O LAGER NAZISTA: A POESIA DA NÃO POESIA

Maria Franca Zuccarello (UFRJ e USP)

Primo Levi, como muitos deportados sobreviventes dos campos de concentração nazistas, escreve logo que volta do Lager e para faze-lo escolhe a poesia. É certamente significativo que as primeiras tentativas de narração daquele evento de dificílima comunicação, como é a odisséia de um deportado, tomem a forma essencial e lapidaria dos versos, ligados a um ‘impulso imediato e violento’, ao invés da forma mais discursiva do conto.

A história, com suas guerras, seus horrores, suas injustiças sociais, fez com que o jovem engenheiro químico Primo Levi, italiano de raça judia, se tornasse o escritor Primo Levi.

Escreveu durante cerca de 40 anos - primeiramente conciliando a profissão de químico com a de escritor, e depois sendo somente escritor -, repetindo o mesmo tema inicial, apresentando, porém sempre novas nuanças dos sentimentos do homem do séc. XX: da crueldade à bondade, da amizade à traição, da sujeição à insurreição, do aprisionamento à libertação. Partindo de uma situação que poderia ser considerada particular, chegou a uma situação universal e atemporal, assim como universal e atemporal é o homem com seus sentimentos, suas paixões, seus desejos e aspirações ...

Continuará, no decorrer de toda sua vida, a contar aquela atroz experiência que lhe foi imposta pelos acontecimentos históricos. E o fará em prosa e verso, escrevendo em forma de memorialismo, de autobiografia. Na prosa ele se fazia o relator distanciado dos fatos, enquanto na poesia, que geralmente antecipava a prosa, mostrava todo seu ressentimento pela ofensa infringida aos judeus pelos alemães.

Escolhemos falar da poesia de Primo Levi porque ele trata de forma única a perseguição ao homem judeu, o aprisionamento nos campos de concentração nazistas, a redução do homem ao zero, o holocausto. Tudo isso está em seu pequeno livro Se questo è un uomo, escrito depois do seu retorno de Auschwitz.

A raiz de sua poesia tem as mesmas ramificações e temáticas da prosa: ofensa, Lager, solidão, guerra eterna. Uma poesia áspera, escalena, como as personagens que são queridos a Levi, mas, certamente uma poesia verdadeira, humana e capaz de dizer algo, de deixar uma mensagem de horror e, ao mesmo tempo, de humana piedade.

Parece-nos que a escritura poética de Levi contenha, desde seus primeiros versos que antecedem seu primeiro livro Se questo è un uomo, o mesmo acume moral, a mesma força de memória, admoestação e piedade, que tornam tão substanciosa, tão justa, tão naturalmente memorável sua prosa, que se desenvolve a partir de um pressuposto poético e a este retorna, até sua poesia ser o motor da prosa e a prosa, por sua vez, ser o motor de sua reflexão poética.

O valor poético de Levi consiste no impulso de sua poesia, que é ‘heterônimo’, isto é, sua poesia nasce da ‘razão e da leitura moral da realidade’ que lhe permitem ‘entender seu próprio sofrimento e de viver sua própria indignação como patrimônio comum a todos os homens’.

A gênese dos versos e das páginas de testemunho é um elemento importante não somente para a compreensão da poesia de Levi mas também de toda sua obra.

Segundo o escritor italiano F. Fortini (2000: 137-140)

[...] as poesias de Levi não são esboços ou avisos de sua prosa, mas estão para toda sua obra em prosa como Shemà está para Se questo è un uomo: são o grito de abertura de quem se proíbe aquele final. São acordos do prelúdio e querem dizer: “Ouçam, estes acordos vêm da metade não racional, se apagam logo e logo começa o discurso implacável da prosa e da razão, mas lendo-os não esquecerão, nunca, aquela nota estrídula, inexplicável e racional como a existência, de onde se iniciou”.

Levi considerava-se um ‘poeta abusivo’, mas continuava a escrever poesias, até com intervalos de décadas, e num certo momento decidiu publicá-las, significando isto ter ele sentido a importância e a necessidade de fazê-lo. Apesar das datas que o autor colocava em cada poesia, aquela descontinuidade não tem nada de ocasional e nem de extemporâneo.

Levi dizia que seus versos não eram excelentes, mas que vez em quando, isto é, ‘ad ora incerta’ vinha-lhe a vontade de escrever poesias. A forma que ele escolhe para escreve-las é válida na medida em que esta serve para transmitir e reforçar a verdade de um fato, de um sentimento, de um pensamento.

Há, em toda a poesia de Levi, o retorno a temas e palavras de sua inteira produção, que perduraram em sua obra e a tornaram compacta: o persistir da ofensa, que nada pode atenuar; a memória do Lager como obscura ameaça; a idéia do tempo que é sempre medido ou de qualquer forma insuficiente; os perigos da solidão; a metáfora da navegação na vida e no mundo; o sentido de uma guerra que não acaba nunca; a imagem de um círculo, que evoca o vôo de predadores.

Ao lermos a poesia Shemà, epígrafe de Se questo è un uomo - cujos versos tão duros e amargos, antecipam, tudo o que o autor dirá em seu livro - surge imediatamente uma pergunta: qual seria a relação entre a prosa e a poesia de Levi? A esta pergunta responde o próprio Levi com sua declaração:

Em todas as civilizações, até naquelas ainda sem escrita, muitos, famosos ou não, sentem a necessidade de se expressar em versos, e a eles são subjugados: elaborando a matéria poética - endereçada a eles mesmos, ao seu próximo ou a toda humanidade - robusta ou exangue, eterna ou efêmera. A poesia nasceu, certamente, antes que a prosa. Quem nunca escreveu versos?

Sou humano. Também eu, a intervalos irregulares, “ad ora incerta”, tenho cedido a impulsos: pelo que me parece, (a poesia) é inscrita em nosso patrimônio genético. Em alguns momentos, a poesia pareceu-me mais idônea do que a prosa para transmitir uma idéia ou uma imagem. Não sei dizer porque, nem nunca me preocupei com isto: conheço pouco as teorias da poética, leio pouco a poesia alheia, não acredito na sacralização da arte, e não acredito mesmo que estes meus versos sejam excelentes. Posso somente asseverar ao eventual leitor que, em raros momentos (em média, não mais de uma vez ao ano), estímulos isolados assumiram naturaliter uma certa forma, que minha metade racional continua a considerar não natural (LEVI, 1988: 517)

A poesia, escrita, sem titulo, em 10 de janeiro de 1946, agora faz parte, também, da coletânea de poesias editada em 1984, Ad ora incerta, desta vez com o título atual, e se inspira na oração fundamental dos hebreus. É um tipo de ‘ato de fé’: fé que falta nesta poesia, na qual há, porém, a exortação, a mesma exortação que há no Prefácio de Se questo è un uomo, para que o leitor reflita sobre o mal que o homem fez ao homem.

Parte de um verso desta poesia é o título do próprio livro, que depois disso não será mais citado. É importante lembrarmos que Shemà, em hebraico quer dizer Ouça!: uma admoestação severa para quem lê, expressa com a primeira palavra de um versículo de um dos mais antigos e sacros livros da humanidade: a Bíblia. As palavras de Levi tomam o tom da profissão de fé que o povo hebraico recita desde sempre e fazem chamamento às palavras da Bíblia: “Meditais que isto aconteceu: vos comando estas palavras”. Não há, nelas, então, somente o problema da libertação pessoal: há também uma importante contribuição ao testemunho histórico e à necessidade que aqueles acontecimentos permaneçam esculpidos, tornando-se páginas de história não confutáveis.

Shemà Vós que viveis seguros Em vossas casas aquecidas Vós que encontrais, voltando para casa Comida quente e rostos amigos: Considerais se este é um homem Que trabalha na lama Que não conhece a paz Que luta por meio pão Que morre por um sim ou por um não. Considerais de esta é uma mulher Sem cabelos e sem nome Sem mais força para recordar Vazios os olhos e frias as entranhas Como uma rã no inverno Meditais, que isso aconteceu Comando-vos estas palavra. Esculpem-nas em seus corações Estando em casa, caminhando pela rua Deitando-vos levantando-vos Repitam-nas a seus filhos. Ou se desmanche a vossa casa A doenças vós empeça, Os vossos filhos virem o rosto a vós. 20 de janeiro 1946. (LEVI, 1988: 525)

A poesia Shemà contém toda a mensagem que Levi quis dar ao mundo; seu conteúdo é a dura vida do Lager, vida essa que desumanizava as pessoas. É, então, uma poesia marcada, densa, atravessada por um arrepio de infelicidade e horror - eco dos sofrimentos vividos no campo. Endereçada - assim como quase todas suas poesias - a um ‘voi’, leitor coletivo e amplo, que pode incluir todos os homens, se articula no suceder-se de paralelismos e anáforas, com a solenidade antiga do ritmo do canto dos salmos e das lamentações do profeta Jeremias,

Levi usa os imperativos ‘Considerais’ (repetido duas vezes), ‘Meditais’, ‘Esculpem-nas’, ‘Repitam-nas’ para que os homens reflitam sobre a ofensa feita ao homem judeu. Na terceira parte a maldição é vibrante, porém não rancorosa: é um severo monitório às pessoas para que meditem sobre o que havia sido o Lager, e, para que isso não se repita nunca mais, aquelas palavras devem ser repetidas para as gerações futuras.

E conclui a poesia com uma maldição para aqueles que não obedecerem. Mas obedecer a quem? A que? À obrigação da lembrança, isto é, às suas palavras (síntese do mal feito pelos alemães aos judeus), que devem ser lembradas pelos leitores, pela sociedade civilizada do séc. XX, por quem não fez nada para que aqueles homens, mulheres, crianças não sofressem tanta violência. Mas por que aquela violência toda? É exatamente este o objetivo do autor, ao contar os horrores do Lager, como diz nos versos de 5 a 14, versos esses que contêm a síntese da vida e da morte no Lager (na primeira parte fala dos homens, na segunda das mulheres):

[...] se este é um homem (que será o título do livro de seu testemunho, é um convite à reflexão sobre a ofensa feita, no Lager, pelo homem - os algozes alemães - para os homens - que ocasionou a desumanização dos judeus)/que trabalha na lama/que não conhece paz/que luta por meio pão (moeda no Lager)/que morre por um sim ou por um não (por não entenderem as ordens eram mortos imediatamente).

... se esta é uma mulher/sem cabelos (foram todos vendidos à Empresa Zink, como Levi diz em sua poesia A giudizio, (LEVI, 1988: 621) de 19 de julho de 1985)/e sem nomes (as mulheres também foram marcadas pelo número tatuado no braço) /sem mais força para lembrar/vazios os olhos (sem mais o brilho da felicidade, da esperança) e frias as entranhas (os órgãos das mulheres são frios por não poderem mais procriar).

Wstawac (Levantar-se) (LEVI, 1988: 526) é a segunda mais famosa poesia de Levi e está como epígrafe de seu segundo livro (segundo também em notoriedade), La tregua, em que ele conta sua volta à casa.

Levi, também nesta poesia, fala da vida e do duro trabalho no Lager: sirenes que tocam na alvorada para anunciarem que os prisioneiros devem se levantar, pois inicia-se um outro dia, um dia de trabalho pesado como todos os dias de uma humanidade sem vigor, que acorda para mais um dia de dor e sofrimento.

Sonhávamos nas noites ferozes Sonhos densos e violentos Sonhados com alma e corpo: Retornar, comer, contar Até quando tocava breve e leve O comando da alvorada: “Wstawac” E se despedaçava no peito o coração Agora reencontramos a casa Os nossos ventres são saciados Acabamos de contar. É tempo. Em breve voltaremos a ouvir O comando estrangeiro: “Wstawc”. 11 de janeiro de 1946.

Nesta poesia o autor fala do sonho dos prisioneiros nas noites mal dormidas do Lager: todas as noites sonhavam com a volta à casa, com comida, e sonhavam de estar contando sobre o Lager: todos sonhos impossíveis, porque dificilmente eles conseguiriam sair de lá e poder fazer o que faziam em sonho. Aqueles sonhos representavam a vontade da recuperação da liberdade, a necessidade de sobreviver e a urgência de contar, para que ninguém esquecesse o ocorrido.

Havia terminado o tempo do Lager, para o protagonista/narrador/ poeta Primo Levi, mas o seu sonho não terminava. Apesar do sonho anterior de todas as noites no Lager ter-se realizado (voltar; comer; contar), ainda agora, todas as noites, aquele sonho volta... para relembrar-lhe aquela ‘vida’, aquele sonho...

O Eu poético da poesia que segue representa o próprio Primo Levi e ele se vê submetido às circunstâncias da natureza e/ou culturais.

Levi fala do homem que traz em seu próprio corpo as marcas de muitas vidas passadas, até das pré-humanas. Inspira-se, concomitantemente, em Empedocle, na Bíblia e em Darwin, mas é claro que está falando da velhice milenar que é do homem - por ele representado - , assim como é do homem/Levi o conhecimento do chicote, do calor, do gelo, do desespero, da ‘vertigem muda do asno á moedura’.

Como já dissemos Primo Levi escreveu durante mais de 40 anos e, apesar de seus escritos manterem o mesmo tema central - a destruição do homem judeu -, sua escritura sofreu, no decorrer dos anos, a influência das correntes literárias que sempre acompanham a evolução do homem e seu pensamento.

Autobiografia “Um tempo eu já fui menino e menino, arbusto, / pássaro e mudo peixe que pula para fora do mar”. De um fragmento de Empedocle. Sou velho como o mundo, eu que vos falo. Na escuridão dos inícios Fervilhei pelas cavidades cegas do mar, Cego eu mesmo: mas já desejava a luz Quando ainda jazia na putrefação do fundo, Ingurgitei o sal por mil mínimas gargantas; fui peixe, pronto e víscido. Eludi emboscadas, Mostrei aos meus natos os oblíquos tramites do siri, Mais alto do que uma torre, fiz um ultraje aos céus, Ao impacto do meu passo tremiam as montanhas E o meu tamanho bruto obstruía os vales; As rochas de vosso tempo ainda trazem O incrível sigilo de minhas escamas. Cantei à lua o líquido canto do sapo, E minha fome paciente perfurou a madeira. Cervo impetuoso e tímido Corri bosques, hoje cinzas, feliz de minha força. Fui cigarra bêbeda, tarântula astuta e horrenda, E salamandra e escorpião e unicórnio e áspide. Sofri chicotadas E calor e gelo e a desesperação do jogo, A vertigem muda do asno na moedura. Fui menina, hesitante à dança; Geômetra, investiguei o segredo do círculo E os caminhos duvidosos das nuvens e dos ventos: Conheci o choro e o riso de muitas virgens. Por isso não zombem de mim, homens de Agrigento, Se este velho corpo é inciso de estranhas marcas. 11 de novembro de 1980. (LEVI, 1988: 558)

Escreveu ele para que o mundo soubesse dos horrores ocorridos com os judeus, isto é, do que o homem é capaz de fazer com outro homem, e principalmente para que aqueles horrores não se repetissem nunca mais.

O objetivo de testemunho de Primo Levi foi alcançado, porém não foi o suficiente para que os homens aprendessem a lição, pois “o mal está no homem”, e as guerras, com seus horrores, continuam a acontecer e sempre acontecerão... Haja vista os atos terroristas de 11 de setembro de 2001 e as conseqüências e implicações para com os povos árabes que passaram a ser vistos como inimigos da civilização ocidental. E por isso são aprisionados, julgados sumariamente - assim como o foram os judeus, isolados, condenados - sem direito a defesa... É a história que se repete... E o homem é sujeito e objeto da história: a história do homem fala de seu estar na civilização.

Primo Levi havia previsto muitos dos fatos atuais, e ... então preferiu se calar... Calou sua atormentada vida, sua voz... não sua escrita: esta permanece cada vez mais viva e atual, pois seus livros são cada vez mais lidos e estudados em todo o mundo, inclusive no Brasil: os homens cantam a paz, mas os grandes governantes decantam a guerra, e os horrores das guerras são cada vez mais aperfeiçoados e então cada vez mais desastrosos.

Conclusão

O que nos levou à escolha de dedicarmos um olhar atento para a obra poética de Primo Levi, foi o querer verificar a forma como ele conduz suas poesias permeadas da realidade dos acontecimentos históricos, que marcaram, mais do que nunca, este século que há tão pouco se findou.

E escolhemos a poesia porque seus versos, como já dissemos, contêm a antecipação do que será o seu livro, tanto que, quase todas (as poesias) lhes fazem de epígrafe. É na poesia que o ressentimento e a tristeza, que sente contra os alemães, são incondicionais.

A história tenta explicar o porquê daqueles acontecimentos, daquelas barbáries sem fim, que se perpetuam no tempo, porque o mal e o bem, o sonho e a realidade, o ressentimento e o perdão fazem parte do homem.

Os homens são tão castigados em seus sentimentos tão frágeis e tão inexplicáveis - seja pela mãe natureza seja pela sua própria natureza -, que não pretendemos explicar aqui os ‘porquês’ daqueles sentimentos que fazem os acontecimentos.

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