O
dobrar
dos
signos
nas
Galáxias
de Haroldo de
Campos
Ana Lúcia M. de
Oliveira (UERJ)
o negríssimo enganchado a
sua
ninfeta
loira
saudável
discórdia
concors recolonização biológica
por
isto
esta
cidade
é babelbarroca
por
isto
esta
cidade
é uma opera
aperta
(Galáxias,
frag.13)
Dentre os
autores
brasileiros
contemporâneos
que se
dedicaram a uma
reflexão
acerca do
barroco
destaca-se,
certamente,
Haroldo de
Campos. No
âmbito da
crítica,
desde 1955,
em
um
artigo
para o
Diário
de
São
Paulo,
ele definiu a
obra de
arte
aberta
como
um neobarroco
ou
barroco
moderno (apud
Campos,
2000: 525).
Além disso,
dedicou
um
importante
estudo à
poesia de
Gregório de
Matos (Campos,
H. de: 1989), buscando resgatá-la do
seqüestro
efetuado
por Antônio
Cândido,
em
seu
livro
já
clássico,
Formação
da
literatura
brasileira.
Igualmente, no
âmbito da
criação
literária,
sua
obra tem
dialogado
bastante
com
diferentes
manifestações
do
estilo
seiscentista,
segundo
veremos.
Desde a
publicação dos
primeiros
fragmentos de
Galáxias,
em 1964,
vários
críticos vêm
apontando a
presença de
traços
barrocos na
poiesis haroldiana. Registre-se, a
esse
respeito, a
seguinte
observação de
Severo Sarduy:
As
Galáxias
concluem, de
certo
modo, a
trajetória na
poesia
concreta,
que se
iniciara
com a
fundação de
Noigrandes. O
barroco
frondoso,
selvático,
furioso, se deixou
decantar numa
geometria
legível,
despojada
até à
transparência do
projeto,
como as
fachadas
mineiras do Aleijadinho. (Sarduy,
1979: 125)
Andrés Sánchez Robayana (1979, p. 138)
identifica
igualmente
como
barroca a
estrutura
parassintética do
texto
em
questão,
bem
como o
uso
dominante da
ilusão do
tema e a
obliteração do
sentido. Na
mesma
direção,
Costa
Lima postula a
tese de
que
tal
obra opera
um
desvio da
escrita de
linhagem mallarmaica,
com a
escolha da “deriva
barroca no
magma
impuro do
cotidiano”. E acrescenta:
O
riso e a
voracidade rabelaisianas
criam
em
Galáxias
um
desvio
significativo. A
palavra fálica
[...] necessita da rugosidade da
terra. O
legado
barroco
não faz
por
menos. O
traço
ibérico
interage na
recepção de
Mallarmé e modifica
seu
perfil
ascético. (Costa
Lima,
1989: 342-43)
Cabe
ainda
destacar
que o
próprio Haroldo de
Campos
forneceu a
pista
para uma
leitura de
sua
obra na
clave de uma
reciclagem do
barroco:
[...]
um
texto
onde as
fronteiras
entre
poesia e
prosa
são abolidas e
que recupera
sincronicamente,
por
assim
dizer, a “pré-história”
barroca da
minha
poesia
concreta (em
certo
sentido, as
Galáxias
dialogam
com
Ciropédia
ou a
educação
do
príncipe,
[...] no
qual
trabalho [...]
com a
palavra-montagem joyceana, vinculada a
um
controle
minucioso do
ritmo
ou “pulsação”
material das
frases,
melhor
ainda dos “blocos”
sincopados de
frases no
marco da
página). Nesta
segunda
linha, a
expansão
semântica, a
exfoliação dos
vocábulos, a
“conglutinação fônica”
são os
dispositivos
ativados. (apud
Barbosa,
1979: 21)
Para
tentar
esclarecer o
que está
em
questão
quando se
emprega,
segundo
orientação do
próprio
autor, o
adjetivo
barroco
em
relação a
Galáxias
sem
ficar
apenas
em
um
mero
jogo de
aposição de
etiquetas,
partiremos de
um
pequeno
elemento
que
nos permitirá
entender o modus operandi
do
texto
examinado. Trata-se de uma
hipótese
funcional
que
visa
não a
definir uma
essência do
barroco, o
que
ele significa,
mas a
buscar,
com o
apoio da teorização de
Gilles Deleuze (1988)
acerca desse
estilo, uma
certa
especificidade
operatória.
Tomemos
dois
exemplos da
obra
em
foco:
O
mar
como
um
livro
rigoroso e
gratuito
como
esse
livro
onde
ele é
absoluto de
azul
esse
livro
que se
folha e
refolha
que se
dobra e desdobra nele
pele
sob
pele pli
selon pli (frag.12;
grifos
nossos)
Desse
espaço
sem
palavras de
que o
livro faz-se
como a
viagem faz-se
ranhura
entre
nada e esta
ranhura é a
fábula a
dobra
que se
desprega e se
prega de
sua
dobra
mas se
dobra e desdobra
como
um
duplo da
obra (frag.
31)
Os
trechos
acima
evidenciam
que o
texto galático
procede
por
um
duplo
movimento de
contração e de
expansão, de
idas e
vindas,
que configura
a
respiração, o
ritmo de
sua
linguagem.
Mais do
que
simples
recurso
retórico,
tal
procedimento de
vaivém, de
fazer e
desfazer, constitui
um
importante
estilema da
arte seiscentista,
que pode
ganhar uma
nova
compreensão à
luz das
considerações
de Deleuze (1988)
acerca do
pensamento de
Leibniz
como
filosofia
barroca.
Tendo
como
ponto de
partida a
relevante
obra de
Wölfflin,
Renascimento e
Barroco,
o referido filósofo
intenta
definir o
estilo
seiscentista
em
termos de
sua
função
operatória
primordial:
fazer
dobras. É
evidente
que estas
não
são uma
invenção da
arte do
século XVII:
há todas as
pregas
advindas do
Oriente, as
gregas,
romanas, góticas, clássicas (Wölfflin,
1985: 43).
Todavia, o
traço
distintivo do
Barroco é a
dobra (pli)
que vai ao
infinito,
curvada e recurvada, uma
sobre
outra,
desenrolando-se
em
dois
planos – a
matéria e a
alma –,
ambos
com
infinitos
desdobramentos. Chega-se,
assim, à
noção de
multiplicidade,
que
não é
apenas o
que possui
muitas
partes,
mas – a
partir da
própria
etimologia da
palavra,
oriunda do
termo
latino
plicare – o
que é
dobrado (plié/multiplicité)
de diversas
maneiras (Deleuze,
1988: 5-6).
A
dobra,
por
sua
vez, traz à
cena a
polarização
interior /
exterior,
tão
cara à
arquitetura do
período
em
questão,
com
sua
cisão
entre a
fachada e o
lado de
dentro,
entre a
autonomia do
interior e a
independência do
exterior (cf.
Rousset, 1976: 256).
Com
isso, as
dobras ganham
autonomia,
amplidão, e
não
apenas
por
simples
cuidado
decorativo,
mas
para
exprimir a
intensidade de
uma
força
espiritual
exercida
sobre a
matéria. Da
arquitetura
transita-se
curiosamente –
seguindo
um
longo
caminho
que
não caberia
retomar
aqui –
para a
filosofia e a
teologia,
não separadas
no
pensamento
leibniziano:
enquanto
Deus é
envolvimento,
tudo se
encontra
dobrado /
envolvido nele
mesmo;
enquanto
desenvolvimento,
ele
mesmo está
em
cada
coisa,
como a
verdade na
imagem.
Em outras
palavras:
O
Uno tem
um
poder de envolvimento e de
desenvolvimento,
ao
passo
que o
múltiplo é
inseparável
das
dobras
que
ele faz
quando é
envolvido, e dos desdobramentos,
quando é
desenvolvido.
Mas os
envolvimentos e
desenvolvimentos,
as
implicações e
explicações,
são
ainda
movimentos
particulares
que devem
ser incluídos
em uma
universal
Unidade
que os
“complica” a
todos e
complica
todos os
Unos. (Deleuze,
1988: 33)
O
uso do
vocábulo complica
remete
diretamente ao
termo
latino
técnico
complicatio,
empregado
por Nicolau de
Cusa (1401-1464)
em
referência a
Deus,
aquele
em
quem
tudo se
acha “complicado” e, ao
mesmo
tempo,
aquele
em
que
tudo se
“explica”,
por
encontrar-se
em
tudo (Ferrater
Mora,
1982: 533).
Assim,
enquanto a
explicatio é
um
desenvolvimento,
a implicatio é
um
envolvimento – e ambas se completam nesse
raciocínio.
Em
sentido
geral e
atendendo-se à
sua
etimologia, o
termo “explicação”
designa o
processo
mediante o
qual se des/envolve
o
que estava
envolvido, se faz
presente o
que estava
latente, o
que parecia
obscuro e
confuso aparece de
modo
claro e
detalhado.
Em
suma:
explicar –
implicar –
complicar,
movimentos
que seguem as
variações da
relação
entre o
Uno e o
múltiplo,
formam a
tríade
central do
pensamento de
Leibniz,
herdeiro
direto da
tradição
filosófica
medieval.
Porquanto
Deus – a
“complicação”
universal, no
sentido de
que
tudo se inclui
nele – se
expressa no
mundo,
este
passa a
ser a
expressão /
explicação do
Um
que é (Cf.
Deleuze, 1981: 103-5).
Assim,
tudo na
natureza se
plasma a
partir da coexistência de
dois
movimentos:
explicação e
implicação.
Sístole e
diástole
marcando o
sopro
divino no
mundo,
tais
movimentos
não
são
contrários,
mas
complementares,
bem ao
gosto da
lógica
barroca da
coincidentia opositorum:
tudo
que explica,
por
isso
mesmo implica;
o
que desenvolve
pressupõe o envolvimento;
só se desdobra
o
que se
encontrava previamente
dobrado.
Tal
desvio
pelos
meandros do
cruzamento da
filosofia
barroca
com a
medieval se revela de
grande
importância
para a
compreensão da
dobra
como
conceito
operador de
aproximação
entre a
arte seiscentista e o
texto de
Haroldo de
Campos.
Entre
esses
dois
pólos,
insinua-se a
presença da poiesis
de Mallarmé,
já inscrita
em
filigrana no
fragmento
citado de
Galáxias,
a
partir da
referência à
composição de
Pierre Boulez, “Pli selon pli”,
que dialoga
com a
obra do
poeta
francês. De
fato,
segundo
Deleuze (1988: 43), “a
dobra é,
sem
dúvida, a
noção
mais
importante de
Mallarmé,
não
apenas a
noção,
mas,
antes, a
operação, o
ato
operatório
que o
torna
um
grande
poeta
barroco”.
Uma
posição
idêntica à
que acabamos
de
referir é assumida
por
Jean-Pierre Richard, a
partir dos
fragmentos e
anotações esparsas
que
constituíam o
projeto do
grande
Livro –
“livro:
necessidade de
dobrar” (Scherer,
1957: 77) –, reputando a
dobra
como
um
tema
que apresenta
uma plurivalência
particularmente
fecunda na
obra de
Mallarmé:
A
figura
mallarmeana da
dobra,
por
exemplo,
permitirá
unir o
erótico ao
sensível,
depois ao
reflexivo, ao
metafísico, ao
literário: a
dobra sendo, ao
mesmo
tempo,
sexo,
folhagem,
espelho,
livro,
túmulo, todas
as
realidades
que
ela reúne
em
um
certo
sonho
muito
especial de
intimidade (Richard,
1961:.28)
Dentro da
constelação de
imagens
que se
relacionam a
esse
tema no
texto
mallarmeano, ressalta-se a
concha
marinha,
imortalizada no
famoso “Soneto
em ix” (Campos,
1974: 64) e
presente no
seguinte
trecho de
Galáxias:
Os
signos dobram
por
este
texto
que subsume os
contextos e os
produz
como
figuras da
escrita uma
polipalavra contendo
todo o
rumor do
mar uma
palavra-búzio
que Homero
soprou e
que se
deixa
transoprar
através do
sucessivo
escarcéu de
traduções
encadeadas (frag. 45)
O “aboli bibelot” de Mallarmé
encontra-se
mesmo
denominado explicitamente
em
outros
trechos: “pena
que
ela seja uma
ptyx” (frag. 30) e “a borboleta-ptix
escapa da
ventarola do
quimono” (frag.
46).
Aliás,
este
último é o
fragmento
em
que
mais se
evidencia o
processo
operatório da
dobra,
com uma
superposição
de
imagens
que se referem
direta
ou
indiretamente
a
esse
tema. Vejamos
outro
exemplo:
Esta mulher-livro
este
quimono-borboleta
que envelopa
de
vermelho
um
gesto de
escritura e
doura
suas
páginas dela a
mulher-livro
em papel-japão
cada
página
que se
compagina num fólio-casulo [...]
isto
tudo nasceu de
um
quimono
que drapeja
dobras
como
páginas (frag.
46)
No
tear do
texto, urde-se
uma
superfície
plissada,
em
que os
mesmos
motivos se
cobrem e se descobrem, à
maneira do
origami
japonês
ou
arte de
dobrar o
papel. Num
arabesco
irônico, a
escritura se
volta
sobre
si
mesma,
leque a
dobrar-se e desdobrar-se, desenvolvendo
suas
séries
permutantes e
suas
estruturas
circulares.
Metamorfoseados, os
mesmos
motivos
reemergem
em outras
passagens:
Apenas uma
dona
contra o
biombo de
papel dum
leque
imaginário
sussurrando
coisas
monogatari
estórias de
papel num
leque (frag.7)
Eu
apenas
lhes contei
uma
estória
tchuang-tse
asa pó-de-íris
irisa a
dobra da
página
que desdobra o
livro a
dobra (frag. 28)
Em
função do
exposto,
compreende-se
que o
efeito
vertiginoso
provocado
pelo
universo
galático –
comum ao
“dilatado
pacto
lúdico
que é o
barroco” (Ávila,
1972: 38) –
deriva da
multiplicação
reiterada dos
elementos
que se
superpõem, esfumaçando os
seus
contornos, num
jogo
incessante de
fazer e
desfazer. Tomemos
mais
alguns
exemplos do
texto
em
foco:
O
paraíso
não é
artificial
mas
tampouco
simétrico o
compasso das
coisas difere
discorda dispauta
isto
você pode
escrever neste
livro
seu de linde e
deslinde de
rumo e desrumo
de
prumo e
desprumo neste
livro
que
você alinha e
desalinha (frag.
17)
Caramujos
quentam
sob a
pedra
homens
sobre
requentam
sol de
holofote na
cara e ocupamdesocupam
pontos
entramsaem
portas
sentamdessentam
bancos (frag.
28)
Alquimista do
léxico,
Haroldo de
Campos rompe o
equilíbrio
estável do
signo, num
constante
deslocamento
dos
corpos
verbais – “planetas
desorbitados
que abandonam
suas
elipses
para inserir-se
em outras”,
segundo
Severo Sarduy
(1979, p. 121) –, criando
um
grande
número de
palavras
fundidas, nas
quais se
integram
dois
ou
mais
significados
independentes,
às
vezes
até
antitéticos.
Além dos
exemplos
citados
acima,
encontramos no
texto uma
proliferação de
calembours – “alviagudos” (frag. 42), “publiexposto” e “escribalbuciando” (frag.
45),
entre
outros –,
recurso
estilístico
tão
caro à
obra
barroca (cf.
Alonso, D: 1980, p. 150),
em
que duas
ou
mais raízes
diferentes se
combinam de
modo
que uma
única
palavra se
torne
um
nó de
significados,
cada
um deles
podendo correlacionar-se a
outros
pontos de
concentração
semântica,
abertos
ainda a
novas
constelações e
probabilidades
de
leitura.
Com
efeito,
um
exemplo
significativo desse
procedimento é a palavra-valise “caleidocamaleoscópico” (frag.: 13), na
qual se
complicam –
em
dobras
morfológicas,
ainda o
mesmo
ato
operatório... –
dois
elementos
básicos
para a
obra
aqui
examinada: o
caleidoscópio
e o
camaleão. O
primeiro diz
respeito à
multiplicidade de
facetas do
próprio
texto,
com
seus
fragmentos
justapostos,
não numerados,
permitindo uma combinatória
diferente de
acordo
com o
lance
singular
produzido
pela
leitura.
Como
cada
fragmento
em
si
mesmo
também
constitui
um
mosaico
que reagrupa
elementos
advindos de
diferentes
contextos,
reforça-se a
construção da
obra
em
galáxias:
estrutura
móvel,
em
expansão e
recriação
contínua.
E
mais:
um
texto
assim
em
rotação é
regido
pelo
princípio da
metamorfose, o
que remete ao
segundo
termo do
calembour. Camaleônica, na
verdade, é a
criação
barroca,
com
suas
perspectivas
cambiantes e
diferentes
recursos de
trompe l’oeil.
Acerca dessa
polissemia do
significante,
com
razão afirma o
renomado
jesuíta seiscentista
Baltasar
Gracián
que:
Uma
palavra é
como uma
hidra
vocal
porque,
além de
sua
significação
própria e
direta, se a
cortamos
ou a
invertemos, de
cada
sílaba renasce
uma
sutileza de
engenho e de
cada
inflexão
um
conceito. (Apud
Souiller,
1988:. 207)
Outro
ponto a
destacar é
que o
barroco,
em
seu
gosto
pelos
enigmas,
emblemas,
alegorias,
em
seus
empréstimos
estilísticos dos
textos
preexistentes e
em
sua
tendência à
fragmentação
do
discurso,
não cessou de
praticar o
método
inventivo do
palimpsesto.
Mais uma
vez,
esse
motivo
torna-se
recorrente na
obra de
Haroldo de
Campos,
como se
verifica
nos
seguintes
exemplos:
Um
corpo
em
linha d’água
se transparenta
quando o
papel encorpa e
deixa
ver esta
epiderme (frag.
46)
Tudo
isto nasceu de
um
quimono
que drapeja
dobras
como
páginas e a
mão
que o
manuseia e
que descerra
suas
folhas e
fileta de
ouro
cada
folha
por
isso posso
rasurá-lo
agora e
deixar no
branco vacante
este
risco
iminente de
outro
escrito de
outro
branco de
outro
resto
incesto palim
que é o
nome de uma
constelação
psesto. (frag. 46)
Christine Buci-Glucksman,
em
seu
estudo
acerca da
arte seiscentista, retoma
uma
alegoria da
memória
como uma
mulher de duas
cabeças,
vestida de
negro e
segurando uma
pena na
mão
direita e
um
livro na
mão
esquerda. E
observa: “Potência
da
pena (escrever)
e do
livro (ler),
a
memória tem
duas
faces.
Tal
como Janus,
ela
conserva e
esquece,
ela
torna
presente e
ausente,
ela reúne o
nada e o
tudo” (Buci-Glucksman,
1986, p. 195).
Assim, o
signo
barroco,
signo de
memória, será
habitado
por essa
ambigüidade
quanto à
reinscrição do
passado:
repetição
em
diferença.
Babel de
línguas, de
traços:
escrever
sobre
textos
já
escritos,
pintar
sobre e a
partir da
pintura,
passar
permanentemente
do
palimpsesto ao
“babelismo”,
ou a essa
escrita “babel
barroca” (frag.
13), articulando uma
topologia a
uma tropologia. Desse
modo,
tal
estética do
palimpsesto –
todos
esses
palimpsestos
de
palimpsestos
próprios à
infinitude do
signo
barroco –
constitui
outro
ponto de
articulação
entre o
barroco
histórico e
seus
simulacros,
suas
recriações
modernas.
Ponto de
encontro de
uma
hermenêutica
dos
signos e da
metáfora do
Livro, do
teatro
como
livro, o
topos do
palimpsesto
condiciona uma
nova
relação da
obra
com o
passado
histórico, uma
nova
concepção da
memória
como
rememoração e
interpretação.
Tudo
já se
encontra
escrito,
representado, nesse theatrum mundi, nesse
mundo
biblioteca
infinita – as
duas
grandes
alegorias
seiscentistas, reativadas
em uma
série de
textos de
épocas
posteriores,
dentre os
quais se
destaca o
seguinte
fragmento de
Borges:
El
universo (que
otros llaman la
Biblioteca) se
compone de
um
número
indefinido, y
tal
vez
infinito, de
galerías
hexagonales,
com
vastos pozos
de ventilación en el medio,
cercados
por barandas
bajísimas. (Borges,
1944: 465)
Facilmente se verifica
que uma
reflexão
acerca do
jogo
intertextual da
literatura informa a
perspectiva de
Haroldo de
Campos. De
fato,
nos
comentários à
sua
tradução de
James Joyce (Finnegans Wake), o
autor
refere-se ao “princípio
do
palimpsesto”,
em
que “um
significado,
um
conjunto de
imagens, é
superposto a
outro” (Campos,
H. de: 1962, p. 21), baseando-se na
obra de Edmund
Wilson, Axel’s castle.
Também ao
refletir
acerca da
poesia
concreta,
manifesta uma
preocupação
com a
memória
estética e
com a
recriação dos
traços do
passado
literário:
A
arte da
poesia,
embora
não tenha uma
vivência
função-da-História,
mas se apóie
sobre
um “continuum”
meta-histórico
que
contemporaniza Homero e Pound, Dante e Eliot, Góngora e Mallarmé, implica a
idéia de
progresso,
não no
sentido de
hierarquia de
valor,
mas no de
metamorfose vetoriada, de
transformação
qualitativa,
de culturmorfologia: “make it new”. (Campos,
1975: 26)
Nas
Galáxias,
Haroldo de
Campos pratica
com
freqüência a
citação, o
transplante, a
mixagem de
textos. Há uma
proliferação de
referências a
escritores,
obras,
fragmentos de
livros: “uma
rosa é uma
rosa
como uma
prosa é uma
prosa” (frag.
44), “a
turva
vulva
violeta do
oceano oinopa
ponton” (frag. 49).
Também é
recorrente
um
movimento de
auto-reflexão,
quando a
narrativa se
dobra
sobre
si
mesma e
começa a
especular os
seus
próprios
procedimentos intertextuais:
Agora
não estou
falando deste
livro
inacabado
mas de
signos
que designam
outros
signos (frag.
35)
O
postiço
empastado do
real
como uma
camada
sobre
outra
camada o
falso
acasalado ao
deveras
como uma
página velando
outra
página (frag.
6)
Como parece
evidente,
este
último
fragmento
tematiza a
própria
estética do
palimpsesto,
da
obra
múltipla,
que
alephicamente, na
esteira de
Borges, complica várias outras
obras.
Trata-se da
concepção
haroldiana da
escritura
como “operação
de
leitura”,
desenvolvida a
partir de Mallarmé:
“dobragem,
dobra,
dobro,
duplo,
duplicação,
dação
em
dois,
doação –
dados” (Campos,
1975: 120).
Galáxias,
em
sua
própria
síntese: “esse
martexto
por
quem os
signos dobram”
(frag. 45).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Afonso. O
lúdico
e as
projeções
do
mundo
barroco.
São Paulo:
Perspectiva,
1980.
BARBOSA, João Alexandre. “Um
cosmonauta do
significante:
navegar é
preciso”. In:
CAMPOS,
Haroldo de. Signantia quasi coelum.
São Paulo:
Perspectiva,
1979.
BORGES, Jorge Luis. “La
Biblioteca de
Babel”. In:
–––.
Obras
Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.
BUCI-GLUCKSMAN, Christine. La folie du voir; de
l’esthétique baroque. Paris: Galilée, 1986.
CAMPOS,
Haroldo de.
Teoria
da
poesia
concreta.
São Paulo:
Duas
Cidades, 1975.
––––––.
Galáxias.
São Paulo:
ExLibris, 1984.
––––––. O
seqüestro
do
barroco
na
Formação da
Literatura
Brasileira:
o
caso
Gregório de
Matos.
Salvador:
Casa de Jorge
Amado, 1989.
––––––. “Do epos ao epifânico (gênese
e
elaboração das
Galáxias)”.
In: –––.
Metalinguagem.
4ª ed. rev. ampl.
São Paulo:
Perspectiva,
1992.
––––––. “Barrocolúdio deleuzeano”. In:
ALLIEZ, E. (org.) Gilles Deleuze: uma
vida
filosófica.
São Paulo:
Editora 34,
2000.
–––––– &
CAMPOS,
Augusto de.
Panorama do
Finnegans Wake.
São Paulo:
Perspectiva,
1986.
–––––– et alii. Mallarmé.
São Paulo:
Perspectiva,
1974.
––––––.
Teoria
da
poesia
concreta.
São Paulo:
Duas
Cidades, 1975.
COSTA
LIMA, Luiz.
A
aguarrás
do
tempo.
Rio de
Janeiro:
Rocco, 1989.
DAMASO ALONSO. Góngora y El “Plifemo”. 3ª
v. Madrid: Gredos, 1980.
DELEUZE, Gilles. Differénce et répétition. Paris:
PUF, 1985.
––––––. Le pli: Leibniz et le baroque.
Paris: Minuit, 1988.
––––––. Spinoza: philosophie
pratique. Paris: Minuit, 1981.
FERRATER-MORA, José. Diccionario de
Filosofía. 4 v. Madrid: Alianza
Editorial,
1982.
OLIVEIRA,
Ana Lúcia M.
de.
Por
quem
os
signos
dobram: uma
abordagem
das
letras
jesuíticas.
Rio de
Janeiro:
EdUERJ, 2003.
RICHARD, Jean-Pierre. L’univers imaginaire de
Mallarmé. Paris, Minuit, 1961.
ROBAYANA, Andrés S. “A micrologia de
elusão”. In:
CAMPOS,
Haroldo de. Signantia
quase
coelum.
São Paulo:
Perspectiva,
1979.
ROUSSET, Jean. L`intérieru et l`extérieur: essais
sur la poésie et le théâtre au XVIIe siècle. Paris: José Corti, 1976.
SARDUY,
Severo. “Rumo
à concretude”. In: Haroldo de. Signantia quasi coelum.
São Paulo:
Perspectiva,
1979.
SCHERER, Jacques.
Le “Livre”
de Mallarmé. Paris: Gallimard, 1957.
SOUILLER, Didier.
La littérature baroque
em
Europe. Paris: PUF, 1988.
WOLFFLIN, Heinrich. Renaissance et baroque.
Brionne: Gérard Monfort, 1985.