GRAFEMAS E DIACRÍTICOS EM MANUSCRITOS
SETECENTISTAS

Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (UFMT, USP, ABF)

 

Introdução

Com base no cotejo de textos setecentistas brasileiros coletados na rota das bandeiras paulistas, este texto tem o objetivo de apresentar o inventário dos grafemas e dos diacríticos nesse estágio da escrita portuguesa no Brasil. A análise foi realizada em dez manuscritos datados da primeira metade do século XVIII. São documentos coletados para o projeto de pesquisa Filologia Bandeirante (USP, UFMG, UFG, UFMT) que, nos últimos quatro anos, vem “garimpando” e editando manuscritos dos séculos XVII e XVIII com a finalidade de prepará-los, filologicamente, para a descrição da língua portuguesa na época das bandeiras.

Cinco desses manuscritos são constituídos de duas vias. O que nos levou a optar por alguns desses documentos, com mais de uma via, foi o fato de eles oferecerem elementos mais consistentes para a análise pretendida, e ainda porque as duas vias são coincidentes em data, localização e escriba.

O fato de se tratar de duas vias escritas, pelo mesmo punho, nos ajuda a desfazer certas dúvidas. Por exemplo, se a ocorrência de algum fato interessante, como a utilização de determinado recurso grafemático, que destoe da atual realidade lingüística, ou mesmo de outros escrivães contemporâneos, é resultado de descuido ou indecisão de quem escreve, porque, nesse caso, o tal fato não se repete na outra via, ou se é um aspecto próprio do estado de língua da época, no caso de o mesmo fenômeno ser constatado na outra via, e em outros documentos do período.

É claro que podemos chegar a essas deduções partindo de documentos com apenas uma via. Pela observação dos documentos manuscritos, podemos sem muito esforço perceber alguns exemplos de poligrafia que denotam o estado de dúvida em que se encontravam os escribas e copistas daquele século. O poligrafismo, no entanto, não impede a sistematização do emprego dos grafemas e diacríticos de então.

Se com documentos de via única é possível realizar essa investigação, imagine com documentos de duas vias. A análise destes, sem preterição daqueles, certamente nos possibilita chegar a muitas constatações com mais segurança e rapidez.

 

Grafemas vocálicos e diacríticos

Nos textos estudados, os grafemas que representam os fonemas vocálicos são seis: <a>, <e>, <i, y>, <o> e <u>. Os grafemas <i> e <y> são equivalentes, embora o emprego de <y> seja de baixa freqüência, ocorrendo apenas nestas três palavras, dentre outras ocorrências: Sylva, sy e escrevy.

 Como se , não se trata de grafema com valor exclusivamente assilábico, porque nessa condição a ocorrência de <y> é mais freqüente em documentos do período estudado.

Todos os grafemas de referência vocálica, exceto <y>, pelo menos nos textos investigados, são empregados com ou sem sinais diacríticos.

Alguns desses grafemas também são empregados na constituição de ditongos, assumindo valor de assilábicos, como <e,i>, <i, y> e <o,u>, em que cada um desses pares de grafemas se equivalem.

A equivalência também ocorre entre os diacríticos. Observamos que, à época dos manuscritos analisados, o agudo ( ´ ) e o circunflexo ( ^ ) podem assumir o valor fônico com que atualmente empregaríamos apenas o agudo: para marcarmos a tonicidade das vogais ou o timbre aberto das vogais mediais. Dentre outras ocorrências temos: ora Cuyabâ, , mandarâ, Jozê e , ora Cuyabá, , mandará, Jozé e .

Via de regra, nesse estágio da escrita fica explícito que a principal preocupação não era a de assinalar graficamente a tonicidade ou o timbre das vogais, como fazemos hoje. Dentre muitos exemplos podemos citar: agoas por águas, necessarios por necessários, camara por câmara; quando algum acento gráfico é empregado, o que parece mais provável é que, pelo menos em alguns casos, a preocupação é assinalar a quantidade da vogal.

É recorrendo a essa quantidade, lembrando o sistema vocálico latino, que Bacellar (1783:36-37) ajuda-nos a digerir o então emprego dos diacríticos, apresentando-nos três acentos[i] que indicam se a vogal é longuíssima ou aguda ( ´ ), breve ( ` ) e longa ou circunflexa ( ^ ).

Outro exemplo que abona o uso desses diacríticos com a função de indicar a quantidade das vogais ocorre, em outra situação, com o agudo que, nos documentos estudados, também foi empregado para indicar a existência de crase; fazendo o á dois sons, tornando-se assim longuíssimo: hir áditta guerra, ásua Custa e á custa dasuafadiga. Ainda nessa mesma função, esse diacrítico continua equivalendo se ao circunflexo. Pelo menos, no caso dos dois primeiros exemplos, o mesmo escrivão, na outra via do documento, emprega o circunflexo numa situação em que ocorrência de crase: ir âditta guerra e âsuaCusta. O emprego do diacrítico para a vogal breve, ( ` ), não foi encontrado em nenhum dos documentos analisados.

Em se tratando do uso de sinais diacríticos, de uma maneira geral, os manuscritos setecentistas não se diferenciam tanto de textos ainda mais antigos. Em documentos do século XIII, por exemplo, em pleno período fonético da ortografia portuguesa, conforme constatação de Huber (1933:43), “o uso de sinais ortográficos (como acentos, tiles, traços de união, apóstrofos)” erabem variado e inconsequente”. Um exemplo dessa suposta falta de critério no emprego desses sinais diz respeito ao acento agudo, que muitas vezes é usado ao lado do til para representar vogais nasalizadas, mas também se encontra em vogais orais, não nasalizadas.

 

Grafemas consonantais e diacríticos

Os grafemas que representam os fonemas consonânticos, nos textos analisados, entre os simples e complexos, são os seguintes: <b>, <c>, <ç>, <cc>, <cç>, <ch>, <d>, <f>, <ff>, <g>, <gn>, <h>, <j>, <l>, <lh>, <ll>, <m>, <mm>, <n>, <nh>, <nn>, <p>; <pp>, <q>, <r>, <rr>, <s>, <ss>, <t>, <th>, <tt>, <u,v>, <x> e <z>. Os grafemas <u> e <v> são equivalentes; <u> com relação a <v> registra baixa freqüência, ocorrendo apenas em um dos documentos editados. Alguns exemplos dentre outras ocorrências: nouo por novo, cauallos e hauia por cavalos e havia, e captiuos por cativos.

Entre todos os grafemas consonânticos, apenas m e n são assinalados por sinal diacrítico, mais especificamente pelo til: beñs e ordeñs, dentre outras ocorrências, e algum).

Constata-se que a ortografia empregada pelos escrivães dos documentos editados não está totalmente de acordo com o que queriam os gramáticos e ortógrafos da época, como Bacellar (1783), gramático do século XVIII, contemporâneo dos textos.

Voltando dois séculos para comparar o sistema ortográfico ditado pelos gramáticos portugueses do século XVI, que tratam do assunto – Fernão de Oliveira (1536), João de Barros (1540) e Duarte Nunes Leão (1576) –, certamente vamos concluir, como fez Louro (s.d.:20-28), que possuíamos pelo menos três ortografias distintas.

Para ilustrar essa distinção, sem entrar em detalhes sobre o valor fônico de cada um dos grafemas, e parafraseando Estanco Louro, vamos expor apenas as divergências no que se refere ao inventário dos grafemas proposto por cada um desses autores.

Para Oliveira, capítulo décimo, há trinta e duas vozes ou sons e trinta e duas letras ou figuras, sem contar o til e o <h>. Para arranjar todos esses grafemas ele desdobra <a>, <c>, <e>, <o>, <r> e <s> e conta como figura <ch>, <lh> e <nh>.

Barros (p. 370)[ii], por sua vez, conta o til e o <h>, mas não desdobra o <s> e acha, por isso, trinta e três vozes ou sons e trinta e três figuras ou letras (e não trinta e quatro, como informa Louro, p. 20). São elas: <á>, <a>, <b>, <c>, <ç>, <d>, <é>, <e>, <f>, <g>, <h>, <j>, <i>, <y>, <l>, <m>, <n>, <ó>, <o>, <p>, <q>, <R>, <r>, <s>, <t>, <V>, <u>, <x>, <z>, <~>, <ch>, <lh>, <nh>.

Para Leão, entretanto, as letras são vinte e duas; as vozes, porém, são mais e são representadas em figura por combinações das ditas letras.

Mesmo reconhecendo que os três estão longe das modernas classificações científicas, e mesmo dentro do seu empirismo que vinha dos gramáticos latinos, Louro (p. 21) considera, no entanto, que estavam esboçadas algumas distinções, e, levando em conta o critério das classificações, considera ainda Fernão de Oliveira como o mais lógico e rigoroso dos três.

Voltando mais ainda, entrando no dito período do português arcaico e do galego-português, para ampliar a comparação, vamos recorrer ao inventário dos grafemas utilizados em textos da Galiza e de Portugal desde o século XIII ao século XVI, levantado por Maia (1986:305-308).

Tanto nos documentos da Galiza quanto nos de Portugal os grafemas que representam fonemas vocálicos são os seguintes: <a>, <e>, <i, y, j, h>, <o> e <u>. Nos textos galegos ainda aparece o grafema <v> equivalendo-se a <u>. São equivalentes também o grupo <i, y, j, h>.

Os grafemas levantados em todos os documentos galegos e portugueses que representam fonemas consonânticos apresentam-se com formas simples e complexas. Totalizando 66 (sessenta e seis) figuras, letras ou grafemas, os simples são <b>, <c>, <ç>, <ξ>, <d>, <f>, <i>, <y>, <j>, <k>, <l>, <m>, <n>, <ñ>, <p>, <q>, <r>, <s>, <R>, <t>, <u>, <v>, <x>, <z> e <σ>; e os complexos são <bb>, <ci>, <çi>, <cti>, <cz>, <ξy>, <ti>, <ch>, <çh>, <ff>, <gi>, <gh>, <yy>, <yi>, <li>, <lj>, <lli>, <llj>, <ly>, <ll>, <lh>, <mm>, <nn>, <nj>, <ni>, <ñi>, <gn>, <gnh>, <nh>, <pp>, <ph>, <rr>, <RR>, <Rç>, <sR>, <th>, <tch>, <ti>, <tt>, <uu> e <zi>.

Comparando o inventário dos grafemas em textos do século XVIII com os que ditam os ortógrafos do século XVI e com o inventário levantado por Clarinda Maia em textos arcaicos galegos e portugueses, é possível perceber que o inventário dos grafemas utilizados nos textos setecentistas está mais próximo do constatado em documentos entre os séculos XIII e XVI, do que propriamente dos levantados pelos gramáticos seiscentistas, e distante mais ainda do inventário proposto por Bernardo de Lima e Melo Bacellar, gramático coevo dos manuscritos analisados.

 

Edição de um manuscrito

Para ilustração, editamos a seguir um dos manuscritos analisados neste trabalho.

O tipo de edição utilizada foi a semidiplomática ou conservadora, empregada em todas as lições do projeto Filologia Bandeirante: a intervenção do editor se resumiu em apenas desfazer as abreviaturas, identificadas pelo italização da parte suprimida pelo copista. As barras verticais indicam fronteiras das linhas, com seus respectivos números sobrescritos.

Manuscrito I, via única

Assunto:

Relatório do Ouvidor da Comarca do Cuiabá, João Gonçalves Pereira, sobre a viagem de Antônio Pinho de Azevedo às minas de Goiás, para onde partira com o objetivo de abrir caminho das minas cuiabanas para as goianas.

Local:

Rio Cuiabá.

Data:

01 de Setembro de 1737.

Localização:

Acervo do Arquivo Público de Mato Grosso; lata: documentos diversos; ano: 1737; caderno, n.º 38.

[espaço] Senhor [espaço] |1 Copea [espaço] |2 Indo comsinco dias deviage) desteRio Cuyabâ para onouo |3 descubrimento doMato grosso aondevou aexecuçaõ donouo sistemâ dacapitaçaõ |4 meveyo anoticia deter chegado avilla o Capitaõ Antonio dePinho de|5Azevedo devolta dasMinas doz Goyasês paraondetinhapartido em Junho |6 doanno passado comoinprego deabrir caminho destas paraaquellas oquemuito |7 sedificultava porser certaõ povoado denumarozo gentio, ecomo seconseguio |8 Esta impreza, comaida, evolta doSobredito, edeSeus Camaradaz dou |9 AVossa Magestade estacontâ paraficar nacertezâ deReferido, enadeque EsteCampo |10 ha deservir degrandevitalidade aFazendadeVossa Magestade aextencaõ |11 dosditosdomminios efoy degrandegosto paratodosos moradores destaz |12 edaquellas Minaz; epollo mesmo Caminho meconstavieraõ 400 |13 etanctos Cauallos deque hauia grande nececidade nestaterrapara |14 Comellez Secontinuar onouodescobrimento doMatto grosso [espaço] |15 Constamequenodescursso daReferidaviage) prezeonou oditoCapitam |16 Antonio dePinho deAzevedo eSeus camaradas bastantegente |17 borroro, equeporjustificaçaõ quefizeraõ nos goyazez dizer o ditto |18 gentio guerreyro econfederado Cayapo Sejulgaraõ captiuos todozoz |19 queprisseonaraõ ecomifeito vi hubando doCondedeSargedas |20 Governador desta Capitania emquese declarâ oditogentio |21 Captiuo mas os fundamentoz delles saõ taõ siuis; como hê |22 falssas toda equalquer justificaçaõ quefizessem deSeroditogentio |23 Borroro, ou outroqualquer Comfederado com o Cayapo, ena |24 Dittacometiuâ foraõ varios paulistas quetodo o Seu empenho |25 heprezionar e Captiuar gentio, ejurariaõ Como interecadoz |26 Eattendendo aquetudoisto foy huamachinada falcidade |27 etaõ perjudicial Como tirar aliberdadenatural quese|28deu aEstes Indios eaqui nestesSertoeñz naõ hagentio |29 quemerecacaptiueyro mais queoPa<ya>uâ eCayapo quepor |30 tal estâdeclarada huaeoutranaçaõ conforme asordenz |31 deVossa Magestade Rezolui atalhar pello modo[ilegível] |32 prestifero Eantigo Custume doCaptiueyro dogentio |33 mandando fazer hu) idital que modese oditto ||34 (1v) Dando porqueComapublicaçaõ delle seporâ este Captiueiro |35 nomayorauge, ecomeste oditoIdital emquetodas aspessoaz |36 queprisseonaraõ oditogentio sesiruaõ delle; Enaõ possaõ |37 vender, trocar, alhear, nem escambar atroco deouro |38 nem deoutracouza queovalha Semqueprimeyro preceda |39 Expressa Rezuluçaõ deVossa Magestade aquem dou esta conta indo |40 Deviage) obrigadeyro dogrande Escurpulo EEncargo decontten|41çaõ queconcidero emSefazer estegentio Captiuo eSobre |42 Amesma materiadey jâ conta aVossa Magestade pellaSacra|43tariadeEstado para Rezoluer Seestes Indios deuempagar |44 Capitaçaõ; etambem pello Concelho Ultramarino comaCo|45pia dasjuntaz quesefizeraõ Sobreagerradogentio Cayapô e|46Payapô ePayaguâ Vossa Magestade mandarâoqueparecer mais |47 justo Rio Cuyaba deSetembro oPrimeyro de1737 = OOuvidor |48 daComarcadoCuyabâ Joaõ Gonçalves Pereyra = |49

 

Referências bibliográficas

ARGOTE, Dom Jerônymo Contador de. Regras da lingua portugueza, espelho da lingua latina. Lisboa Occidental: Officina da Musica, 1725.

BACELLAR, Bernardo de Lima e Melo. Grammatica philosophica e orthographia racional da língua portuguesa. Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1783.

BARROS, João de (1540): Gramática da língua portuguesa. Cartinha, gramática, Diálogo em louvor da nossa linguagem e diálogo da viciosa vergonha. Reprodução facsimilada, introdução e anotações de BUESCU, M. L. Carvalhão. Lisboa: Publicações da Universidade de Lisboa, 1971.

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Historiografia da língua portuguesa século XVI. Lisboa: Sá da Costa, 1984.

HUBER, Joseph. Gramática do português antigo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1933.

LEÃO, Duarte Nunes de (1576): Ortografia e origem da língua portuguesa. Introdução, notas e leituras de BUESCU, M. L. Carvalhão. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1983.

LOURO, Estanco. Gramáticos portugueses do século XVI, Lisboa: Ressurgimento, [s/d.].

MAIA, Clarinda de Azevedo. História do galego-português, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1986.

MARQUILHAS, Rita. Norma gráfica setecentista: do autógrafo ao impresso, Lisboa: INIC – CLUL, 1991.

OLIVEIRA, Fernão de (1536): A Gramática de linguagem portuguesa. Introdução, leitura actualizada e notas de BUESCU, M. L. Carvalhão. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda,


 

[i] “O accento (...) he hum)a especie de canto; pois algum’as vezes constão aquelles de articulação, tempo, aspiração, e paixão. Temos dobrada demóra nas longas que nas breves: a levantamento de vóz em hum)a, e decadencia em a mesma, ou na seguinte (...).”

[ii] Trata-se da edição faccimilada por Buescu, 1971.