LÍNGUA E ESTILO
ACHADO DE POESIA NA CRÔNICA DRUMMONDIANA

Maria Veronica S. V. Aguilera (UERJ)

Pesquisar as características da linguagem na crônica drummondiana foi, sobretudo, um trabalho muito prazeroso que a abordagem estilística redesenhou e redimensionou, em partilha de vida e poesia. Espécie de viagem lítero-lingüística empreendida por cerca de 200 textos, em verso & prosa, que ressaltou os fenômenos de natureza fonético-fonológica, morfossintática e semântica, rumo à confluência de traços estilísticos onde destaco a repetição, a convergência e o fechamento rítmico.

O trabalho, desenvolvido como dissertação do Mestrado em Língua Portuguesa e posteriormente editado em livro (Carlos Drummond de Andrade: a poética do cotidiano, lançado pela Editora Expressão e Cultura, em outubro de 2002), acabou inserido nas comemorações do Centenário de Carlos Drummond de Andrade, em modesta homenagem ao cronista, faceta menos estudada do grande escritor. Nem por isso, entretanto, menos rica ou menos instigante, seja do ponto de vista de criação literária, resgate histórico e social, reflexão filosófica ou percepção jornalística.

A atividade de cronista, exercida de maneira particularmente regular e intensa, a partir dos meados dos anos 50, nos dois principais jornais do Rio, à época (Correio da Manhã e Jornal do Brasil), nos legou textos antológicos, onde os alicerces de linguagem carreiam som e sentido na medida harmônica da poesia , tal como a ela se referia Paul Valéry.

Nossa casa é antiga, embora não secular - explicava-me aquela senhora - e o senhor sabe como essas construções antigas têm pé-direito alto, um despropósito. Nossos dois andares enfrentam bem uns três dos edifícios vizinhos. Isso lhe dará idéia da altura de minhas buganvílias, pois as raízes delas se misturam com os alicerces, e temos praticamente dois telhados: o comum, e esse lençol rubro de flores, quando vem pintando a primavera. (ANDRADE, 1978: 17)

Recorte significativo do apuro do cronista com a palavra, tal como a obra poética consagrou, a estrutura melódica do texto delineia-se logo a partir do primeiro parágrafo: da isocronia que marca o paralelismo dos termos da oração inicial (Nossa casa é antiga, embora não secular) à cadência obtida com a repetição estilística da conjunção e - a estender-se pelos parágrafos seguintes: (…) e esse lençol rubro de flores, quando vem pintando a primavera.

Isocronia e similicadência marcam o ritmo do enunciado, que abriga, do ponto de vista da sintaxe gramatical, um termo complementar da oração anterior (e temos praticamente dois telhados: o comum, e esse lençol rubro de flores… ) e uma subordinada adverbial temporal. Eles fluem através da estrutura fônica, morfossintática e semântica; no primeiro segmento, veja-se a sonoridade da repetição das vogais surdas e do / s /, compondo uma expressão particularmente expressiva “e esse”, que acentua a proximidade e a afetividade entre quem nomeia e a coisa nomeada, recordando os belos versos de “O quarto em desordem” - e esse cavalo solto pela cama/ a passear o peito de quem ama.

É sensível a força semântica que advém do uso sequencial do /e/ em rubro e flores, na visualização de buganvílias vermelhas e vibrantes, vida a se esparramar pela casa. O segundo segmento não é menos cheio de sutilezas a ouvidos e alma atentos: o emprego insistente da nasalização das vogais, sem dúvida, contribui para o movimento de chegança da estação das flores que, mais do que chegar, “pinta”, forma coloquial do verbo que assume, no caso, a plena conotação do ato artístico de pintar (de vermelho, é claro) o florescente telhado, além do mais, dobrando a sonoridade do fonema inicial de primavera. (AGUILERA, 2002: 217)

O exemplo nos remete às lições de Othon Moacyr Garcia sobre paralelismo, processo sintático com implicações gramaticais, estilísticas e semânticas, fundamental na composição da estrutura melódica da frase, principalmente quanto ao paralelismo rítmico ou similicadência, que ocorre quando as frases ou seus segmentos, além da duração igual (ou seja, mais ou menos o mesmo número de sílabas - isocronia), apresentam ritmo ou cadência igual.

Isocronismo e similicadência são aspectos do paralelismo de grande valor estilístico, revelando-se este último como um dos atributos intrínsecos ao texto drummondiano, convergência natural de um sem - número de recursos de língua e, em especial, da repetição, um dos mais poderosos instrumentos da sua expressão poética.

Entre os poemas, “Caso do vestido” é um belo exemplo, com suas repetições encadeadas de fonemas, grupos vocálicos ou consonantais, palavras isoladas, expressões vocabulares e segmentos frasais e a seqüência dos versos de sete ou oito sílabas, qual engrenagem ao ritmo de antigas histórias encantatórias. Os recursos fônicos são habilmente explorados ao longo das estrofes, num processo claro de harmonia imitativa.

A repetição mais significativa é a dos vocativos nossa mãe/ e minhas filhas, no dramático diálogo que tece a história.

Vejamos suas oito primeiras estrofes:

Nossa mãe, o que é aquele

Vestido, naquele prego?

Minhas filhas é o vestido

de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido

Minhas filhas, mas o corpo

Ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,

está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido

tanta renda, esse segredo!

(…)(ANDRADE, 1971: 103)

O som sibilante da alveolar /s/, em posição medial ou final, acompanha, por aliteração (repetição insistente dos mesmos sons consonantais ), a tensão das perguntas das filhas e da revelação da mãe em torno da palavra - núcleo “vestido”: nossa - minhas - filhas - passou - vosso - depressa - mas - veste - está - sossegado - esse e segredo, além do /z/ de presa e dizei.

Bastante expressiva também é a repetição fônica na assonância (repetição vocálica em sílabas tônicas) de diversas vogais, seja na palavra final de um verso e inicial ou mediana do verso seguinte (Nossa mãe, o que é aquele/ vestido, naquele prego?), seja em finais alternados (Nossa mãe, dizei depressa/que vestido é esse vestido./ Minhas filhas, mas o corpo/ ficou frio e não o veste.)

A similicadência pode explicar muito do encanto "de ouvido" exercido pelas crônicas de Drummond, afora o seu conteúdo, humano, por excelência. Talvez seja mais difícil identificar os fenômenos que contribuem para o ritmo da prosa; perceber a sua cadência, entretanto, é questão também de sensibilidade de leitura, ou de "intuição atualizadora do leitor", nas palavras de Dâmaso Alonso. Para ele, há três modos de compreender a obra literária: o primeiro, o do leitor comum, que não procura analisar nem exteriorizar suas impressões; o segundo, o do crítico, cujas qualidades de leitor são mais desenvolvidas, transmite suas impressões e situa-se ao nível da arte, e o terceiro, o da tentativa de desvendar os mistérios da criação de uma obra e dos efeitos dessa obra sobre os leitores.

Nilce Sant’Anna Martins nos apresenta uma explicação técnica sobre a linha melódica de uma frase a partir das variações de altura do tom laríngeo que incidem sobre uma seqüência de sílabas, uma palavra ou seqüência de palavras. Mas é somente na frase, conforme ressalta, que a entoação tem o seu valor próprio (na palavra isolada, o tom se confunde com o acento de intensidade), “que pode ser de ordem intelectual, distinguindo os tipos de frase, ou afetivo, denotando estado emotivo do falante” (MARTINS, 1989: 174).

Uma frase pode ser constituída de um ou muitos segmentos melódicos, ou seja, unidades de entoação. Cada segmento melódico é uma porção mínima do discurso, com forma musical determinada e sua parte significativa dentro do sentido total da frase. É importante distinguir unidade melódica de grupo de intensidade, caracterizando-se este como uma palavra ou grupo de palavras com um só acento intensivo. “Dentro da unidade melódica, o tom passa de um grupo intensivo a outro como passa de uma sílaba a outra dentro da palavra. É uma curva indivisível num mesmo giro de voz.” (CUNHA, 1985: 175)

As unidades melódicas podem ser marcadas por pausas lógicas, respiratórias ou expressivas. Na escrita, normalmente usam-se os sinais de pontuação para separar segmentos melódicos, mas nem todos são separados graficamente. Cada segmento melódico termina por uma inflexão de voz, de altura variável, dividindo-se, muitas frases em duas partes: a prótase, com terminação em tom mais alto, e a apódose, em tom descendente.

Hélcio Martins, estudioso da rima e do ritmo em Drummond, acentua um fenômeno rímico de notável contribuição à apreensão da cadência da prosa drummondiana. Trata-se da técnica de utilização de apoio rítmico ao final dos poemas que consiste em encerrrar com dois versos rimantes um poema não rimado. Ora, a crônica também oferece exemplos de fechamentos de notável concentração rítmica.

Os recursos, para tanto, variam. Às vezes, pela repetição, na última frase do texto, de palavras ou expressões iniciais como em “A casadeira”: (primeira) Testemunhei ontem, na loja de Copacabana, um acontecimento banal e maravilhoso / (última) Eu preveni que o caso era banal e maravilhoso. Em outras, é a quebra do paralelismo semântico que confere surpresa e ritmo, como no parágrafo final da crônica “Gente”: Sonha muito e dorme pouco. De sua luta com o sono falarei na próxima. Idade do meu amigo: quatro anos e três caramelos. Ou ainda uma múltipla repetição de nomes aparentemente dissociados de sentido, que a metáfora envolve num só significado:

(...)Eles aderem à nossa substância, eis tudo. E cantam dentro de nós, absorvidos pela alma dos feriados, em que se misturavam heroísmo e farniente, lutas, flâmulas, espada, princípios, sol, passarinhos, banhos de riacho, frutas, caramelos...Alma dos feriados antigos, que eram fixos, poucos e belíssimos. (ANDRADE, 1978: 56)

Ou então, "como em “Debaixo da ponte”, vem com o ápice de uma narrativa dramática, mais do que nunca atual, envolvendo gente pobre e faminta de um lado e irresponsabilidade dos poderes dominantes de outro (público ou privado, não importa)" (AGUILERA, 2002: 222):

Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.

Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morrerram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte. (ANDRADE, 1979: 133)

Tal como nos poemas, encontram-se muitas formas de repetição estilística na crônica. “Agora pensei em Rosa”, por exemplo, conduz o texto, que intitula e sinaliza, para a presença absoluta de uma Rosa 23 vezes reafirmada.

Agora de manhã pensei em Rosa. Não é todos os dias que penso em Rosa. Isto não quer dizer que a esqueço. Apenas, há lembranças que se deixam guardar num compartimento menos freqüentado da memória, e é como se não existissem. Existem. E a um pretexto qualquer, ou mesmo sem pretexto, se fazem notar em sua permanência calada. (ANDRADE, 1989: 91)

Essa crônica exemplifica o que chamo de repetição oculta, e que Ângela Vaz Leão nos apresenta como "convergência estilística", em estudo introdutório à Cadeira de balanço, livro de crônicas de Drummond. Segundo a pesquisadora, o fenômeno, analisado em Proust por Yvette Louria, caracteriza-se pela existência de um elo entre os elementos convergentes e um núcleo (pivot) comum.

(…) Com oitenta e sete anos, bem que ela podia estar aqui, ou em outra cidade, recebendo um ramo de rosas, um presente, telegrama, cartão, visita, abraço.(…)

A convergência pode incidir sobre as mais diversas espécies de palavras e funções sintáticas. No exemplo, configura-se a convergência dos seis objetos diretos em relação ao núcleo, o verbo receber. Trata-se, portanto, de uma convergência de seis elementos, ou seja, dos complementos um ramo de rosas, um presente, telegrama, cartão, visita, abraço em relação à recebendo. Quando digo que há uma repetição oculta é porque a convergência só se realiza através da ligação efetuada por um elemento oculto que, no caso, seria o verbo recebendo.

No mesmo texto, pode-se observar uma convergência de orações:

(…) Rosa podia muito bem estar viva, conversando comigo, recebendo um abraço, me oferecendo um de seus doces especiais.

O pivô comum é a oração principal Rosa podia muito bem estar viva para a qual convergem estilisticamente as três subordinadas predicativas, coordenadas entre si.

A repetição oculta na convergência pode ser constatada em qualquer desses exemplos, bastando repetir o núcleo comum, assim bem que ela podia estar aqui recebendo um ramo de rosas, um presente, um telegrama (…) equivale a dizer bem que ela podia estar aqui recebendo um ramo de rosas, bem que ela podia estar aqui recebendo um presente, bem que ela podia estar aqui recebendo um telegrama (…)

Em outro recorte que comprova como a repetição e a convergência estilística compõem o todo harmonioso e rítmico do poemático, em verso ou prosa, leia-se o último parágrafo da crônica “O pagador e a flor”:

(…) E aqui revelo também o meu segredo mínimo: estas flores requintadas de Zygocactus ou Epiphyllum truncatus são maio para todo mundo, mas para este antigo mineiro são um maio diverso e privativo, ligado a eflúvios da serra, do núcleo familial, do ser infantil, do fundo do fundo de tudo. São flores, são pensamentos perdidos, são visões, alumbramentos?… (ANDRADE, 2002: 49)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUILERA, Maria Veronica Silva Vilariño. Carlos Drummond de Andrade: a poética do cotidiano. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A bolsa e a vida. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Auto-retrato e outras crônicas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1993.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Boca de luar. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, amendoeira. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia. Introdução de Antônio Houaiss. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.