Uma
Contribuição
para
o
Estudo
da
Estilística
em
Euclides da
Cunha
Milton Marques
Júnior (UFPB)
Passados
cem
anos da publicação de Os
sertões (1902), de Euclides da
Cunha, achamos
que é o
momento
para uma
reflexão
crítica
sobre a
construção
estilística desta
obra
tão
singular. Pensado
inicialmente
como uma reportagem
sobre a
guerra no
sertão de
Canudos no
final do
século XIX (1896-1897), o
livro adquiriu
vida
própria, ultrapassando os
limites do
testemunho
histórico,
para tornar-se uma
obra-prima na
literatura
brasileira.
Com
efeito, o
ensaio
geomorfológico, antropológico e
histórico,
que é o
livro, contribui,
por
conta de
sua
estilística particularíssima,
para a
discussão
sobre as
fronteiras do
literário.
Euclides da
Cunha vai a
Canudos
como
correspondente do
jornal O
Estado de
São Paulo, ficando na Bahia
por
um
período de
três meses, de
agosto a
outubro de 1897, e
em
Canudos
menos de
um
mês – de 16 de
setembro a 09 de
outubro.
Engenheiro
militar reformado
tenente, Euclides da
Cunha estava
ali
também
como
adido ao
Estado
Maior do
Ministério da
Guerra,
cujo
ministro
era o
marechal
Machado Bittencourt,
que reorganiza a
quarta
expedição,
arriscada de
fracassar
como as outras. Da reportagem de Euclides da
Cunha nasce
um
grito de “denúncia de
um
crime
coletivo” (MEYER, p. 240)
contra uma
guerra
absurda,
que se transformara
em verdadeira
carnificina. A
Nota
Preliminar do
livro
já diz
isto e várias outras
passagens
cheias de
ironia,
como a
que apresentamos
abaixo,
são
testemunhas disso:
Os
soldados
impunham invariavelmente à
vítima
um
viva à
República,
que
era poucas
vezes
satisfeito.
Era o
prólogo
invariável de
uma
cena
cruel.
Agarravam-na
pelos
cabelos,
dobrando-lhe a
cabeça,
esgargalando-lhe o
pescoço; e,
francamente
exposta a
garganta,
degolavam-na.
Não
raro a
sofreguidão do
assassino
repulsava
esses
preparativos
lúgubres. O
processo
era,
então,
mais
expedito:
varavam-na,
prestes, a
facão.
Um
golpe
único,
entrando
pelo
baixo
ventre.
Um
destripamento
rápido...
Tínhamos
valentes
que ansiavam
por essas
cobardias
repugnantes,
tácita e
explicitamente sancionadas
pelos
chefes
militares.
Apesar de
três
séculos de
atraso os
sertanejos
não
lhes levavam a
palma no
estadear idênticas
barbaridades”
(p. 458-9).
Euclides da
Cunha constrói
sua
obra
com
um
cuidado estilístico
notável. Seja
para
não
cair
em
repetições inúteis e
não
aborrecer o
leitor, seja
para
atrair a
sua
atenção,
pois a
ênfase à
construção
estilística faz
surgir uma
grandiloqüência
própria à
situação
que se desenrola
diante de
seus
olhos. Desse
modo,
ele persegue
seu relato criando uma
espécie de
sumário dessa
guerra
presente e
viva, numa
construção,
em
que à
maneira dos
sumários
literários,
ele
emprega a anáfora:
Definimo-la
já,
em
breve
diário
que
não alongamos
para
evitar a
mesmice
dolorosa de
episódios
sucedendo-se
sem
variantes
apreciáveis.
Os
mesmos
tiroteios
improvisos,
violentos,
instantâneos,
em
horas
incertas; os
mesmos
armistícios
enganadores; a
mesma
apatia recortada de
alarmas; a
mesma
calma
estranha e
esmagadora,
intermitentemente
rota de
descargas...
(p. 415)
Três oxímoros serviriam a
definir
toda a
situação,
graças à
maneira
como estas
figuras concentram o
absurdo.
Primeiro, a
definição de
Canudos
como uma “Tróia de
taipa dos
jagunços” (p. 95), repetida
pelo
menos uma
vez à
página 157. Trata-se de uma
ironia
flagrante, a de
atribuir a
Canudos o
poder de
resistência da Tróia
homérica.
Canudos
passa a
ser uma Tróia destituída do
heroísmo e da
concepção de
elevação da
honra,
presentes na Ilíada.
Vila assediada
por
um
exército de
coalizão,
em
Canudos
não existem
belos
palácios,
nem
riquezas,
nem a
proteção dos
deuses
olímpicos;
não há
também a
piedade do vencedor,
como a de Aquiles
em
relação a Príamo;
nem a
vitória do
exército
brasileiro proporcionará aos
combatentes a kléos, perseguida
pelo
herói
épico...
Em
seguida, na descrição-dissertação do
sertanejo, Euclides da
Cunha recorre aos contrates
para
criar uma das
mais belas
imagens de oxímoro de
sua
obra, a do
sertanejo “Hércules-Quasímodo [...]
com uma
simplicidade a
um
tempo
ridícula e
adorável” (p. 105). A
força de
um
semideus,
capaz de
realizar
trabalhos
impossíveis aos
humanos é
associada à
feiúra e
deformidade. A priori, essa
imagem atribui ao
sertanejo
um
ilusório
aspecto de
fraqueza,
mas
ele se metamorfoseia,
assim
que
algum
fato reclama as
suas “energias
adormidas” (p. 106). O
mito
grego e Victor Hugo se confundem,
pois,
para
formar a
grandiloqüência de Os
sertões.
Pensemos
ainda nessa
desconcertante
imagem das
três últimas
pessoas
que resistem ao
cerco, “os
seus
últimos
defensores,
três
ou
quatro
anônimos,
três
ou
quatro
titãs
famintos e andrajosos, iriam
queimar os
últimos
cartuchos
em
cima de
seis
mil
homens” (p. 384). Os
titãs
que
nada puderam
fazer
contra Zeus,
apesar de
seu
número e de
suas
forças,
em uma
narrativa
heróica narrada
por Hesíodo, servem de
contraponto a Euclides da
Cunha
para
desvelar a
carnificina. O
retrato de uma
luta
fabulosa
pelo
poder
em Hesíodo torna-se o da
miséria, da insanidade e do
absurdo,
em Euclides da
Cunha.
BIBLIOGRAFIA