Condicionamento
lingüístico
e
manutenção
da sociedade
no
romance
Admirável
Mundo
Novo
Amaury Garcia
dos
Santos
Neto
O
presente
trabalho
se dedica à
análise
do
papel
da
linguagem
no
processo
de condicionamento utilizado no
romance
Admirável
Mundo
Novo,
de Aldous Huxley,
como
também
a
relação
da
linguagem
com
o
modo
de
acessar
a
realidade,
sua
utilização
na
educação
dos
personagens
e
sua
importância
para
a
manutenção
da
sociedade.
Acreditamos
ser
o condicionamento
lingüístico
um
dos
elementos
fundamentais
para
a
manutenção
da continuidade e da
estabilidade
desta
sociedade
utópica.
Para
que
possamos
nos
situar,
faz-se
primeiramente
necessário
o esclarecimento dos
termos
“utopia”
e “distopia”. Bernardete Pasold define “utopia”
como
um
texto
literário
que
apresenta
um
mundo,
no
ponto
de
vista
de
seu
autor,
perfeitamente
organizado e
que
proporciona
felicidade
a
seus
cidadãos,
existente num
lugar
e
tempo
imaginários
(Pasold, 1997: 18-19). Hugh
Holman e William Harmon, definem “utopia”
de
acordo
com
a
etimologia
da
palavra:
utopia
derivaria de
um
jogo
de
sentidos
entre
o
vocábulo
grego
“outopia”,
que
significa o “não-lugar” e “eutopia”
que
significa “lugar
bom”
(in Pasold, 1997: 16).
O
termo
“distopia”,
por
sua
vez,
é de
difícil
definição.
Booker considera a distopia:
(...)
um
termo
geral
que
compreenda
qualquer
visão
imaginativa
de uma
sociedade
no
intuito
de
mostrar,
de uma
forma
crítica,
características
negativas
ou
problemáticas
daquilo
que
se
vê
como
ideal
naquela
determinada
sociedade
(Booker, 1994: 22).
Hugh Holman
comenta
sobre
o
caráter
duplo
da distopia: (...) pode
ser
traduzido
como
‘outro
mundo
e
ainda
o
mesmo’
(...) (in
Pasold, 1997: 52). Booker
faz a
mesma
afirmação
sobre
o
caráter
duplo,
desta
vez
sobre
a “utopia”,
dizendo
que
o
que
é
um
sonho,
representando o
ideal
para
um
indivíduo,
pode
ser
um
pesadelo
para
outro,
demonstrando
que
a
aplicação
de
tais
termos
se
torna
relativa
(Booker, 1994). É
também
relevante
a
definição
etimológica
do
vocábulo,
que
diz
ser
a “distopia”
um
“lugar
ruim”
(Sisk, 1997).
Para
que
uma
sociedade
utópica possa
existir,
a
mesma
depende do
estabelecimento
de uma
ideologia
oficial,
que
tem
característica
unilateral,
e
que
determina o
modo
de
vida
de
seus
habitantes.
Esta
ideologia
é
unilateral
pois,
para
que
a
comunidade
proposta
possa
ser
perfeita,
ela
depende da
total
adesão
de
seus
habitantes.
Idéias
contrárias
são
necessariamente suprimidas,
em
nome
da
manutenção
da
sociedade.
Porém,
não
são
todos
os
habitantes
que
decidem
qual
será a
ideologia
oficial,
e
sim
um
grupo
seleto,
que
constituirá a
elite
administrativa.
Todos
os
outros
habitantes
terão
então
que
se
adaptar
à
ideologia
escolhida,
não
se levando
em
conta
suas
opiniões
pessoais,
que
poderiam
ser
contrárias à
proposta
oficial.
Se imaginarmos
que
nenhum
habitante
estará
contra
aquilo
que
for estabelecido
como
oficial,
então
a
utopia
será
um
lugar
perfeito.
Como
Pasold
mesmo
define:
O
problema
reside no
fato de
que o
conceito de
utopia
pressupõe
um
otimismo
subjacente
em
relação à
natureza
humana, uma
convicção de
que
seres
humanos
são
potencialmente
capazes de
voluntariamente escolherem
sacrificar
seus
interesses
pessoais
pelo
bem
comum.
(Pasold,
1997: 61)
Porém,
levando-se
em
conta
a
diversidade
humana,
tal
proposição
só
pode
ser
concebida
como
imaginária,
adquirindo o
status
de
não
realizável.
Para
que
tal
projeto
venha
existir,
as
diferenças
de
opiniões,
ou
possíveis
objeções
devem
ser
erradicadas. O
aparecimento
de
oposições
é impossibilitado, e
assim,
a
ideologia
oficial
tem
total
aceitação.
Neste
ponto,
a “utopia”
se
torna
“distopia”,
pois
anula a possibilidade de
posicionamentos
contrários
ao
que
é proposto
pelo
Estado.
Alain Frontier afirma: a
infelicidade
do
mundo
não
provém das
utopias,
mas
daqueles
que
são
suficientemente
loucos
para
confundi-las
com
programas
de
ação
política
(in Pasold,
1997: 18).
Tal
argumento
nos
faz
concluir
que
uma
sociedade
é utópica
enquanto
imaginária;
já
uma distopia é
tal
projeto
posto
em
prática.
Para
que
tal
plano
seja executado, faz-se
necessário
o
estabelecimento
de uma
ideologia
oficial,
a
ser
difundida
através
da
educação.
De
acordo
com
Louis Althusser, a
escola
representa o
mais
forte
e
eficiente
aparelho
ideológico de
Estado
(Althusser, 2001).
Através
da
educação,
controlada
pelo
estado,
e
feita
obrigatória
para
todos,
a
classe
dominante
torna-se
capaz
de
inculcar
seus
valores
nas
mentes
de
cidadãos
de outras
classes,
que
por
sua
vez
estarão recebendo
tal
ideologia,
e
assim,
se posicionando na
sociedade
de
acordo
com
o
que
lhes
é pregado (Idem).
Althusser afirma
que
o
papel
dos chamados AIE é de
reproduzir
as
relações
de
produção,
isto
é,
manter
a
sociedade
configurada da
mesma
maneira,
conferindo-a continuidade. Althusser diz:
Com
efeito,
são
estes
[AIE]
que
garantem,
em
grande
parte,
a
reprodução
mesma
das
relações
de
produção,
sob
o ‘escudo’
do
aparelho
repressivo
do
Estado.
É neles
que
se desenvolve o
papel
da
ideologia
dominante,
a da
classe
dominante,
que
detém o
poder
do
Estado.
(Idem:
74)
Sem
tal
aparelho (a
escola) a
ideologia da
classe
dominante
não seria
tão facilmente difundida, e
sua
aceitação pelas
classes dominadas seria
certamente dificultada, problematizando-se
assim a
manutenção
social.
Booker aponta a
teoria
de Althusser
como
uma das
principais
preocupações
de
escritores
distópicos, e afirma
que
tal
filosofia
mostra
de
forma
eficiente
o
modo
como
a
educação
é apresentada na
tradição
distópica (Booker, 1994).
Um
dos
pontos
mais
importantes
dentro
da
educação,
que
faz
possível
a
interpelação
ideológica, é a
linguagem.
Seu
caráter
aparentemente
neutro
faz
com
que
esta seja
um
dos
mais
eficientes
modos
de
sujeitar
o
indivíduo
a uma
determinada
ideologia.
A
linguagem
traz
em
si
um
discurso,
carregado
de uma
ideologia
(Orlandi, 2001), e ao
ser
utilizada,
não
está
apenas
servindo
como
um
meio
a se
passar
os
valores
sociais,
mas
como
um
fim,
isto
é, está
ela
própria
inculcando,
ou
até
mesmo
formando, a
ideologia
oficial
na
mente
daquele
que
é
exposto
a
ela.
David W. Sisk,
crítico
literário,
afirma
que o
gênero
distópico confere
grande
importância à
linguagem
como
possível
meio de
controle de
mentes
ou
resistência a
tal
controle (Sisk,
1997: 2). Sisk se questiona de
que
maneira a
linguagem
poderia
funcionar
como
fator de
manutenção da
sociedade, e
como a
mesma se
relaciona
com a
educação
em
romances
distópicos. O
autor afirma
ser a
hipótese
Sapir-Whorf
um dos
temas
centrais na
forma de se
considerar a
linguagem
nos
escritos do
gênero. A
primeira
parte dessa
teoria,
proposta
por Benjamin
Lee Whorf, defende a
idéia de
que a
linguagem dá
forma e
estrutura à
percepção
humana. Desta
maneira, se
torna
impossível
para
um
indivíduo
apreender a
realidade se
não
através da
linguagem. A
segunda,
esboçada
por Edward
Sapir, diz
que os
pensamentos
também
formulam a
linguagem:
novos
pensamentos
podem
formar
novos
modos de se
dizer
algo.
Não iremos
discutir a
validade de
tal
hipótese; é
suficiente
atestar
que a
mesma parece
ter sido abraçada
por
escritores
distópicos.
Com
base
nessa
teoria,
escritores
de distopias vieram a
mostrar
o
poder
de
manipulação
da
linguagem,
e explicitaram
como
o
controle
da
mesma
é de
extrema
importância
para
a
manutenção
social.
Em
Admirável
Mundo
Novo,
podemos
encontrar
exemplos
de
como
linguagem
e
educação
se unem
para
garantir
a continuidade do
Estado.
Huxley
cria
uma
sociedade
utópica, na
qual
seus
cidadãos
se encontram na
maior
parte
do
tempo
felizes
e
satisfeitos.
Esta
sociedade
tem
como
prioridade
a
estabilidade
e
manutenção
de
sua
estrutura,
objetivo
esse
representado no
lema:
Comunidade,
Identidade,
Estabilidade
(Huxley, 1932: 7).
Através
deste
mote,
pode-se
compreender
a
importância
dada
à
estabilidade
e à
comunidade.
Baker explica o
lema
de
forma
interessante:
O
lema
é arranjado de
tal
forma
que
o termo-chave, ‘Identidade’,
esteja
como
que
abraçado
pelo
ideal
coletivista do Estado-Mundo, ‘Comunidade’
e ‘Estabilidade’.
Em
tal
cultura,
a
identidade
individual
não
é permissível;
ainda
mais
numa
comunidade
que
é
fixa
e
imutável.
(Baker, 1990: 81).
O
fator
estabilidade
também
é mostrado
como
chave
através
do
calendário
desta
sociedade:
o
ano
em
que
a
estória
é
passada
é relatado
como
“ano
de
estabilidade”,
estabelecendo
um
trocadilho
com
a
expressão
“Ano
de
Nosso
Senhor”.
Tal
estabilidade
apóia-se
principalmente
em
quatro
fatores,
que
chamaremos
aqui
de condicionamento.
Booker demonstra a
importância
de
tal
técnica:
Boa
parte
da
capacidade
tecnológica
desta
sociedade
é direcionada a
um
programa
maciço
de
doutrinação
criado
para
fazer
com
que
os
membros
desta
mesma
sociedade
se sintam
satisfeitos
com
os papéis designados
para
os
mesmos.
Relembrando a
apoteose
de Pavlov na Rússia
soviética,
os
cidadãos
da distopia de Huxley
são
condicionados a
reagir
automaticamente
sem
que
pensem
ou
sintam. (Booker, 1994: 49)
Huxley inicia
sua
narrativa
com
um
passeio
do
Diretor
de
Incubação
e Condicionamento
e
seus
alunos
pelo
Centro
de
Incubação
e Condicionamento.
Durante
este
passeio
o D.I.C. explica a
seus
alunos,
e a
nós
leitores,
o
funcionamento
desta
sociedade.
Ele
mostra
como
bebês
são
geneticamente manufaturados
para
que
ocupem
um
determinado
papel
social.
Esta
sociedade
é dividida
em
diversas
castas
sendo os
bebês
criados
de
acordo
com
a
demanda
social.
Logo
no
primeiro
capítulo,
já
se pode
perceber
um
dos
principais
temas
do
livro:
a
falta
de
individualidade,
a impossibilidade de
existência
do
conceito
de
diferença.
Os
bebês,
como
já
dito
acima,
são
produzidos
pelo
Estado,
de
forma
similar
a uma
linha
de
montagem,
relembrando Henry Ford
e
sua
indústria
automobilística. A possibilidade
para
um
sentimento
de
individualidade
é removida,
já
que
os
habitantes
do Estado-Mundo
são
manufaturados, e recebem
sua
identidade
de
acordo
com
a
demanda
social.
Baker explica
como
a
individualidade
é perdida
através
de
tal
processo:
Muito
mais
importante,
no
entanto,
é o
simples
fato
que
processos
naturais
foram substituídos
pela
tecnologia
ao
grau
em
que
os
cidadãos
do Estado-Mundo
são
literalmente
concebidos
pela
ciência,
e
não
por
homens
e
mulheres
individuais.
Eles
nascem
dentro
de
um
sistema
impessoal
de sujeição
que
determina
seu
futuro,
suas
características
intelectuais
e psicológicas, e,
como
resultado,
seu
status
social
quando
ainda
são
embriões.
(Baker, 1990: 80)
Prosseguindo, o D.I.C.
então
mostra
a
seus
alunos,
e a
nós
leitores,
todo
o
funcionamento
do
processo
desde
a
engenharia
genética,
assim
como
o condicionamento
psicológico,
e o
lingüístico.
Vemos
então
o
entusiasmo
do D.I.C. ao
narrar
fatos
que
a
nós
leitores
chegam a
ser
grotescos,
como
a
sessão
de
choques
elétricos
nos
bebês.
Esta
parte
é de
absoluta
importância
para
nosso
trabalho,
pois
os
bebês
são
condicionados a
detestar
livros,
pois
estes
são
associados
à
agonia
e à
dor
causadas
pelos
choques.
Livros
contêm
linguagem,
e,
portanto,
discurso.
Levando-se
em
conta
a
hipótese
Sapir-Whorf, a
linguagem
tornar-se-ia uma
possível
ferramenta
de
subversão.
Ao
condicionar
os
cidadãos
contra
livros
o
Estado
está reconhecendo
tal
poder,
e demonstrando
seu
cuidado
para
com
a
linguagem.
O
governo
não
deseja
que
seus
cidadãos
sejam descondicionados
por
palavras.
Devemos
também
atentar
ao
fato
de
que,
além
desse condicionamento,
ainda
há a
proibição
de várias
obras,
fato
que
se faz
claro
na
parte
final
do
romance.
Nestes
capítulos,
Mustapha Mond,
Administrador
da Europa, tem uma
conversa
com
John, o
selvagem.
John é
um
homem
que
não
foi
criado
no Estado-Mundo,
pois
nasceu
dentro
de uma
reserva
selvagem,
e,
portanto,
não
foi
exposto
ao
mesmo
tipo
de
educação
dada
aos
habitantes
do
admirável
mundo
novo.
Sua
educação
consiste basicamente de
suas
experiências
adquiridas na
reserva
e de
sua
leitura
de Shakespeare.
Quando
esses
dois
personagens
discutem
literatura,
filosofia
e
religião,
podemos
compreender
a
visão
do Estado-Mundo
em
relação
à
leitura.
Mustapha afirma
que
livros
são
largamente
proibidos
pois
têm o
potencial
de
descondicionar
os
leitores,
tornando-se
ameaças
para
a
ordem
social.
Em
relação
a essa
perspectiva
Booker afirma:
Eles
[cidadãos
do Estado-Mundo]
são,
como
Mond diz, ‘bons
animais
domados’, opondo-se aos
efeitos
potencialmente
subversivos trazidos
por
Shakespeare
ou
outras
coisas
antigas produzidas
fora
da
ideologia
do
sistema
atual
(Booker,
1994: 173). Sisk,
por
sua
vez,
lembra
que:
A
sociedade
Huxleyana teme a
palavra
impressa
como
talvez
a
única
força
que
pode
permanentemente
subverter
anos
de condicionamento
meticuloso.
(Sisk,
1997: 20)
Sisk
então
argumenta
que
para
evitar
tal
problema,
o
Estado
faz
uso
do condicionamento
lingüístico,
durante
a
infância
de
seus
cidadãos,
tratamento
chamado de hipnopedia.
Durante
tal
processo,
crianças,
em
seu
período
de
sono,
escutam
frases
contendo a
ideologia
oficial.
Através
da
linguagem,
os
valores
que
formam a
filosofia
do
Estado
são
inculcados nas
mentes
das
crianças.
Huxley
nos
explica
em
seu
Brave New World Revisited
que
durante
o
sono,
ou
períodos
de
extremo
estresse
ou
cansaço,
é
comum
que
o
ser
humano
tenha o
seu
nível
de sugestionabilidade
elevado,
isto
é, o
indivíduo
oferece
menos
resistência
a
sugestões
externas.
Huxley
também
diz
que
o
reflexo
condicionado tem pouquíssima
chance
de
ser
descondicionado,
isto
é, o
que
é inculcado na
mente
do
indivíduo
torna-se
parte
integrante
do
mesmo
(Huxley, 1965). No
romance
em
questão,
tal
processo
de hipnopedia é
parte
integrante
da
educação
das
crianças,
sendo
obrigatório,
e provido
pelo
próprio
Estado,
o
que
nos
faz
recordar
o
comentário
de Althusser, mencionado
anteriormente,
a
respeito
do
fato
de a
escola
desempenhar
o
papel
do
mais
eficiente
AIE (Althusser, 2001).
Com
a sugestionabilidade
elevada,
o
potencial
de
aceitação
das
crianças
expostas às
frases
aumenta
de
maneira
considerável,
e a possibilidade de
que
as mesmas venham a
agir
da
maneira
como
são
induzidas se
torna
praticamente garantida. As
sugestões
são
todas
passadas
através
de
frases,
que
são
sucessivamente
repetidas,
com
o
propósito
de
que
adquiram o
status
de
verdades,
de
idéias
naturais,
nas
mentes
dos sujeitados. Estas
frases,
ou
rimas,
são
criadas
pelo
próprio
Estado,
e carregam
em
si
os
valores
necessários
para
a
manutenção
da
sociedade.
O D.I.C. se refere a
tal
processo
comparando as
rimas
a
gotas
de
cera:
(...)
como
gotas
de
lacre
derretido,
gotas
que
aderem e se incorporam
àquilo
sobre
que
[sic]
caem,
até
que,
finalmente,
a
rocha
não
seja
mais
que
uma
só
massa
escarlate.
–
Até
que,
finalmente,
o
espírito
da
criança
seja
coisas
sugeridas, e
que
a
soma
dessas
sugestões
seja o
espírito
da
criança.
Mas
também
o
adulto,
para
toda
a
vida.
O
espírito
que
julga, e
deseja,
e decide, constituído
por
essas
coisas
sugeridas.
Mas
todas essas
coisas
sugeridas
são
aquelas
que
nós
sugerimos,
nós!
(Huxley,
1932: 31).
Huxley afirma
em
Brave New World Revisited, e
através
do D.I.C. no
próprio
romance,
que
a
linguagem
é
elemento
crucial
para
que
o
processo
possa
ocorrer.
Esta
linguagem
tem o
poder
de
passar
os
fundamentos
morais
com
maior
eficácia
que
qualquer
outro
meio.
O D.I.C. explicita
tal
poder
ao
explicar
o
funcionamento
da
técnica
de hipnopedia:
Rosas
e
choques
elétricos,
o
cáqui
dos
Deltas
e uma
baforada
de
assa-fétida
– ligados indissoluvelmente
antes
que
a
criança
saiba
falar.
Mas
o condicionamento
sem
palavras
é
grosseiro
e
genérico;
é
incapaz
de
fazer
aprender
as
distinções
mais
sutis, de
inculcar
as
formas
de
comportamento
mais
complexas.
Para
isso
é
preciso
palavras,
mas
palavras
sem
explicação
racional.
Em
suma,
a hipnopedia (Huxley,
1932: 30).
No
segundo
capítulo
do
romance,
o D.I.C.
mostra
uma
sessão
de hipnopedia,
chamada
de “curso
elementar
de
Consciência
de
Classe”,
onde
um
grupo
de
crianças
Beta
recebem
sugestões
de
como
conceber
pessoas
de outras
classes
sociais.
Durante
as
sessões
de condicionamento, as
seguintes
frases
são
repetidas:
As
crianças
Alfas
vestem
roupas
cinzentas.
Elas
trabalham
muito
mais
do
que
nós
porque
são
formidavelmente
inteligentes.
Francamente,
estou contentíssimo de
ser
um
Beta,
porque
não
trabalho
tanto.
E,
além
disso,
nós
somos
muitos
[sic]
superiores
aos
Gamas
e aos
Deltas.
Os
Gamas
são
broncos.
Eles
se vestem de
verde
e as
crianças
Deltas
se vestem de
cáqui.
Oh,
não,
não
quero
brincar
com
crianças
Deltas.
E os
Ípsilons
são
ainda
piores.
São
demasiado
broncos
para
saberem
ler
e
escrever.
E
além
disso se vestem de
preto,
que
é uma
cor
horrível.
Como
sou
feliz
por
ser
um
Beta
(Huxley,
1932: 30).
Este
é
um
dos
primeiros
exemplos
de
rimas
de hipnopedia,
dentre
vários
que
aparecem ao
correr
do
texto,
e demonstra
bem
a
forma
simples
como
são
construídos
para
que
sejam facilmente aceitos e assimilados. Uma
característica
muito
importante
mostrada neste
exemplo
é a
ênfase
dada
à
satisfação
que
o
cidadão
deve
ter
por
ser
o
que
é,
satisfação
que
é condicionada
em
todos
os
habitantes,
diminuindo a possibilidade de
que
sintam a
necessidade
de
mudar,
o
que
poderia
acarretar
um
problema
para
a
manutenção
de
tal
sociedade.
Com
este
exemplo,
ironicamente chamado de
consciência
de
classe,
vemos
como
o
Estado
inculca o
sentimento
de
satisfação,
para
que
o
mesmo
gere a
adesão
de
todos
os interpelados à
filosofia.
Outros
exemplos
importantes
são:
(...)
cada
um
pertence
a
todos,
e
quando
o
indivíduo
sente a
comunidade
treme.
Através
do
primeiro
exemplo,
o
Estado
demonstra
seu
poder
de
controle
sobre
o
indivíduo,
já
que
ninguém
pertence
a
si
próprio,
e
sim
a
outros,
ou
seja,
nenhum
membro
tem
controle
sobre
sua
vida.
Quanto
a
segunda
frase,
podemos
ver
claramente
a
oposição
entre
o
indivíduo
e a
comunidade,
e, chegamos a
conclusão
que
o
indivíduo
não
deve
sentir.
Uma das
rimas
que
melhor
mostra
o
pouco
valor
dado
ao
indivíduo
é
dita
pelo
próprio
D.I.C.: o
corpo
social
subsiste
embora
as
células
componentes
mudem.
Com
tal
sugestão
vemos
claramente
a
importância
dada
à
comunidade
em
detrimento
do
indivíduo.
Se levarmos
em
consideração
a
hipótese
Sapir-Whorf,
assim
como
todo
o
processo
de hipnopedia, e o
caráter
discursivo da
linguagem,
chegamos a
conclusão
de
que
os
cidadãos
do Estado-Mundo se vêem
apenas
como
componentes
de
um
corpo
maior,
corpo
este
que
deve
sobreviver.
Desta
forma
acontece o condicionamento
lingüístico,
através
de
palavras
que
formam o
caráter
e os
costumes
de
toda
uma
comunidade.
É interessante
analisarmos
também
a
reação
dos
cidadãos
a
experiências
as
quais
não
foram condicionados
para
experimentar.
Estas
experiências
não
podem
ser
expressas,
pois
os
cidadãos
não
possuem a
linguagem
para
tal.
Quando
isto
acontece, os
personagens
que
se encontram nestas
situações
logo
recorrem às
rimas
de hipnopedia, mostrando,
assim,
a
matéria
da
qual
suas
consciências
são
feitas,
ecoando a afirmação do D.I.C.,
já
citada
anteriormente.
Podemos
ver
isto
no
seguinte
diálogo
entre
Marx e Lenina,
dois
dos
personagens
principais
do
romance:
Ele
começou a dizer-lhe uma
porção
de
absurdos
incompreensíveis
e perigosos. Lenina fez o
que
pôde
para
tapar
mentalmente
os
ouvidos,
mas
de
vez
em
quando
um
fragmento
insistia
em
se
tornar
perceptível. ‘...
para
experimentar
o
efeito
produzido
pela
repressão
dos
meus
impulsos’,
ouviu-o
dizer.
Essas
palavras
pareceram
despertar
algo
em
seu
espírito.
–
Nunca
deixe
para
amanhã
o
prazer
que
puder
gozar
hoje
– disse
ela
gravemente.
– Duzentas
repetições,
duas
vezes
por
semana,
dos quatorze aos dezesseis
anos
e
meio
– foi o
único
comentário
dele. As
palavras
loucas e perversas continuaram. –Quero
saber
o
que
é a
paixão
–
ela
o ouviu
dizer.
–Quero
sentir
alguma
coisa
com
intensidade.
–
Quando
o
indivíduo
sente, a
comunidade
treme – declarou Lenina. (Huxley, 1932: 89).
Quando
forçados
a
encarar
situações
não-ortodoxas, os
personagens
fazem
uso
dessas
rimas,
que
são
a
soma
de
suas
“personalidades”,
personalidades
estas produzidas
pelo
Estado.
É interessante
notar
a
forma
como
Lenina responde aos
argumentos
de Marx:
não
somente
são
essas
respostas
uma
repetição
das
rimas
previamente inculcadas
em
sua
mente,
mas
as mesmas
são
utilizadas
imediatamente
após
Lenina
ser
exposta
a
certos
tipos
de
palavras
num
contexto
não
reconhecido; estas
palavras
funcionariam
como
estímulos,
e,
por
terem sido
seus
reflexos
condicionados
também
através
da
linguagem,
Lenina
simplesmente
repete as
rimas.
Nestes
poucos
exemplos
podemos
ver
como
a
ideologia
oficial
se faz
presente
através
da
linguagem.
O condicionamento
lingüístico
é
tão
forte,
que
os
habitantes
do Estado-Mundo se tornam
realmente
incapazes
de
conceber
pensamentos
que
possuam uma
direção
subversiva.
Como
Matter propõe:
Os
administradores
mundiais parecem
concordar
com
a
teoria
de relatividade
lingüística
proposta
por
Benjamin Lee Whorf,
que
sugere
que
pessoas
que
não
tem
palavras
para
expressar
sentimentos
anti-sociais
não
conseguem
pensar
de
forma
anti-social
(Matter.
Apud
Sisk, 1997: 27-28).
A
manutenção
da
ordem,
e a continuidade desta
sociedade
são
então
garantidas
através
da
linguagem.
O
mais
interessante é
que
os
personagens
acreditam serem
suas
as
palavras
que
utilizam,
incapazes
de
ver
que
estão sendo
simplesmente
escravizados
através
da
linguagem.
Assim,
o
controle
se dá de
forma
eficiente
e
total.
Como
Sisk comenta:
Admirável
Mundo
Novo
não
mostra
um
governo
forçando uma
linguagem
que
restrinja o
pensamento
em
seus
cidadãos.
Ao
contrário,
Huxley
nos
mostra
uma
sociedade
que
produz
sua
população
de
sua
concepção
em
diante
e
então
faz
com
que
todos
os
desejos,
que
foram previamente condicionados, sejam realizados. Os
cidadãos
do
Estado
do
Admirável
Mundo
Novo
não
se consideram reprimidos.
Eles
não
desejam
coisas
que
o
Estado
baniu. Ao
contrário,
algumas
palavras
para
conceitos
fora
de
moda
ainda
existem,
mas
são
rebaixadas (...). Se considerarmos a
maioria
dos
cidadãos,
a
felicidade
total
e a
harmonia
social
foram estabelecidas
sem
nenhum
custo.
(Sisk,
1997: 22)
Podemos
ver
então,
como
a
linguagem,
através
da
educação,
inculca os
valores
sociais
nas
mentes
dos
personagens
desta distopia, mostrando
como
suas
“naturezas”
na
verdade
são
apenas
construtos
sociais.
Huxley
nos
oferece
algo
oposto
a
visão
romântica da
linguagem,
que
a compreende
como
um
instrumento
libertário,
e
nos
chama
a
atenção
à
sua
característica
manipuladora, e
até
mesmo
escravista.
Sua
contribuição
para
nosso
entendimento
dos
mecanismos
da
linguagem
é
imensa,
e
sua
forma
de
nos
advertir
sobre
seus
perigos
nos
inspira a buscarmos
cada
vez
mais
a
consciência
sobre
os
discursos,
isto
é, a
política
que
se
encontra
imbuída
em
todo
o
uso
que
fazemos da
linguagem.
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