O EXILADO ESTÁ SÓ POR TODA A PARTE
a elegia ovidiana

Eliana da Cunha Lopes (FGS)

Para enriquecermos nosso trabalho, que será centralizado no poeta sulmonense PÚBLIO OVÍDIO NASÃO, poeta do século de Augusto, iniciaremos com dois poemas de dois ilustres autores da Literatura Brasileira: Gonçalves Dias e Fagundes Varela. O primeiro, com o poema “Canção do Exílio”, o segundo, com “O Exilado”.

Gonçalves e Varela participaram da fase romântica da Literatura Brasileira. Gonçalves representa a primeira e Varela, a segunda fase de uma época conhecida como o “mal-do-século”.

Gonçalves Dias em seu poema “Canção do Exílio” lamenta a separação da terra natal. Recorda-se do canto do sabiá, que “aqui” (Coimbra) não gorjeia como “lá” (Brasil); das palmeiras e do céu que tem mais estrelas, das várzeas que têm mais flores..., das noites que a cismar sozinho reconhece que mais prazer encontra lá...

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar-sozinho, à noite

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

(v.v. 13-18)

Gonçalves Dias pede, suplica, roga a Deus que não permita que ele morra sem que volte para “lá”.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’ inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.”

(v.v. 19-24)

O “lá” no poema de Gonçalves é sua pátria, aquela onde viveu intensa e culturalmente. Esta pátria tornou-se um talismã precioso para Gonçalves Dias.

Varela redireciona seu poema “O Exilado” para explicitar a dor, o sofrimento, a melancolia ao partir para Pernambuco. Em seus versos plangentes, eivados de saudades deixa patente toda a angústia por estar exilado, só e abandonado, longe das manhãs de agosto, distante da lareira mas perto da campa.

Quando verei essas montanhas altas

Que o sol doirava nas manhãs de agosto?

Quando, junto à lareira, as folhas lívidas

Deslembrarei de meu sombrio drama?

Doida esperança! as estações sucedem

E sem um gozo vou descendo à campa.

O exilado está só por toda a parte!

(v.v.50-6)

Em contrapartida, admirava aquele que ao redor do fogão recebia o calor humano dos entes queridos.

Murmurava a chorar:- Feliz aquele

Que à luz amiga do fogão doméstico,

Rodeado dos seus, à noite senta-se.”

(v.v. 11-3)

Em seus versos, é recorrente a idéia de que sendo exilado está à margem do mundo.

O exilado está só por toda a parte!”

(v.v. 6, 14, 21, 28, 35, 42, 49, 56, 63, 70,)

Gonçalves Dias e Fagundes Varela utilizam em seus poemas uma linguagem onde o “eu” lírico se faz presente através de expressões de sentimentos dolentes, de lágrimas, dor e saudades, compondo o quadro de tristeza e infelicidade:

“Canção do Exílio”

“Cismar”, “sozinho”, “à noite”( v. 9-15) , “morra”( v.19)

“O Exilado”

“tristonho”(v. 1) “turbulentas”(v.1);

“sina escura” (v.3) “dor” (v.5) “murmurava a chorar” (v.11)

O sofrimento, causado pelo afastamento dos entes queridos, comove tanto o poeta Gonçalves Dias quanto Fagundes Varela. Mas este sofrimento revitaliza a inspiração a e criatividade poética destes ilustres poetas românticos das nossas letras.

Assim como Gonçalves Dias e Fagundes Varela há na Literatura Latina um poeta que, pertencente ao século de Augusto, deixou patenteado em duas de suas obras poéticas toda uma gama de sofrimento, de dor, de saudade da pátria vivida e amada, saudade dos entes queridos.Referimo-nos a PUBLIUS OVIDUS NASO (Públio Ovídio Nasão) poeta sulmonense que encerrou a galeria dos grandes poetas elegíacos da época de Augusto, a qual se estende pelo meio século que vai de 44 a.C, ano da morte de Júlio César, a 17 da era Cristã, ano da morte do próprio Ovídio.

Ovídio foi contemporâneo dos poetas Horácio, Tibulo e Propércio. Vislumbrou a imagem de Virgílio, que era da geração anterior.

Em suas obras: TRISTIA (Os Tristes) e EX PONTO EPISTULAE (Cartas escritas do Ponto Euxino) Ovídio registra, com traços indeléveis, o sofrimento passado por um homem-poeta em seu exílio. Nelas encontramos os mesmos temas que impulsionaram os poemas dos autores brasileiros anteriormente mencionados.

Em suas origens, os dísticos elegíacos eram composições estruturadas em estrofes compostas de um hexâmetro e um pentâmetro. Não possuíam unidade temática definida. Para os gregos, seus criadores, os versos elegíacos poderiam versar sobre assuntos religiosos, familiares, fúnebres dentre outros, chegando até a expressar sentimentos amorosos.

Nos TRISTIA e nas EX PONTO EPISTULAE, Ovídio afasta-se do tema amoroso e utiliza a elegia para construir sua obra no exílio, a sua temática do desterro; nela o subjetivismo doloroso compõe os pés métricos da oficina ovidiana.

Os seus versos compostos no exílio refletem toda a dramaticidade elegíaca enquanto expressão da saudade, da perda do espaço familiar, dos amigos e, sobretudo, da terra vivida e amada.

Nestas obras encontrar-se-á o conceito moderno de elegia. O caminho percorrido por seus versos elegíacos vai culminar na lágrima, na dor e na saudade. Saudade esta que poderá ser da URBS tão ardentemente amada e vivida quanto de seus entes queridos. Seu tom melancólico é associado à carência afetiva.

No ano 8 da era cristã, um édito imperial relegou o poeta Ovídio de Roma para os confins do império romano, para a vila de Tomos, atual Constantza, na costa ocidental do Ponto Euxino (mar hospitaleiro, em grego), o atual Mar Negro na Romênia. Tômis era um lugar horrível, detestável, tão inóspito que, para Ovídio serviriam as palavras de Fagundes Varela:

O exilado está só por toda a parte!.

Ovídio também deixa registrada no livro v, dos TRISTIA sua tristeza em viver só, abandonado num país, habitado pelos getas e sármatas, povos de costumes sanguinários que não conheciam o latim; o idioma por eles falado era uma mistura de grego e de um dialeto persa.Além disso, o aspecto físico desses homens é aterrorizantes, conforme se lê abaixo:

Vox fera, trux vultus, verissima Martis imago,

Non coma non ulla barba resecta manu;

Dextera non segnis fixo dare vulmera cultro,

Quem vinctum lateri barbarus omnis habet

(TRISTIUM, VII, V.vv.17-20).

Sua voz é dura, seu rosto é carrancudo, reprodução muito perfeita de Marte. Nem seu cabelo, nem sua barba são cortados por mão alguma. Sua mão direita não é lenta em desferir golpes com o punhal cravado, que todo bárbaro tem pendurado à cinta.

Permanecem obscuras as razões que impulsionaram o imperador Augusto a banir o poeta que, anteriormente, fora seu amigo e protegido.

Ao ser banido, Ovídio sentiu o peso da punição não só no âmbito da liberdade de criação artística mas também no da própria liberdade pessoal.

Não há certeza da verdadeira causa da condenação de Ovídio ao desterro. O próprio poeta não a esclarece, mas faz alusões vagas, atribuindo-a ora à publicação da ARS AMATORIA, ora a uma imprudência ou indiscrição, ora também, a um motivo que pretende silenciar.

Perdiderint cum me duo crimina, Carmen et error.

Alterius facti culpa silenda mihi:

(TRISTIA, I, II, vv.207-8)

Quando duas acusações me desgraçaram, a poesia e um erro, houve a culpa de outro fato que eu devo silenciar.

Causa meae cunctis nimium quoque nota ruinae,

Indicio non est testificanda meo.

(TRISTIA, X, IV, vv.99-100.).

O motivo de minha desgraça, também muito conhecido por todos, não deve ser explicado por meu esclarecimento.

Aut timor, aut error prius nobis, prius obfuit error:

(TRISTIA IV, IV, v.39.).

Ou o medo ou o erro, antes o erro, me prejudicou.

Para Ovídio, viver banido num lugar inóspito, constantemente invadido pelos bárbaros, era motivo suficiente para recordar-se da vida mundana de Roma, do ócio, dos prazeres da URBS, da vida farta e das glórias romanas. Era também difícil suportar as condições de vida primitivas e precárias a ele impostas em Tômis.

Resta - lhe, porém, o consolo de saber que seu livro de elegia chegará a Roma ,ainda que sozinho:

Parve, nec invideo, sine me, Liber, ibis in Urbem,

Hei mihi! quo domino non licet ire tuo.”“.

(TRISTIA, I, I, vv.1-2).

Sozinho irás, Livrinho que eu invejo, até a Urbe

Aonde, ai de mim, já não deixam ir teu amo.

Vade, Liber, verbisque meis loca grata saluta:

Contingam certe quo licet illa pede ““.

(Idem, vv.15-16).

Vai e saúda, Livro, os lugares que me são caros;

A eles chego com os pés que me consentem.

Como Ovídio, Fagundes Varela também, através de suas de seus versos, roga que sua mensagem de dor chegue à pátria amada.

Aves sem pátria que cortais os ares

Irmãs na sorte do infeliz romeiro,

Ah! Levai um suspiro a pátria amada,

Último alento de cansado peito.

O exilado esta só por toda a parte

(vv. 59-63)

Evidencia-se na complexidade dos versos ovidianos a situação do exilado, do poeta que está privado do convívio dos amigos e do viver ou do morrer em solo pátrio rodeado pelos familiares.

Neste momento, retornaremos aos versos de Gonçalves Dias e Fagundes Varela.

Não permita Deus que eu morra,

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá .

(vv.19, 23,24).

Mísero! ao leito de final descanso

Ninguém meu sono velará chorando.

O exilado está só por toda a parte!

(vv. 68-70)

Há, em toda obra ovidiana, escrita no exílio, a mesma linguagem que caracteriza a tristeza e a infelicidade demonstradas por Gonçalves Dias e Fagundes Varela, nos textos utilizados neste trabalho. A adjetivação utilizada por Ovídio revela o sentimento de dor e saudade da URBS.

Contribuíram, também, para uma difícil adequação ao exílio as fronteiras geográficas, culturais, lingüísticas e antropológicas.

Ao término da elegia I do livro I, v.v. 127 e 128 Ovídio reforça a idéia do desterro, da separação da URBS, do quanto viver longe de Roma lhe é penoso.

Longa via est; prospera; nobis habitabitur orbis

Ultimus, a terra terra remota mea:

A estrada é longa; apressas-te: a extrema parte do universo será habitada por mim, terra afastada de minha terra.

Os sentimentos, os desejos e as frustrações do poeta Ovídio nos é conhecido através das cartas enviadas do exílio aos amigos e parentes em Roma. Através dos pés métricos de suas obras compostas no exílio TRISTIA e EX PONTO EPISTULAE, a consciência da separação de Roma , dos amigos e, sobretudo, da esposa tão querida estão sempre presentes. O sofrimento, a dor, a angustia, o medo da morte e a esperança de rever Roma compõem o universo poético dessa época.

Urbis abest facies, absunt, mea cura, sodales,

Et, qua nulas nulla mihi carior, uxor abest.

(Tristia., IV, 6, v.v. 45-6)

Roma está ausente, estão ausentes os meus amigos -objetos de meus afetos; está ausente também minha esposa que me é mais querida do que qualquer outra mulher.

Ovídio, assim como Gonçalves Dias, roga e pede que lhe seja permitido retornar à terra natal. Destas súplicas, apenas os pés métricos, ou seja, a sua poesia chega a vislumbrar Roma.

Nos quoque, quisquis erit, ne sit miser ille precamur,

Placatos misero qui volet esse deos.

Quaeque volet, rata sint, ablataque principis ira

Sedibus in patriis det mihi posse mori

(Tristia, I, I, vv. 31-34)

E seja ele quem for, rogo que não seja desditoso.

Quem roga aos deuses que se apiadem de um coitado.

Tais rogos ouvidos, e acalmada a ira do príncipe,

Seja-me concedido eu ir morrer na pátria "

Tornar-se-á idéia fixa para Ovídio a sua condição de exilado e, deste conflito, surgirão versos de uma beleza plástica nunca vista antes na elegia romana , conforme se lê abaixo:

Vade , sed incultus, qualem decet exsulis esse;

(TRISTIA, I, I, v.3)

Vai, mas sem ornatos, como convém aos exilados.

Infelix habitum temporis hujus habe.

(idem, v.4).

Cuida, infeliz, de envergar o traje destes tempos.

De lacrimis facta sentiet esse meis.

(idem, v.14).

Saberá que são feitas pelas minhas lágrimas.

O sofrimento do homem afastado da família, longe da pátria, do desterrado ou do banido, problemas enfrentados por Gonçalves Dias, Fagundes Varela e Ovídio, serviram para enriquecer a veia poética destes autores.

Nosso trabalho não se encerrará neste esboço. Servirá de introdução a um projeto maior. O que pretendíamos era, em breves tópicos, mostrar a trajetória da elegia ovidiana. Mostrar que na condição de exilado, estando só por toda a parte, Públio Ovídio Naso soube, com sua tristeza, medos e angústias elevar o nome de Roma. Na condição de banido, abandonado e só, Ovídio amou sua Roma até o fim de seus dias em Tômis.

Com Ovídio, morreu a grande poesia latina do século de Augusto. E com Augusto, morreu a esperança de um poeta de regressar à terra que lhe era tão amada. Mesmo, no ponto mais distante de Roma, soube Ovídio, nos últimos dias de sua vida, amar a URBS e mantê-la no pedestal de uma grande nação que manteve durante séculos o poder da divulgação da Literatura Latina no mundo greco-romano.

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