Leituras, concepções e usos do literário
Flávia Campos (UERJ)
Iza Quelhas (UERJ)
Nesta comunicação apresentamos algumas questões relacionadas às concepções e às práticas de leituras, elegendo como ponto de partida as entrevistas realizadas com moradores de São Gonçalo, homens e mulheres de diversas faixas etárias, profissões e formação escolar. As informações foram reunidas a partir de pesquisa de campo na qual foi utilizado um roteiro de questionário-entrevista, como um dos procedimentos metodológicos selecionados para os trabalhos de campo no projeto Memórias textuais: a leitura de textos em São Gonçalo, orientado pela professora Iza Quelhas. A nossa proposta é a de analisar algumas questões que mais se destacaram nessa etapa do projeto - as concepções sobre o que é e como é considerado o texto literário e/ou ficcional - anotadas em pesquisa de campo, desenvolvida durante o período de janeiro a julho de 2003, entre os moradores de alguns bairros em São Gonçalo, destacamos os bairros Paraíso e Porto Novo onde conseguimos realizar o maior número de entrevistas.
Em termos teóricos, adotamos a concepção de que a leitura é um processo em que interagem sujeito leitor e texto, e que esse leitor deve participar de forma ativa e não passiva na construção de sua própria interpretação. Como afirma Terry Eagleton, em seu ensaio Teoria da Literatura: uma introdução, no capítulo inicial “O que é literatura?”, selecionamos o seguinte trecho:
Se não é possível ver a literatura como uma categoria objetiva, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. (...) o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm eles próprios uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre os outros. (EAGLETON, 1997 : 22)
A leitura, por sua vez, é “(...) uma prática individual e social. É individual por que nela se manifestam particularidades do leitor: suas características intelectuais, sua memória, sua história; é social por que estão sujeitas às convenções lingüísticas, ao contexto social, à política”.(NUNES, 1994). As práticas de leitura irão enfatizar a construção de interpretações condicionadas ou moldadas pela história de vida individual, social e literária.
Uma recriação ou invenção de realidades através de palavras que assumem combinações singulares adquirindo um caráter conotativo - será que esta é uma das marcas principais dos textos literários? Mas o que é um texto literário? Observamos que estas questões alimentam algumas de nossas observações durante o processo de entrevista e interpretação das informações reunidas a partir de então. Constatamos que os entrevistados fazem parte de uma comunidade leitora ainda em processo de formação, inseridos num contexto em que se acentuam a escassez de bibliotecas e livrarias. Podemos evidenciar esse fato observando a densidade demográfica, visto que São Gonçalo é um dos maiores municípios do estado do Rio de Janeiro, em contraste com uma quase total ausência de livrarias, escassas bibliotecas e similares.
Ao analisarmos as respostas dadas ao questionário-entrevista, levamos em consideração o grau de maturidade do sujeito como leitor, o nível de complexidade do texto, o conhecimento prévio e o objetivo do leitor ao escolher um determinado tipo de leitura, o que nos levou a destacar duas questões do questionário-entrevista do projeto para comentários e estudos: 1) a pergunta que procura identificar se os entrevistados conhecem os elementos que compõem a estrutura de um texto literário; 2) a que identifica o que diferencia ou marca um texto literário. É importante ressaltar que articularemos as respostas dadas a outras questões presentes também no questionário-entrevista, para que melhor possamos compreender a dimensão das concepções de textos literários dos entrevistados.
A partir das perguntas do questionário: o que você considera importante num texto literário/ficcional? e o que você mais aprecia num texto literário/ ficcional?, que podem ter suas respostas entrelaçadas ou muito aproximadas em suas motivações por parte dos leitores, verificamos uma certa complexidade nas respostas dadas a essas indagações. Analisando as informações reunidas, comparando e cruzando as respostas, observamos que, tanto os homens quanto as mulheres, em sua maioria, demonstraram ter dificuldades no processo de leitura e compreensão de textos literários e/ou ficcionais. Muitos deles, não responderam a essas questões e uma grande maioria não tem uma prévia concepção do que é um texto literário, a não ser que nos vinculemos ao repertório lido durante a formação escolar dos entrevistados. Tal situação não provocou nenhuma surpresa de nossa parte uma vez que este é um dos temas mais estudados em termos teóricos pelo grupo de pesquisa. Por exemplo, uma resposta bastante freqüente dos entrevistados foi a valorização e a importância de o texto literário propiciar uma leitura “fácil”. A leitura como entretenimento, ressaltada pelos entrevistados, deve ser analisada em várias direções, na medida em que, academicamente, os textos literários apresentam uma elaboração mais complexa de linguagem, jogo de palavras, figuras de linguagens dentre outros, o que afasta tais textos do que se possa chamar de um texto de leitura “fácil”.
Na medida em que obtivemos respostas como “a dinâmica da história se for detalhista demais enjoa”; “se for um livro que seja fácil de ser compreendido acredito que ele é alcançado por pessoas de várias classes sociais”; “a leitura fácil”; simplesmente um “não sei”; “não sei, só leio livros evangélicos”, nos questionamos até que ponto os entrevistados estão lendo, no sentido da leitura como produto de interação entre texto-leitor. Essa busca por uma leitura “fácil” é algo preocupante, pois com a grande competição que se insere no mercado de trabalho verificamos que as pessoas optam por leituras mais “rápidas” e “fáceis”, pois precisam “ganhar tempo”, como afirmaram vários entrevistados. Muitos, ao responderem a outras questões do questionário, afirmaram precisar “ganhar tempo” com uma leitura que seja de “fácil entendimento” e que possa contribuir, de certa forma, para a sua ascensão profissional, restando pouco tempo para a leitura motivada por outros interesses, como por exemplo pelo próprio prazer proporcionado pela arte de fruir a leitura de um texto literário.
Para uma outra pergunta que fazia parte do questionário-entrevista sobre quais livros/textos estes entrevistados estavam lendo no momento, os mais citados foram livros e textos como os de auto-ajuda, livros/textos relacionados à formação profissional e textos religiosos. Percebemos, ao compararmos as respostas coletadas em outras questões, que os entrevistados não lêem, com tanta freqüência, os textos literários. Notamos que os autores mais citados que fazem parte do cânone literário são José de Alencar, Machado de Assis e Jorge Amado. É importante observar também que Paulo Coelho, autor que já faz parte da Academia Brasileira de Letras, foi bastante citado, com referências freqüentes aos títulos iniciais de sua produção (Brida, Diário de um mago etc.). Todavia, devemos atentar para algumas questões, tais como o fato desses autores fazerem parte dos mais citados e enfatizados nas leituras promovidas pelas escolas, ou freqüentemente citados na mídia como Paulo Coelho.
Com isso, nos preocupamos se esses autores estão sendo lidos por um interesse pessoal dos entrevistados ou se são mencionados por representarem um elenco de autores associados à imagem da “boa leitura”, portanto seriam considerados “bons leitores” - reproduzindo imagens eleitas pelas classes culturalmente dominantes, em termos econômicos e políticos. Há que se discutir se esses leitores realmente participam e interagem com essas leituras, na medida em que demonstraram ter muitas dificuldades na compreensão dos textos, ao ressaltarem seus principais aspectos.
A falta de repertórios e de embasamento teórico prejudicam a plena interação entre texto e sujeitos-leitores, o que fica mais evidente quando coletamos respostas como “não consegui terminar de ler Dom Casmurro (Machado de Assis), pois achei muito cansativo”. Afirmações como essa devem ser discutidas, na medida em que esse tipo de dificuldade está se tornando cada vez mais evidente nas nossas escolas e até mesmo nos cursos de formação superior. Como podemos perceber, pelas próprias questões já ressaltadas anteriormente, as pessoas não têm um repertório formado, desconhecem a estrutura e marcas de um texto literário, o que não é uma constatação apenas desse grupo de entrevistados, mas sim de uma grande população de leitores, como se pode observar nos registros de imprensa diária, nas pesquisas sobre leituras apresentadas em congressos e outros fóruns de divulgação científica. Os leitores se distanciam dos textos literários, de acordo com aquilo que nós, em termos de formação acadêmica e teórica consideramos como tal, e procuram textos que lhes propiciem uma leitura de acordo com as suas expectativas pessoais, buscam o texto literário como resposta e não como provocação para novas questões. O texto literário, que desafia o saber do leitor e, portanto, provoca-o a conhecer mais, poderia levar o leitor a problematizar a existência até um ponto insuportável, assim como abalaria as concepções de mundo construídas e consolidadas. Dessa forma, tais leitores buscam um texto que ofereça uma leitura que eles classificam como “fácil”.
É importante entender as concepções do literário e questionar como essas visões são construídas numa sociedade que valoriza o culto à informação rápida sem a reflexão necessária à formação de comunidades de leitores e de comunidades interpretativas. Informações que chegam sem estimular maiores questionamentos e que se voltam, cada vez mais, para o que a mídia divulga como novidade/verdade, levando os leitores à produção de um certo tipo de esquecimento pelo excesso do “novo”, ao invés de construírem conhecimentos ligados a uma visão crítica de mundo.
Entender como se constrói o literário é algo não só importante para se pesquisar, como também algo que deve fazer parte de projetos escolares e acadêmicos. Desta forma, devemos nos perguntar se a procura por determinados autores e tipos de textos literários não é, atualmente, influenciada sobremaneira pela mídia e não mais pela escola.
É importante destacar que não pretendemos discriminar os textos não-literários, mas enfatizar as necessidades de se saber diferenciá-los dos textos literários, bem como a importância da interpretação, como gesto de inserção numa comunidade composta por cidadãos. É a partir de um conhecimento prévio das marcas dos textos literários que o sujeito-leitor será capaz de interpretar a função poética ou função estética num texto literário.
Fruir um texto literário é perceber essa recriação do conteúdo na expressão e não meramente compreender o conteúdo; é entender os significados dos elementos da expressão. No texto literário, o escritor não apenas procura dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras , de modo que, nele, importa não apenas o que se diz, mas o modo como se diz.(SAVIOLI e FIORIN, 2001 - p.351)
Sendo assim, verificamos que a falta de conhecimento prévio para a leitura de diferentes textos, não apenas textos literários, problematizam a própria leitura do texto-literário dificultando a leitura e o próprio desejo de ler textos, inclusive, os textos modernos por colocarem em xeque o conhecimento de seus leitores. Por conseguinte, percebemos que esses leitores buscam textos que tenham uma função utilitária (informar, convencer, explicar, documentar, entre outros). Buscam com menor interesse os textos literários, com exceção daqueles que são divulgados na mídia, e que muitas vezes não são considerados parte do cânone literário, como os livros de J.K.Rowlin (da série Harry Potter), Sidney Sheldon e Paulo Coelho. São poucos os autores que fazem parte do cânone literário, assim, podemos nos questionar se, autores consagrados no âmbito acadêmico, como Machado de Assis e José de Alencar, apontam escolhas que confirmam expectativas do que é considerado uma “boa leitura”, mesmo que os leitores não consigam interagir e interpretar os textos lidos.
Ao não priorizar ou conceber a função do literário a partir do estético, o leitor tende a procurar textos com linguagens de fácil acesso e compreensão, com fins utilitários e imediatistas. É importante destacar que entre os entrevistados foram poucos os que ressaltaram, em uma das respostas do questionário-entrevista, considerar a leitura como forma de lazer, a partir disso devemos também nos questionar se a leitura não está sendo vista apenas como uma função utilitária ou obrigatória durante a formação escolar.
Torna-se cada vez mais necessário criar situações em que se estimule a leitura de textos literários como, por exemplo, na sala de aula, pois este é um dos principais lugares onde as práticas podem ser construídas de acordo com o universo cultural e social dos sujeitos leitores em seus vários momentos de formação. Atentar para essas questões é um dos meios de aproximar o literário desse sujeito-leitor, pois na sala de aula tem-se a oportunidade de oferecer um embasamento teórico para que se possa construir as próprias interpretações de acordo com um conhecimento crítico de mundo também construído socialmente, o que é o grande desafio das práticas docentes na atualidade. O texto literário, a partir da plurisignificação, da metáfora e da metonímia, transfigura o real, para que nós sujeitos-leitores, construamos o nosso próprio conhecimento, o que é uma tarefa que demanda conhecimento e liberdade, orientação e construção de repertórios socialmente referendados. A importância de saber o que caracteriza um texto literário está na própria prática de leitura do sujeito-leitor. Este poderá refletir, interligar suas leituras a partir de uma compreensão maior não só dos próprios textos literários, como também dos textos não-literários transformando informação em reflexão e, por conseguinte, em conhecimento.
Referências bibliográficas
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
NUNES, José Horta. Formação do leitor brasileiro: imaginário da leitura
no Brasil - colonial. Campinas:: Unicamp, 1994.
PLATÃO, Francisco e FIORIN, José Luiz. Para entender o texto leitura e redação. São Paulo: Ática, 2001.
PERRENOUD, Philippe et al (org.) Formando professores profissionais. Quais estratégias? Quais competências? Trad. Fátima Murad e EuniceGruman. 2a ed. Porto Alegre: Artmet, 2001.