O JOGO VERBAL EM JOSÉ PAULO PAES
MARCA DE UM ESTILO PECULIAR
Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)
Para seduzir o leitor e envolvê-lo, um texto deve apresentar características que tornarão a leitura puro deleite. No que tange a José Paulo Paes, dentre outras marcas, o ludismo verbal responde pelo prazer maior do ato de ler.
O seu fazer literário manifesta-se na articulação criativa dos planos fonológico, morfológico, sintático e semântico. A palavra é manipulada com mestria, assumindo a forma pretendida pelo talento do autor, submetendo-se docilmente, gerando as variações infinitas do jogo verbal que encanta e seduz.
Usa-se a linguagem coloquial concomitantemente à culta, uma não ofuscando a outra, ambas servindo de suporte ao poético. A gíria renova-se tanto quanto os clichês, revitalizados em construções e textos inovadores, destacando-se as parlendas, textos oriundos da cultura popular, sem preocupação com formalismos e regras. Dialogam entre si, numa polifonia de épocas e lugares revisitados pelo poeta.
Na tessitura do texto, as palavras prestam-se a comparações, a decodificações, a repetições, a inversões baseadas e sustentadas por evocações latentes ou contextuais nas quais estão presentes, no mesmo ambiente, até palavras relacionais, como as preposições, assumindo papel fundamental para a dinâmica do texto.
O ludismo verbal multiplica-se em evidências. As palavras são, a um só tempo, instrumentos para o jogo e companhias no ato de jogar. Transformam-se em peças que possibilitam essa ludicidade, conduzindo leitores de qualquer idade à participação na brincadeira. Assim, no texto, há solicitação à presença e à cumplicidade do leitor, um convite à obra, simples na transmissão de mensagens e complexa em consubstanciar-se na variedade dos fatores inerentes ao circuito comunicativo.
José Paulo Paes é um artífice que instrumentaliza a poesia em perfeita inter-relação de modalidades lingüísticas ao lado de eficiente quebra de barreiras formais. Dirige-se ao público infanto-juvenil, conjugando autor-leitor, na certeza de que a expressividade e a plenitude da língua não se escondem em construções elaboradas e herméticas, realizando-se por todos e para todos, além do que se associam escolhas primorosas fornecidas pelo sistema lingüístico à eficácia no ato comunicativo.
Convite
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia ?
PPB
O autor resgata a sensibilidade lingüística oriunda da escolha vocabular, do material gramatical disponível, da ordem das palavras nas frases e da sua musicalidade, consolidando o valor plural dos textos na percepção de mundo e na sua tradução através da Língua Portuguesa.
As manipulações lingüísticas ocorrem segundo a elaboração da mensagem, dos conteúdos afetivos na construção dos poemas em que a poesia potencializa-se no manejo da língua, resultado de fatos complexos e variáveis, porém acessíveis, para quem se dispõe a trabalhá-los e desvendá-los, apostando sempre na literariedade do texto.
Dedicada pretensamente ao público infanto-juvenil, a obra é um acervo literário comparável a qualquer produção dedicada ao adulto. O cotidiano lingüístico caminha junto aos recursos elaborados, o coloquial ao padrão culto, monitorados constantemente pelo autor. São rompidos limites impostos pelo tradicional e pelo erudito, em princípios norteados por valores artísticos rígidos e anacrônicos, superados por um trabalho eficiente, centrado na função poética, como o de José Paulo Paes.
No fragmento seguinte, encontra-se em sintonia perfeita o modelo formal, na regência do verbo pisar; a metáfora, na caracterização da história - descalça; a mistura de imagens e sensações, em cabelos despenteados pelo vento; e o diálogo aberto com os leitores estabelecidos pelo pronome lhes e pela forma verbal esperem, integrando os vários planos do sistema lingüístico.
Vou lhes contar uma história
meio sem pé nem cabeça
e que por isso não usa
nem sapato nem chapéu.
É uma história descalça
que gosta de pisar grama
e de sentir os cabelos
despenteados pelo vento.
Vou lhes contar uma história,
esperem só um momento
OMOD
Trata-se de um poeta que conhece o leitor, considerando-o, respeitando-o e apostando na sua inteligência. Trabalhando a Língua Portuguesa, não desvaloriza ou hierarquiza qualquer aspecto lingüístico, usando todo o potencial expressivo das variedades dialetais, regionais e culturais, José Paulo Paes mostra que a qualidade não se prende a uma só vertente literária ou a uma modalidade de língua.
Para os estudiosos da linguagem, o reconhecimento de trabalho tão especial na abordagem da Língua Portuguesa traz satisfação, principalmente em se tratando de literatura dedicada ao público infanto-juvenil. Há extremo cuidado com as palavras, o que nem sempre se observa em obras “literárias” para leitores dessa faixa etária, considerados pouco exigentes e incapazes de perceber certos refinamentos.
Respeita-se a língua, principal símbolo da cultura, não como objetivo em si mesma, mas como passaporte para interferir em todos os aspectos da vida do homem. (...) o poeta tem de descobrir o tom certo para interessar seus pequenos leitores. Um tom que seja ligeiro sem ser vulgar ou adocicado, que seja aliciante sem ser sentimental ou moralizador. (QEUPQ)
Em nenhum momento o escritor é leviano em suas intervenções, mesmo em se tratando da linguagem coloquial que, na obra, adquire nova expressão. A mestria do autor no trabalho com as palavras revela sensibilidade e intuição apuradas no aproveitamento de recursos que o sistema lingüístico oferece. As construções são primorosas, assim como o restabelecimento de sentidos perdidos, como a expressão cabeça cheia de minhocas, que se atualiza, ressignificando-se.
Pescaria
Um homem
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a idéia
de usar as minhocas
numa pescaria para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.
Onde será que foi parar?
Não sei
nem quero me preocupar com isso.
Vou mais é pescar.
PPB
Paes mostra-se capaz de unir o denotativo ao conotativo, distanciando-se do rebuscado e hermético, respeitando a emoção do leitor, nunca se esquecendo do objetivo maior da língua - a comunicação - chegando a efeitos surpreendentes na utilização de fatos corriqueiros. As barreiras da especificidade e adequação da obra para determinado público são desfeitas, independentemente de idade ou nível cultural, possibilitando identificação imediata com o texto.
José Paulo Paes faz parte da galeria de autores que são “verdadeiros artífices da palavra, trabalhando-a artesanalmente, garimpando, na infinita gama de possibilidades lingüísticas, aquelas que vão instaurar o toque mágico que abrirá corações e mentes”. (PEREIRA; 1999:143).
Para efeitos de exemplificação do ludismo verbal, selecionamos algumas poesias cujas ocorrências comentaremos. A visualização do fenômeno torna-se mais eficiente do que qualquer teoria:
O L é uma letra louca.
Transforma a nota mi em 1000
e faz a uva andar de luva,
cabra descobrir o Brasil.
ULPO
Trabalha com as potencialidades das palavras, quase sempre misturando os recursos quanto a significantes, sons e constituintes formais, e significados, a forma das palavras construída graficamente pelas letras. A ambigüidade também ajuda a produção, criando ambiente favorável para que se processe no leitor as impressões sugeridas pelo texto.
Então, mi pode ser a nota musical ou o papel que representa dinheiro. A transformação de um significado em outro é possível através da letra L: mi ® 1000. Há mudanças inesperadas como uva estar usando luva e cabra descobrir o Brasil, proporcionadas pela loucura da letra L; o autor passa do nonsense para a realidade pela sugestão do fato histórico, mesclando elementos do fantástico, da realidade e de humor. As mudanças são relevantes, principalmente em cabra descobrir o Brasil. A distância entre o animal cabra e o nome do descobridor do Brasil Cabral é imensa, só transpondo-se pelo jogo mágico com as letras, no caso específico, o L. Aparentemente um recurso simples, provoca possibilidades infinitas, mas que prendem a atenção do leitor, aguçando sua percepção.
Em Raridade, observamos a elaboração da forma criada pelo autor com a finalidade de nomear o animal em extinção arara, originando um neologismo, acentuado pela fragmentação da palavra em seus constituintes fônicos. A palavra onomatopaica lembra a voz do animal. A sonoridade traduz o som e representa semanticamente a mensagem do poema, remetendo ao título Raridade, que lembra o futuro desaparecimento da “arara”, adequadamente chamada de
arrara.Raridade
A arara
é uma ave rara
pois o homem não para
de ir ao mato caçá-la
para a pôr na sala
em cima de um poleiro
onde ela fica o dia inteiro
fazendo escarcéu
porque já não pode
voar pelo céu.
E se o homem não pára
de caçar arara
hoje uma ave rara,
ou a arara some
ou então muda seu nome
para arrara.
OOB
Além do recurso neológico, salientamos também as possibilidades sonoras que as rimas caçá-la/na sala sugerem, assim como céu estar contido na palavra escarcéu.
No poema seguinte, verificamos a novidade na forma bem te via, aproveitando-se o sistema flexional dos verbos para a elaboração de novo vocábulo.
Correção
Como dizia
Aquele bem-te-vi que ficou míope:
“bem te via ... bem te via ...”
EIA
O processo de flexão submete o vocábulo à flexão inusitada em se tratando de sua classe: verbo. Morfemas flexionais normalmente não são elementos usados para a criação de vocábulos como os derivacionais e lexicais.
Especificamente no poema, a forma verbal via aparece em oposição a vi. Fundem-se os recursos semânticos e morfológicos. O elemento vi do substantivo bem-te-vi transforma-se em verbo via na nova criação bem te via, opondo também tempo passado concluso (pretérito perfeito) a inconcluso (pretérito imperfeito).
Vejamos agora um fragmento do poema Gato da China.
(...)
que quando espirrava
só fazia “chin!”
(...)
e quando tinha fome
miava “ming-au!”
(...)
PPB
O traço inovador está presente na elaboração das formas chin e ming-au, ambas destacadas no corpo do texto por aspas. Animal chinês, o personagem não espirrava ou pedia alimento como os gatos comuns. Desconsiderando a personificação, é diferente porque o som produzido por seus espirros é chin e não a onomatopéia tradicional para representá-lo, atchin. O pedido por comida, o mingau, se transforma pelo desmembramento em partes: ming-au.
A especialidade da criação reside na nacionalidade chinesa do personagem propiciando ao autor referências às dinastias antigas ming e ching. Além do jogo verbal, produzido pelos sons e pelas formas, há manifestação de intertextualidade.
O jogo de palavras instiga a inteligência, mostrando as infinitas possibilidades do vir-a-ser lingüístico. Ao interagir com o leitor, oferece-lhe um texto de excelência, levando-o à construção de diferentes sentidos, mais plenos do que aqueles proporcionados por uma linguagem correta, mas convencional.
Lendo-se e deliciando-se com sua produção poética, constatamos que suas preocupações eram completamente infundadas: “Os livros são escritos para ser lidos; quando não o são, frustram-se em sua finalidade precípua”.
Para sempre vivo em suas obras, Paes revela sabedoria ao afirmar no encarte do seu último livro Vejam como eu sei escrever : “É pelo trampolim do riso, não pela lição de moral, que se chega ao coração das crianças. Até lá procuraria eu chegar com as brincadeiras de palavras de meus poemas infantis”.
BIBLIOGRAFIA
ALVIM, Laila Maria Handam. Manifestações do ludismo verbal em José Paulo Paes. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa (Orientação: Maria Teresa Gonçalves Pereira). UERJ, 2000
PAES, José Paulo. É isso ali. 10ª ed. Rio de Janeiro. Salamandra. 1993.
------. Olha o bicho. 9ª ed. São Paulo. Ática, 1997
------. O menino de Olho-d’Água. São Paulo: Ática, 1991
------. Poemas para brincar. 12ª ed. São Paulo: Ática, 1997
------. Uma letra puxa outra. São Paulo: Cia. das Letras, 1998
------. Quem, eu ? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Atual, 1996
------. Vejam como eu sei escrever. São Paulo: Ática, 2001
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Língua portuguesa e sedução: do binômio possível nos textos de literatura infanto-juvenil; in Perspectiva, ano 17, nº 31. Florianópolis: UFSC, 1999.