Uma Contribuição para o Estudo da Estilística em Euclides da Cunha

Milton Marques Júnior (UFPB)

 

Passados cem anos da publicação de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, achamos que é o momento para uma reflexão crítica sobre a construção estilística desta obra tão singular. Pensado inicialmente como uma reportagem sobre a guerra no sertão de Canudos no final do século XIX (1896-1897), o livro adquiriu vida própria, ultrapassando os limites do testemunho histórico, para tornar-se uma obra-prima na literatura brasileira. Com efeito, o ensaio geomorfológico, antropológico e histórico, que é o livro, contribui, por conta de sua estilística particularíssima, para a discussão sobre as fronteiras do literário.

Se Augusto Meyer (1986: 239-244) fala de antítese e Alfredo Bosi (2002: 209-220) se refere a antinomia e intensificação, em seus respectivos ensaios, como figuras centrais no discurso Os sertões, constatamos, após uma observação mais atenta, que é impossível desprezar a função das gradações, das personificações, da ironia e da dupla aliteração/assonância, que reputamos essenciais para exprimir a força do testemunho de Euclides da Cunha. Como estas figuras nunca se apresentam em estado puro, observamos também que o seu entrecruzamento torna difícil saber qual delas aciona as demais, no reforço das imagens. O resultado é um estilo retórico e grandiloqüente, dramatizando os fatos. Com certeza, o leitor que se aventurar a enfrentar a aparente aridez das páginas desta obra, principalmente a primeira parte – A Terra –, por nós considerada a mais literária, apesar de ser a menos lida, terá a grata surpresa de descobrir a beleza do estilo euclidiano, proporcionando-lhe um prazer inigualável.

Euclides da Cunha vai a Canudos como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, ficando na Bahia por um período de três meses, de agosto a outubro de 1897, e em Canudos menos de um mês – de 16 de setembro a 09 de outubro. Engenheiro militar reformado tenente, Euclides da Cunha estava ali também como adido ao Estado Maior do Ministério da Guerra, cujo ministro era o marechal Machado Bittencourt, que reorganiza a quarta expedição, arriscada de fracassar como as outras. Da reportagem de Euclides da Cunha nasce um grito de “denúncia de um crime coletivo” (MEYER, p. 240) contra uma guerra absurda, que se transformara em verdadeira carnificina. A Nota Preliminar do livro diz isto e várias outras passagens cheias de ironia, como a que apresentamos abaixo, são testemunhas disso:

Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.

Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...

Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades” (p. 458-9)[1].

Euclides da Cunha constrói sua obra com um cuidado estilístico notável. Seja para não cair em repetições inúteis e não aborrecer o leitor, seja para atrair a sua atenção, pois a ênfase à construção estilística faz surgir uma grandiloqüência própria à situação que se desenrola diante de seus olhos. Desse modo, ele persegue seu relato criando uma espécie de sumário dessa guerra presente e viva, numa construção, em que à maneira dos sumários literários, ele emprega a anáfora:

Definimo-la , em breve diário que não alongamos para evitar a mesmice dolorosa de episódios sucedendo-se sem variantes apreciáveis.

Os mesmos tiroteios improvisos, violentos, instantâneos, em horas incertas; os mesmos armistícios enganadores; a mesma apatia recortada de alarmas; a mesma calma estranha e esmagadora, intermitentemente rota de descargas... (p. 415)

Augusto Meyer assinala de início no estilo de Euclides da Cunha, uma dissociação entre a “objetividade científica” e “o ardor e frêmito da frase nervosa, a intumescência lírica do período” (p. 239). Alfredo Bosi chama de “mediações ideológica e literária” (BOSI, p. 212), sem a qual a fixação do homem e a narrativa da guerra não seriam possíveis, ajudando ao mesmo tempo a formar a “ideologia do inapelável”, a partir da construção da “antinomia e da intensificação” (214). Antítese para Augusto Meyer, antinomia e intensificação para Alfredo Bosi, o fato é que a força do testemunho de Euclides da Cunha, que, segundo Bosi, via em todas as coisassua face desmedida e extrema” (p. 214), compõe umgrandioso painel” (MEYER, p. 244) da terra, que se transforma em um ser animado, vivo, dinâmico. Nãocomo negar a existência da antítese e da hipérbole, mas a intensificação dos contrastes se verifica ainda mais com as presenças do paradoxo e do oxímoro, ajudando a ilustrar o absurdo da situação.

Os paradoxos se multiplicam ao longo da narrativa, às vezes contaminados pela hipérbole e pela ironia, como o demonstra a descrição da imagem dos santos em Canudos, sobretudo a chocante descrição das imagens da Virgem Maria, designadas por Euclides da Cunha como “Maria Santíssimas, feias como megeras...” (p. 159).

Três oxímoros serviriam a definir toda a situação, graças à maneira como estas figuras concentram o absurdo. Primeiro, a definição de Canudos como uma “Tróia de taipa dos jagunços” (p. 95), repetida pelo menos uma vez à página 157. Trata-se de uma ironia flagrante, a de atribuir a Canudos o poder de resistência da Tróia homérica. Canudos passa a ser uma Tróia destituída do heroísmo e da concepção de elevação da honra, presentes na Ilíada. Vila assediada por um exército de coalizão, em Canudos não existem belos palácios, nem riquezas, nem a proteção dos deuses olímpicos; nãotambém a piedade do vencedor, como a de Aquiles em relação a Príamo; nem a vitória do exército brasileiro proporcionará aos combatentes a kléos, perseguida pelo herói épico...

Em seguida, na descrição-dissertação do sertanejo, Euclides da Cunha recorre aos contrates para criar uma das mais belas imagens de oxímoro de sua obra, a do sertanejo “Hércules-Quasímodo [...] com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável” (p. 105). A força de um semideus, capaz de realizar trabalhos impossíveis aos humanos é associada à feiúra e deformidade. A priori, essa imagem atribui ao sertanejo um ilusório aspecto de fraqueza, mas ele se metamorfoseia, assim que algum fato reclama as suasenergias adormidas” (p. 106). O mito grego e Victor Hugo se confundem, pois, para formar a grandiloqüência de Os sertões.

Pensemos ainda nessa desconcertante imagem das três últimas pessoas que resistem ao cerco, “os seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro titãs famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil homens” (p. 384). Os titãs que nada puderam fazer contra Zeus, apesar de seu número e de suas forças, em uma narrativa heróica narrada por Hesíodo, servem de contraponto a Euclides da Cunha para desvelar a carnificina. O retrato de uma luta fabulosa pelo poder em Hesíodo torna-se o da miséria, da insanidade e do absurdo, em Euclides da Cunha.

Descrição, dissertação, linguagem científica, estilo grandiloqüente e, às vezes, poético compõem a primeira parte de Os sertões. A descrição, que se poderia pensar estática, revela-se dinâmica. Esta personificação da terra é uma das figuras importantes do discurso euclidiano:

O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior (p. 17).

Compondo o retrato de uma terra ou de um relevo personificado, Euclides nos apresenta uma natureza que aparece martirizada (p. 27), torturada, desnudada (p. 29), sobressaltada e extinta (29) pela força do clima e do cataclismo. É “o quadro tristonho de um horizonte monótono” (25), oferecido por um sertão hostil, perfeitamente traduzido pelas caatingas e expresso por uma linguagem que “se move no universo semântico do inelutável” (BOSI, p. 216):

Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lança; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: as árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante... (p. 44)

Os superlativos também ajudam a construir as hipérboles, na visão grandiosa do sertão personificado:

[...] a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida.

Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente – e todo este calor se perde no espaço de uma radiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombros... (p. 36-37).

Com efeito, para se representar o sertão dos grandes contrastes, a hipérbole se revela a figura ideal. De um lado, um calor e uma secura formidáveis; de outro lado, uma apoteose de verde à chegada das chuvas:

[...] As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano...

***

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não mais o deserto.

Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.

É uma mutação de apoteose (p. 51).

Mais adiante, dando continuidade a essa intensificação de contrastes, Euclides nos apresenta os sertões “barbaramente estéreis”, durante os longos verões, e “maravilhosamente exuberantes”, no inverno (p. 55). Uma “natureza [que] compraz-se em um jogo de antíteses” (p. 55); terra, enfim, que oscila “da extrema aridez à exuberância extrema...” (p. 56).

A aliteração e a assonância são um capítulo à parte. Figura singular que impulsiona o leitor para dentro do discurso, anulando a noção de tempo e de espaço. O leitor não pode passar imune e indiferente à leitura desse texto, que o convida a observar as múltiplas situações. É a brisa farfalhante, passando pelos ramos das árvores – “[...] ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves;” (p. 51) –; é o trovão e o ruído das chuvas torrenciais –“Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano...” (p. 51) –; é o barulho do vôo dos pássaros – “Animam-se os ares numa palpitação de asas, céleres, ruflando. – Sulcam-nos notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes...” (p. 53) –; é o plangente aboio do vaqueiro tocando o gado – “[...] enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta...” (53); é escutar o prazer do gado, comendo com sofreguidão as folhas do umbuzeiro – “O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas” (p. 52)...

Como conclusão, podemos dizer que há uma nítida intenção em Os sertões de chamar a atenção para o absurdo de uma situação que termina em chacina. Como refletir isto? Através de um estilo que seja contundente, capaz de comunicar pela sua agudeza. É que se casam a hipérbole e os variados contrastes, da antítese ao oxímoro, passando pelo paradoxo. Faz-se necessário também revelar uma natureza conhecida estereotipadamente. O sertão vivo e dinâmico, nãooutra maneira de ser representado, senão através da personificação, com seus ruídos aliterativos. De tudo, resulta um estilo elegante, retórico, grandiloqüente, às vezes poético, que, como diz Augusto Meyer, serve à dramatização e impregna o todo de uma significação agônica (p. 242). A agonia de um ambiente em eterna luta não retira, contudo, o prazer do leitor ao descobrir-se em meio a uma prosa envolvente. Mesmo se existem vozes discordantes que consideram Os Sertões uma obra de ficção com dicção purista, levada ao extremo pelo arcaísmo e pelo preciosismo (BOSI, 219).

 

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Alfredo. “Canudos não se Rendeu”. In: BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 209-220.

CUNHA, Euclides da. Os sertões (campanha de Canudos). Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.

GALVÃO, Walnice Nogueira. O império de Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

MEYER, Augusto. “Nota Sobre Euclides da Cunha”. In: MEYER, Augusto. Textos críticos; seleção e introdução de João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1986, p. 239-244.


 

[1] Citamos Euclides da Cunha pela edição de Walnice N. Galvão (CUNHA, 1998).