Uma leitura delicada...ou o cadáver fede
A propósito da leitura de
Mattos, Malta ou Matta?
romance-folhetim de Aluísio Azevedo
Ana Cristina de Rezende Chiara (UERJ)
O texto literário fede. Tem odor cadavérico, sem ser ainda um morto por completo. A morte ronda nele empestiando o ar. Baudelaire no século XIX celebra o ritual necrófilo do leitor ao reger litanias aos cadáveres em apodrecimento. Os leitores “ferozes pássaros que o odor da morte atiça” cravamos “qual verruma o bico afiado/ em cada poro ainda sangrento da carniça” (BAUDELAIRE, 1995:.202).
Desse ato de violação, erguemos as aras da nossa ternura encarniçada contra e a favor de uma possível verdade textual, uma utópica e impossível recuperação do sentido. O texto permanece aquém e além de nossas verdades profanadoras. Dessa pulsão inconfessável (sobrepor-se à morte), fazemos nossa profissão de coveiros afrontando com intimidade contaminadora a fascinação por nossa própria morte, calçando luvas de borracha e vestidos com o traje deslumbrantemente asséptico da teoria, tentamos pôr sob controle o texto moribundo, conjurando nele a morte - a nossa.
Não é de outra coisa que trata a leitura do pequeno livro de Aluízio Azevedo o romance-folhetim Mattos, Malta ou Matta?. Texto irônico, híbrido, composto de varias partes desconjuntadas: cartões, cartas, bilhetes, nele opera à maneira de um editor ou de um detetive uma instância narradora (o editor) que procura decifrar a indecidível oscilação do nome. De outro lado, um leitor contumaz do jornal, em busca da esposa que fugira com um tal João Alves da Malta, da Matta ou também Mattos, escreve cartas a esse editor / escritor jornalista. Esse artifício produz uma segunda performance de narrador: aquela da enunciação das cartas. Mas, sobretudo, o autor das cartas desdobra-se em leitor de pistas do paradeiro da mulher. O esforço de ler - o esforço de dissolver as proibições do texto (que a enganosa nitidez da linguagem educada encobre) - agita o marido traído. Ele quer transgredir, subverter, a ordem aparente das palavras. Dissolvê-la para encontrar num outro lugar a constelação de suas significações: “Cada informação das que lograra apanhar longe de me elucidar o espírito, mais tenebroso mo havia deixado.” (AZEVEDO, 1985: 63) . As cenas de leitura desenganada proliferam ao longo do romance. Cenas em que o corpo textual, como superfície morta por onde as emoções exsudam enganadoras, presta-se às mais variadas leituras que logo adiante são negadas, contraditas ou até mesmo postas de lado.
O outro leitor - o de fora do romance - mas sempre projeção de um marido traído - tem diante dos olhos o romance-folhetim Mattos, Malta ou Matta?, cujo subtítulo indica “romance ao correr da pena”, de autoria de Aluísio Azevedo, volume que inaugura a coleção Tempo Reencontrado, da editora Nova Fronteira, de 1985, que apresenta das mais variadas formas cenas de leitura.
A vacilação dos nomes, no título do livro, de início é desconcertante. Afinal, qual o nome correto? Ao mesmo tempo, a indecisão estimula o investimento de leitura como um desafio. O texto-enigma se decidirá por um dos nomes? O leitor intui que o texto demanda dele uma atitude atenta, percebe um caráter agônico de competição contra as possíveis escaramuças textuais e se dispõe a vencer o desafio do jogo. No entanto, antes que possa entregar-se à leitura do romance propriamente dito, antes que possa iniciar o jogo de esconde-esconde proposto por esse caráter detetivesco performatizado pelo suposto editor das cartas-engano, figuração evanescente de um narrador, o leitor “real” é surpreendido com algumas páginas de leituras prévias. São as leituras da crítica.
É intenção da coleção Tempo Reencontrado garantir o grau máximo de nitidez das palavras do texto-folhetim por meio de um suplemento de leituras especializadas, reduzindo ao mínimo o esforço do leitor. Desse modo, os organizadores da coleção pretendem neutralizar as diferenças (as assimetrias) entre o texto do livro e o público-leitor, incentivando o reencontro com um sentido decifrável para o romance, conforme promete a contracapa, em que se percebe o cuidado em não deixar nenhuma lacuna de incompreensão:
Cada uma dessas obras [as da coleção] traz ainda provocantes introduções críticas, notas explicativas funcionais e, quando necessário, até mesmo repertórios informativos suplementares que permitem ao público não especializado recuperar sem esforço todo o encanto dessas criações de uma outra época. (AZEVEDO, contracapa)
Poderá o leitor abrir mão de tão generosa oferta de clareza e exatidão? Ou preferirá perder-se nos desvios de leitura prenunciados no título cuja nitidez das camadas fônica e gráfica dos nomes encontra-se borrada? Desconfiará esse leitor de que o livro, como a história que nele se narra, confunde dois corpos (corpus de leituras): um, etiquetado, encerrado na urna lacrada e autenticada pela exumação da crítica, oferecido para o aprimoramento cultural dele, leitor, e outro, que permanece sujo da grossa camada de indeterminação da leitura aficionada? Dois corpos: um que o reconforta, outro, corpo proibido, inquietante que a crítica não logra devorar.
No capítulo de introdução intitulado “Tempo reencontrado”, Alexandre Eulálio preocupa-se em elucidar o gênero de narrativa do romance. Avisa de que se trata de um livro de “improviso ameno” e “inconseqüência brincalhona”. O ensaísta orienta a expectativa do leitor, de modo a que este relaxe e aproveite o momento de entretenimento e, por conseguinte, sugere uma hierarquia produtora de valores críticos. De um lado, a literatura respeitável e canônica de Aluízio de Azevedo, da qual erige-se uma figura de escritor respeitada pela crítica literária até mesmo quando o acusa de seguir o modelo francês de Émile Zola. De outro, essa atividade ligeira e com certo caráter desprezível no entender da mesma crítica. Uma literatura que não atinge a completude dos romances meditados. De onde decorre o sentido pejorativo para a expressão ‘ao correr da pena’ , do mesmo modo que para ‘improviso ameno’ ou para ‘inconseqüência brincalhona’.
O segundo capítulo, “Antes do romance”, escrito por Plínio Doyle, oferece ao leitor um mapeamento do período histórico em que foi escrito o livro. Por meio dessa reconstituição contextual mais ampla e do episódio policial que deu origem ao romance, confere à obra uma motivação extraliterária.:
Eis senão quando, no dia 18 de novembro, o Jornal do Commercio publicava a seguinte notícia: Desordeiros - Foram presos anteontem, por perturbarem o sossego público, os seguintes indivíduos, João Alves Malta e Antonio Andrade, desordeiros conhecidos, na Praça da Constituição. E no dia 24, publicavam quase todos os diários, em sua secção de obituários, a notícia do sepultamento , no Cemitério de São Francisco Xavier, no dia 20, vítima de uma congestão hepática, de João Alves Castro Mattos, de 30 anos presumíveis, sem declaração de residência e local de falecimento.
Notícias simples, corriqueiras, com nomes desconhecidos, que mereceriam o mais completo esquecimento, mas que foram, no entanto, o rastilho do noticiário que por mais de trinta dias encheu as colunas dos jornais, ocupou grandes escritores, deu que falar a toda a população da cidade e causou mesmo uma crise política, com a demissão do Chefe de Polícia da Corte. (AZEVEDO, 1985: 17)
O leitor que já havia sido notificado do caráter ligeiro do texto, toma ciência então do caráter referencial da narrativa. Segundo essas explicações, a arbitrariedade - o aparente enlouquecimento dos fatos narrados, com idas e voltas, confissões e desmentidos - não se deve a uma delirante arbitrariedade ficcional, mas teria sido motivada por uma seqüência de fatos policiais embora de difícil deslindamento. Plínio Doyle preocupa-se também em esclarecer os percalços da natureza epistolar da narrativa, ao tentar pôr ordem na seqüência das cartas:
... segue-se o texto da primeira carta, assinada apenas com três asteriscos. A partir da segunda e sempre sob o título geral de Mattos, Malta ou Matta?, ganham elas o subtítulo de ‘Novas revelações’, mas continuam subscritas da mesma forma, até à oitava, que na verdade é a nona, uma vez que a numeração da sétima, por inadvertência, foi repetida... (AZEVEDO. 1985, p. 28)
O terceiro estudo crítico vem assinado por Josué Montello e trata-se de “A autoria desse romance”. O ensaísta divide a obra de Aluísio Azevedo em dois grupos: suas obras literárias (O cortiço, Casa de pensão, O mulato) e os livros que escreveu ao correr da pena, para preencher espaços no jornal e desse modo garantir a sobrevivência. A postura crítica de Josué Montello, semelhante de certo modo a de Alexandre Eulálio, deixa entrever um certo desprezo pela motivação pecuniária desse tipo de literatura: O ensaísta e escritor afirma:
A obra romanesca de Aluízio Azevedo deve ser divida em dois grupos: de um lado, os romances que escreveu com a intenção da obra de arte; de outro lado, os romances que escreveu ao correr da pena, como folhetim de jornal.(... ) Os romances de jornal, compostos ao correr da pena, teriam valor relativo, com urdidura aliciante. Eram o ganha-pão do escritor, na fase em que, não tendo emprego certo, viveria dos precários rendimentos da colaboração de jornal. (AZEVEDO,1985: 32)
Outro aspecto levantado pelo crítico é o caráter coletivo da autoria da obra:
Este romance, publicado como folhetim de A Semana, folha que circulava aos sábados, no Rio de Janeiro, sob a direção de Valentim Magalhães, deveria ser obra coletiva, conforme se lê na carta de 14 de janeiro de 1884, do mesmo Valetim.. (AZEVEDO, 1985: 33).
Embora não consiga solucionar a dúvida sobre se Aluízio Azevedo teria assumido ou não sozinho a feitura do romance, apesar de supor que sim, e sem enveredar pela interessante discussão da autoria coletiva, esse aspecto pareceria ao crítico um dado a mais a contribuir para a ‘ligeireza da obra’.
Como se pode notar cada vez mais se acentua a distinção que a crítica especializada faz entre Literatura, comprometida com a seriedade e a elevação, e obras de mero divertimento. Mas não percebe que quando, por exemplo, Josué Montello utiliza a expressão “urdidura aliciante” aponta para uma demanda de leitura, um gosto, uma inclinação, uma vontade de o leitor se deixar capturar pelo ficcional, nas asas da mentira, em nada desprezível para aqueles que querem entender o fenômeno literário.
Segundo Wolfang Iser em seu livro O Fictício e o imaginário (ISER, 1996: 310), o texto literário não repete o mundo pre-existente como era o julgamento das teorias críticas do reflexo, para o critico da teoria do efeito estético o texto literário sem deixar de contemplar a capacidade cognitiva o faz de forma a que o conhecimento não tenha um caráter de confirmação do mundo dado como prévio:
Ora, os esquemas do texto literário não imitam geralmente um mundo previamente dado de objetos mas sim atitudes afetivas, lembranças, conhecimentos disposições de ideação e percepção, alcançando no entrelaçamento destes uma adequação daquilo que deve ser simbolizado através desse esquema (...) Mas , na literatura, essa imitação serve sempre à função assimilativa, que visa a simbolizar o ausente, o subtraído e o incaptável , em poucas palavras: estados de coisas incapazes de objetivação, de maneira que se tornem acessíveis.
Ou seja, a “urdidura aliciante” detectada pelo crítico poderia ser compreendida nesta perspectiva de um convite ao leitor a participar desse jogo de modo a preencher as lacunas oferecidas pelo que é considerado pela crítica como descosimento textual, fruto da pressa com que fora escrito o romance.
Adriano da Gama Cury é responsável por “Advertência sobre o estabelecimento do texto”, o quarto artigo de introdução ao romance-folhetim. O filólogo, em cuidadoso trabalho de edição, estabelece a ortografia e a redação correta do texto, busca suprir as lacunas da escritura. Ao fazê-lo, no entanto, interfere no processo de leitura e vejamos por quê:
Emendaram-se erros tipográficos indiscutíveis e uniformizou-se o emprego do travessão e das aspas indicadores de diálogo, monólogo e narração... Raramente se julgou necessário introduzir no texto uma palavra que falta no original, fato assinalado com o uso de colchetes... Em casos excepcionais apuseram-se breves notas de esclarecimento a expressões hoje de compreensão difícil, ou a construções menos ortodoxas do Autor.(AZEVEDO. 1985: 36)
Ora, é nítida a preocupação em tornar o texto claro, legível, em função do leitor, mesmo que para isso se tenha de corrigir as imperfeições e preencher lacunas deixadas pelo autor, pelo tempo ou pela própria impressão dos originais...
Se o leitor seguiu a seqüência ordenada dos textos, já passou pela leitura das apreciações críticas, pela leitura do romance propriamente dito, deve ainda dedicar-se ao último artigo crítico: “Depois do romance”, de Alexandre Eulálio, no qual o brilhante ensaísta aproxima-se mais detidamente do texto do folhetim. Nele, Alexandre Eulálio resume o enredo e explicita que: “o tema seria da incerteza, do duvidoso, do contraditório, do equívoco, o qual, de forma zombeteira, multiplicar-se-á em passagens onde têm lugar sucessivas trocas febris de papéis e de escritas.” (AZEVEDO, 1985: 165) . Alexandre Eulálio explica a virada do enredo, no epílogo, que muda a narrativa epistolar em narrativa corrida, com motivos de ordem extrínseca à fatura literária, ou seja, por motivos de ordem editorial:
O crescente mal-estar causado pela provocante sátira, que durou de janeiro a maio, terá levado o ficcionista em férias a abreviar esse exercício de gratuidade cômica. Isso acontecerá no nível da carpintaria do texto, cuja implosão é então providenciada pelo intrometer-se de personagens reais entre os bonecos de duas dimensões que até então os cordéis do narrador haviam movimentado. (AZEVEDO,1985: 163).
Com efeito a partir do capítulo X, intitulado “Romance ao correr da pena”, o autor das cartas ao editor dispensa a intermediação e assume de modo direto a narração em primeira pessoa sem o caráter mediador das cartas. Essa abrupta virada narrativa, sem os anteparos da crítica, poderia até passar despercebida ao leitor desatento que poderia só se dar conta do que se passou a páginas tantas, sendo obrigado a retroagir para detectar onde teria ocorrido. Isso implica num tipo de leitura que vai de encontro ao ‘correr da pena’ . Se o romance fora escrito às pressas, pelo menos , a leitura deverá sem correrias e obedecerá a marchas e contramarchas, segundo, os movimentos de indecisão do leitor.
Como vínhamos acompanhando nas leituras da crítica, tudo que leu nas mesmas orientou o leitor no sentido de restabelecer as referências extratextuais que deram origem ao texto, o caso-notícia, o contexto cultural, o conjunto da obra do autor, a série literária etc. Sustentando argumentos de autoridade, detentoras de um saber prévio e conscientes de que os leitores não o possuem, essas leituras querem anular as assimetrias entre leitores e texto, orientando-os para que não percam o roteiro de leitura estabelecido, esclarecendo dúvidas, adiantando respostas adequadas. O leitor, que passou por essas leituras críticas, pôde sentir o modo como essas leituras também funcionaram dentro do modelo estabelecido pelo gênero policial: a criação de um mundo ficcional onde, depois do levantamento das pistas, do estabelecimento das relações entre estas, tudo é, ao fim e ao cabo, explicado. As leituras críticas revelaram, dessa forma, seu caráter detetivesco. Perseguindo pistas e definindo um quadro de adaptações a esquemas prévios, prévios entendimentos do que virá depois. Tem-se uma espécie de movimento em ziguezague em que do estabelecimento retrospectivo de esquemas anteriores ao texto e pertencentes a outras esferas do conhecimento, projetam-se no texto esses esquemas.
Contudo, se o leitor “afogado em leituras críticas” quiser voltar ao texto, mantém-se em estado de carência; é o texto que se ausenta, não estando nunca inteiramente ao alcance dos olhos. As leituras críticas não conseguiram diminuir a estupefação do leitor. Os sentidos migram, diante do estado sedentário, sedento do leitor. E embora tenha se submetido à experiência das leituras especializadas que insistiam no caráter ligeiro (perecível?) do texto, não percebe a leitura do romance como da ordem das ações gratuitas. O que era borrado continuadamente pelo texto, embora a crítica insistisse em esclarecer com explicações de ordem extratextual, não perdeu seu caráter desconcertante. A partir dessa espécie de lacuna deixada pelo texto, pode-se pensar de outro modo o caráter conjectural de que fala Umberto Eco.
Creio que as pessoas gostam de livros policiais não porque eles contêm assassinatos, tampouco porque neles se celebra o triunfo da ordem final (intelectual, social, legal e moral) sobre a desordem da culpa. É que o romance policial representa uma história de conjetura, em estado puro. (ECO, 1985).
Algo nas indecisões do texto, nas confusões, marchas e contramarchas narrativas sugeria a imprecisão do mundo, o sentido obtuso da vida. Ao iniciar a leitura do livro, encontrara-se, como havíamos dito, diante de um enigma a decifrar, e ao tentar fazê-lo percebeu-se dentro de um labirinto. O que capturou o leitor na rede desse texto foi o caráter de evanescência da narrativa que tinha suas malhas rompidas, sempre que um acontecimento se ligava a outro, volatilizando o anterior. Ou seja, o texto apesar de seguir uma ordem aparentemente linear - a seqüência das cartas previa isso - operou o tempo todo com o desmonte do encadeamento narrativo. Se a narrativa se apresentou a princípio como um enredo policial - a tentativa de desvendar a verdadeira identidade de um cadáver -, transformou-se, a seus olhos, numa sucessão de enganos, pistas falsas, erros de leitura: num desenredo. Esse acúmulo de pistas falsas assumiu um caráter de radicalidade ficcional, um aspecto anti-ilusionista que age em dois sentidos: se, por um lado, o folhetim insinua que o mundo nem sempre corresponde à expectativa, à demanda de sentido; por outro, implode com a “mentira que se quer verdade” da literatura, quando denunciava insistentemente a “mentira” dos diversos textos que se imiscuíam no tecido narrativo:
Bilhetes, cartas, róis de objetos, listas de outros textos, palavras cifradas e cruzadas, nas quais a escrita, às vezes caligrafadas em bastardinho, às vezes rabiscadas em garatujas irrecuperáveis, pode ainda ter sido removida por dissolventes químicos ou se desfazer, debaixo dos olhos do protagonista, dentro de uma tina ensaboada. (AZEVEDO, 1985: 166.)
O modo conjetural em estado puro de que fala Umberto Eco ao tratar do gênero policial corresponde às demandas do texto literário ao leitor. Pois não se trata de conjeturar uma resposta para uma pergunta, de se encontrar por trás da história uma verdade oculta, um assassino, mas de conjeturar perguntas, de projetar os enigmas de variados modos.
Já o modo autoritário das leituras críticas com sua ordem nítida, com a legitimação do que dizem por fontes primárias ou argumentos de autoridade, com sua capacidade totalizadora, em tudo se contrapõe à experiência concretizada pelo leitor em suas vivências fragmentadas, na descontinuidade do destino, na sensação de recuos, falhas, absurdo e impenetrabilidade do vivido. O romance “bastardinho” no conjunto da obra de Aluísio Azevedo não o ilude. Ao contrário, deixa-o desnorteado, como a vida, às vezes, sem explicações o deixa. A aparente brincadeira do texto passa a ser, então, um jogo sério. Sentindo-se um pouco tenso, ele pode começar a suar, e esse suor ao pingar sobre o texto pode dissolver as proibições da crítica e devolver a esse leitor a matéria bruta, suja de vida, a desafiá-lo com sua opacidade.
Ele parece hesitar entre a reconfortante segurança crítica e o devotamento aficionado. Se recusar a segurança e, sem as redes de anteparo da crítica, voltar ao texto, tocando-o de leve, sem obsessivamente tentar dissecá-lo, poderá alcançar o que Barthes conceitua como delicadeza, e, portanto, efetuar uma leitura que toca levemente o texto possibilitando romper os limites impostos pela crítica entre racionalidade e afetividade:
A essa conduta, ao mesmo tempo muito afetiva e muito vigiada, muito amorosa e muito policiada, pode-se dar um nome: é a delicadeza; ela é como a forma sã (civilizada, artística) da compaixão. (Atê é a deusa da perdição, mas Platão fala da delicadeza de Atê: seu pé alado toca levemente.) (Barthes, 1977)
Morto querido, o texto literário guarda um segredo: nele a vida prolifera na aparente imobilidade e quietude sobretudo no conjunto de lembranças partidas que dele parecem manar: ele continua a nos ter, mas nunca o temos por inteiro. Como nossos fantasmas. No entanto, assim como no romance folhetim de Aluízio Azevedo, o leitor do jornal, escritor das cartas e marido traído, por uma inverossímil virada narrativa tira de campo o editor/ jornalista e assume a narrativa no papel de escritor sem mediação, o pobre leitor traído pode assumir por ousadia o papel de escritor e aprender a fazer as perguntas de modo apropriado, aproximando-se dos mistérios da morte encobertos mas sempre reencenados pela literatura. Conjeturar a própria morte por meio do “como se” da literatura provoca espanto e alegria inusitados como quando ainda perturbados acordamos de um sonho mau. Em meio à confusão e à dor da vida nada podemos contra os poderes da morte, a arte nos proporciona a dor, a comédia, a alegria, o amor, o êxtase, mas nada se compara à possibilidade de acordar de nossa própria morte...
Talvez seja essa a única, fugaz e precária ocasião de obter uma pequena vitória sobre a morte. A minha; a nossa, hipócrita leitor.
Bibliografia
AZEVEDO, Aluísio. Mattos, Malta ou Matta? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
BAUDELAIRE, Charles. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
ECO, Umberto. “Pós-escrito a O nome da rosa”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ISER, Wolfang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.