociais. Desta
forma, devemos “observar
sobretudo a complexidade e
diversidade da
literatura
como
instituição e
prática
social” (CULLER,1999: 46). A
literatura possibilita
dizer o
que
quer
que se imagine,
por
isso, ao
lidar
com
leituras de
textos
escritos
em uma
coluna de
jornal, deve-se
atentar
para a
importância da
compreensão do
imaginário produzido
socialmente. O
imaginário, neste
caso, refere-se a
um “deslocamento de
sentido,
onde
símbolos
já
disponíveis
são investidos de outras significações
que
não
suas significações ‘normais’
ou ‘canônicas’” (CASTORIADIS, 1987 : 154). Neste
sentido, é
importante
destacar o
que diz Terry Eagleton
acerca do
texto
literário.
There is a kind of disproportion between the
signifier and the signified, by virtue of the abstratic excesses of the language,
a language that flaunts itself and evokes rich imagery. (EAGLETON, 1987 : 154)
Pode-se
perceber,
então,
que a
literatura, relacionando
forma e
conteúdo,
convida o
leitor a
um
certo
tipo de
atenção,
fornecendo
grande
material
para
reflexão.
Como uma
construção intertextual, o
texto
literário
permite
um
universo de
significação
que conduz o
leitor a
tal
reflexão.
Uma
obra existe
em
meio a
outros
textos,
através de
suas
relações
com
eles
(intertextualidade).
Ler
algo
como
literatura é considerá-lo
como
evento
lingüístico
que tem
significado
em
relação a
outros
discursos. (CULLER,
1999: 40)
A
leitura de
um
texto
literário
como
processo é
composto
por duas
faces: a
estética e a
artística
como afirma
Wolfgang Iser.
A literary work has two poles: the aesthetic and
the artistic. The artistic pole is the author’s texy, and the aesthetic is the
realisation accomplished by the reader. Hence the literary work cannot be
considered as the actualization of, identical to, the text, but is situated
somewhere between the two. Iser speaks of the text as a
virtual character that cannot be reduced to the reality of text
or to the subjectivity of the reader, and it derives its dynamism from that
virtuality. Readers passing through the various perspectives
offered by -the text relate the different views and patterns to one another,
thus setting the work and themselves in action.
(ISER, 1995: 20-21)
Muitos dos
textos publicados
pela
coluna “Feira de
Novidades” estabeleciam
relações
com o
que estava acontecendo
político
ou
socialmente na
época,
tanto no
município de
São Gonçalo
quanto no Brasil, de uma
forma
geral.
Ao
estudar os
textos,
mais
precisamente
aqueles publicados no
ano de 1954, percebemos a
presença
notória de
textos
literários relacionados à
morte de Getúlio Vargas.
São
textos
que homenageiam a
figura presidencial, procurando exaltá-la,
atribuindo
um
grau de
importância
que vai da
produção de
efeitos
pragmáticos aos simbólicos,
após o
suicídio do
Presidente.
A
maior
parte da
produção
literária publicada
por
ocasião do
falecimento do
presidente da
República apresenta uma
relação de intertextualidade
com a
carta
que o
próprio Getúlio Vargas escreveu
antes de
cometer
suicídio, na
manhã de 24 de
agosto de 1954. A
carta é a
grande
matriz
que inspirou os
autores da
época na
construção de
um
significativo
número de
homenagens à
figura presidencial.
Alguns desses
textos
serão
aqui analisados.
“In Memoriam” de Eduardo Pacheco: da
exaltação
à
santidade
“In Memoriam” é
um
poema
exaltatório,
que
busca
elevar a
imagem de
Getúlio Vargas, construindo
um
símbolo de
um
herói
ou
até
mesmo de
um
santo.
A
morte de Getúlio é
vista no
poema
como
um
ápice de uma
trajetória, uma
forma de
redenção de
tudo
que
ele pudesse
ter
feito de errado, sendo
elevado a
um
nível
superior, santificado:
(...)
Nunca se viu
tal
exemplo!
Se
algum
defeito
tivesse,
Agora
desaparece.
Colossal!
Merece
um
Templo! (...)
É interessante
notar
também
que no
texto
perpassam
marcas do
Romantismo e do
Parnasianismo.
O
poema valoriza
o
nacional, e
esse
nacionalismo é
tanto a
consagração da
ordem
quanto a do
nacionalismo
romântico,
como uma
exaltação da
natureza,
podendo
ser
até
mesmo
considerado
como
mais uma
forma de
exaltar o
herói
que, no
texto e
fora dele é
Getúlio Vargas.
Estarrecida assistiu
Toda a
Nação
Brasileira
(...)
(...) Getúlio, na
adversidade,
cresce aos
olhos da
Nação (...)
A
exaltação da
pátria,
com a
construção de
um
personagem
heróico,
valorizado
como
um
herói
nacional,
sugere
marcas do
Romantismo. É
importante
destacar
que as
características
desse
herói realçam
a “valentia”
capaz de
fazer
com
que Getúlio
desse “a
vida
pela
Paz”,
em
prol da
humanidade, no
caso a
sociedade
brasileira.
Algumas
marcas do
Parnasianismo
perpassam o
texto no
que diz
respeito ao
aspecto
formal. A
utilização de
recursos
como as
rimas
cruzadas
ou alternadas
para se
obter o
ritmo e a
musicalidade, aponta uma das
características
formais do
movimento
literário
posterior ao
Romantismo.
É
importante
destacar
também a
função desse
texto
literário,
que
parte da
emoção
para
gerar uma
ação. O
texto é
construído
de
forma a
envolver o
leitor numa
esfera
emocional
que o
sensibiliza:
(...) Chorai! Chorai!
Multidões!
A
perda
nacional!
(...)
Tal
sensibilização
emocional
leva o
leitor à
construção da
ação desejada
pelo
autor. Neste
caso esta
ação
poderia
ser
vista
como a
construção de
um
símbolo de
bondade e
caridade,
um
marco
produzido
socialmente,
através da
imagem de
Getúlio
como
um
santo,
construída no
texto:
(...)
Mas armai,
nos
corações,
ao
Herói,
um
pedestal!!!
“Getúlio! Getúlio!” de Jorge Matuck:
a
crônica
e o
conto
de
fadas
Esta
crônica vai se
construindo do
início ao
fim
como
um
conto de
fadas, mantida
aquela
clássica
oposição
entre o
bem e o
mal.
Já no
início do
texto pode-se
perceber a
alusão
comparativa de
Getúlio Vargas à
figura do
Papai Noel – o
bom velhinho:
(...) E
lá
vinha o
querido Velhinho,
de
pé no
seu
carro
com
acenos de
grande
satisfações,
trazendo
sempre as
suas
palavras de
agradecimentos e
conforto
para aquela populaça
que
horas
e
horas
ficava emocionada naqueles
lugares
predestinados aos
longos
discursos de
Getúlio
sempre
sugestivos
(...)
Neste
trecho se percebe
claramente o
jogo de
sentidos
construído
através da
figura do
Papai Noel
que vem
para
trazer
conforto e
alegria
através de
presentes;
neste
caso, os
presentes
seriam representados pelas
palavras
que
constituíam os
discursos de
Getúlio Vargas.
Estes
discursos
trariam
conforto
para aquelas
pessoas
que ficavam
horas e
horas
aguardando emocionadas
pelo
momento “mágico”
de
sua
passagem e de
sua “fala
encantatória”. É
como se o
momento
que precedesse
os
discursos de
Getúlio Vargas aludisse ao
momento de
expectativa
pela
chegada de
Papai Noel.
Como foi
dito
anteriormente
a
dicotomia
entre o
Bem e o
Mal se faz
presente.
(...)
Por
que
homens
maus levaram o
Velhinho a
esse
extremo? (...)
(...)Torturaram
tanto o
Velhinho
que deveria
ser venerado
com
todo
carinho (...)
As
expressões
“homens
maus”
que se opõem à
imagem do
“Velhinho”, ao
mesmo
tempo
em
que
estabelecem
um
elo
com os
contos de
fadas, fazem
parte dessa
dicotomia
para
mostrar
quanto “mal”
alguns
políticos
fizeram a Getúlio, levando o
presidente a
cometer
suicídio. É uma
forma de
mostrar o
pensamento
que vigorava
depois da
leitura da
carta,
que atentava
para o sofrimento de
Getúlio Vargas
devido a “incompreensão
de
alguns de
seus
auxiliares”.
A intertextualidade, nessa
crônica,
não se
esgota
apenas na
presença do intertexto –
os
contos de
fadas –, há
também a
presença
notória de uma
referência a
textos e
imagens
bíblicas. A intertextualidade
com a
Bíblia eleva a
imagem de
Getúlio à
figura
sem
máculas de
um
santo:
(...)
todo
carinho e
amor de
um
verdadeiro
Apóstolo do
Bem (...)
(...)
Qual de
vós,
homens
maus,
não tendes
culpa? Atire a
primeira
pedra...
assim disse
Jesus,
porque
cada
qual arrastava
um
rosário de
culpas e
defeito
tão
grande
que se
envergonharam e fugiram (...)
Um
outro
tópico
presente no
texto é a
idéia de
grandeza
como uma
forma de
enaltecer a
figura de
Getúlio Vargas. Uma das
formas
que a autora
utilizou
para enaltecê-lo foi o
emprego de
dois
adjetivos,
colocados
lado a
lado,
para caracterizá-lo e a
seus
atos:
(...)
ele
com
sua
inteligência
profunda
e
sábia
(...)”
(...)
lá voltava o
Velhinho,
sorridente
e ruborizado (...)
(...)
seu
generoso
coração
que se abria
para
todos
em
bondade
e
satisfação (...)
(...) atendia ao
povo
com
carinho
e
amor (
...)
(...)
tinha a
alma
sempre
gentil
e
repleta
de
caridade
(...)
A
idéia de
grandeza
citada
acima
também se faz
presente
em
expressões
como:
(...) o
homem
mais
bondoso do
Brasil (...)
(...) prestou
tantos
serviços à
Pátria, e
durante
todos os
dias dos
anos, (...)
Esse é
um
texto
literário
muito
rico
em
relação a esta
temática;
ele
mostra o
quão
importante é a
produção
literária
publicada na
época e o
quanto a
literatura tem uma
função
importante na
produção do
imaginário
construído
socialmente.
“Alma
Ferida”
de Risoleta Matuck: o
ciclo
e o
mito
Este
soneto pode
ser
visto
como a
representação
de
um “ciclo”
em
homenagem “ao
imortal
Getúlio Vargas”,
como a
própria autora
define, o
que aproxima a
forma
circular da
linguagem do
poema à
construção do
mito.
A
forma
como o
texto foi
construído
reforça a
idéia de
ciclo. A
autora
começa o
poema
com uma
frase da
carta de
Getúlio Vargas: “DEIXO ESTA
VIDA
PARA
ENTRAR NA
HISTÓRIA!...”
e o termina
com a
mesma
frase; o
ciclo torna-se
completo.
Este
ciclo
tenta
representar,
então, a
inquietude de
uma
alma
angustiada, de uma “alma
ferida”: a
alma de
Getúlio Vargas. É
como se,
antes de
morrer, o “eu
interior” do
Presidente
estivesse conturbado, a
imagem se
condensa na “alma
ferida”
que dá
título ao
soneto:
(...)
Triste
expressão de
uma
alma
angustiada
Que
após
mil
lutas nesta
trajetória,
Enfim se
encontra a
sós,
abandonada (...)
Essa
angústia tem
seu
ápice
quando esta
ilustre
figura comete
suicídio,
fato
que parece
trazer a
paz
para esta
alma
que se
encontrava
tão sofrida:
(...) E
como
exemplo a
turba
transitória,
Seu
destino lavrou nesta
sentença:
– DEIXO ESTA
VIDA
PARA
ENTRAR NA
HISTÓRIA!
Em
função do
caráter
cíclico, o
texto sugere
uma releitura,
como se o
ciclo
recomeçasse. O
texto oferece,
então, a
possibilidade de
ressaltar uma
outra
visão,
além da
história
daquela
alma
que sofria; a
autora consegue
ressaltar
também a
vida
com “grandes
feitos” de
Getúlio,
como uma
maneira de
enaltecer a
imagem do
Presidente.
Em
meio a
toda
inquietude na
qual se
encontrava a
alma de
Getúlio, há uma
volta ao
passado
como uma
maneira de
rever a
história e
seus
momentos de
êxtases
coletivos,
entre
eles Getúlio
chegando à
Presidência,
nos
braços do
povo:
(...)
Não
muito
longe no
fulgor da
estrada...
...Volta
ao
passado a
mística
memória
E
pela
multidão se
vê coroada
(...)
A autora utiliza
este
fato
para
enaltecer,
homenagear a
figura de
Getúlio Vargas:
(...) E
pela
multidão se
vê coroada
...É
quase
um
DEUS
em
pleno
altar da
Glória! (...)
A
palavra
DEUS
toda grafada
em
letras
maiúsculas
também é
um
recurso
utilizado
para
atribuir
um
grau de
importância
ainda
maior à
imagem de
Getúlio Vargas.
A
construção eleva o
Presidente a
um
símbolo de
grandeza,
construído
para
mostrar Getúlio
como
um
santo, o
que continua
na
estrofe
seguinte,
momento
em
que
mais uma
vez o
ciclo se
completa:
(...)
Mas
eis
que
como
CRISTO, foi
traída...
e
para
não
matar a
sua
crença
no
coração do
povo, deu-lhe
a
vida (...).
Pode-se
dizer
que há uma
retomada do
fato
que o
perturbava e
que o levou ao
suicídio.
Porém, o
suicídio neste
caso serviu
para
mostrar
que,
além de
todo o
trabalho,
ele foi
capaz de
dar a
própria
vida
pelo
povo:
(...) no
coração do
povo, deu-lhe
a
vida (...)
Com
isso, a autora
engrandece
ainda
mais a
imagem do
Presidente
Getúlio Vargas e
fecha o
ciclo
mostrando uma
vida de
grandes
feitos,
digna de
ser enaltecida e
jamais
esquecida.
Este
soneto
construído a
partir da
idéia de
círculo tentou
mostrar a
trajetória de
uma
vida,
ressaltando
que os “grandes
feitos de
Getúlio”
não terminam
com a
sua
morte,
pelo
contrário, é a
partir deste
momento
que está se
recomeçando
um
novo
dia, iniciando
uma
nova
história.
A
análise dos
textos
literários
feita
através dos
tópicos
destacados
nos permite
perceber a
importância da
relação
entre
literatura,
imprensa,
sociedade e
imaginário. A
literatura, neste
caso, dialoga
com a
realidade
social
não
só ao
aparentemente
mencioná-la
como
referência,
mas
sim ao
produzí-la
ou reforçá-la
no
imaginário
social, ao
utilizar
imagens,
símbolos,
intertextos e a
força da
tradição.
Refletir
sobre a
literariedade é
manter
diante de
nós,
como
recursos de
análise desses
discursos,
práticas de
leitura
trazidas à
luz
pela
literatura: a
suspensão da
exigência de
inteligibilidade
imediata, a
reflexão
sobre as
implicações
dos
meios de
expressão e a
atenção
em
como o
sentido se
faz. (CULLER, 1999: 47)
Referências
bibliográficas
BENNET, Andrew. Readers and Reading. New
York: Longman Publishing, 1995.
CASTORIADIS, Cornelius. A
instituição
imaginária da
sociedade. 5ª ed. Trad. Guy Reynaud.
Rio de
Janeiro:
Paz e
Terra, 1982.
CULLER, Jonathan.
Teoria
literária – uma
introdução.
São Paulo:
Beca
Produções culturais Ltda., 1999.
EAGLETON, Terry. Literary
Theory. 2nd Oxford: Blackwell
Publishers, 1996.
Iser,
Wolfgang. Readers and reading. New York: Bennet, Andrew. Longman
Publishing, 1995: 20-21.