Problemas metodológicos
na pesquisa diacrônica
com fontes do Brasil-colônia:
a imprecisão das fichas catalográficas
nos arquivos históricos
Núbia Graciella Mendes Mothé (UFRJ)
Afranio Gonçalves Barbosa (UFRJ)
Entrando na história.
O trabalho que ora apresentamos enquadra-se na pesquisa em lingüística histórica que vem sendo desenvolvida no Brasil por equipes regionais de oito localidades (BA, MG, PB, PR, PE, RJ, SC e SP) congregadas no Projeto Nacional Para a História do Português Brasileiro (PHPB) desde 1997. Após cinco Seminários Nacionais, vários corpora diacrônicos foram constituídos de modo a propiciar à comunidade acadêmica material fidedigno e bem editado para descrever e estudar a formação do Português Brasileiro em contraste com as mudanças no Português Europeu. Hoje, o PHPB dispõe de publicações próprias impressas e eletrônicas de textos dos séculos XVIII e XIX, tanto de manuscritos oficiais e não oficiais, quanto de impressos jornalísticos e literários. Por exemplo, o livro E os preços eram commodos editado pela Humanitas/USP reúne anúncios de jornais do século XIX e o Cd-rom feito pela UFOP oferece fac-símile e transcrição de cartas pessoais escritas em Ouro Preto no século XVIII. Vale destacar a página na rede mundial de computadores construída pela equipe carioca (www.letras.ufrj.br/phpb-rj) que, com o trabalho concomitante de catalogação de fontes manuscritas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, já disponibilizou diversos materiais do século XVIII. O catálogo realizado para o século XVIII já pode ser consultado na própria Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ).
O trabalho de levantamento de fontes específicas para as equipes funciona melhor quando agilizado pelo intermédio de um bom catálogo. Os resultados de cada trabalho publicado pelo PHPB a cada encontro nacional só são representativos porque estiveram baseados em dados retirados de fontes igualmente representativas, fontes estas oriundas de levantamentos exaustivos em arquivos históricos. A elaboração e uso de nossos catálogos vêm a ser o ponto de partida dessa cadeia de qualidade em quatro passos, ou seja, 1) levantar e catalogar fontes, 2) editar essas fontes para 3) delas levantar dados de cada fenômeno lingüístico em foco e, ao fim, 4) publicar os resultados em artigos, atas, etc. De fato, elaborar um catálogo, ao menos em nosso projeto, não é apenas um trabalho mecânico, pois a discussão dos recortes a serem estabelecidos na seleção é metonímia de toda uma discussão maior sobre a representatividade tipológico-textual dos manuscritos recolhidos para a identificação do Português Brasileiro que se formava ao longo dos séculos de Colônia, Império e República. Discussão essa que visa avaliar dados significativos em um determinado material em função de sua capacidade de esclarecimento do grau de influência de um fenômeno lingüístico x na evolução do Português do Brasil durante sua História.
Neste momento, estamos voltados para a elaboração de um catálogo visando agrupar material do século XVII (até agora quase intocado por nós) que venha não somente a nos ajudar a construir mais uma etapa da história da Língua Portuguesa no Brasil, mas que também seja instrumento de trabalho útil a pesquisadores de fora do projeto PHPB. Só para se ter uma idéia da importância de um bom instrumental catalográfico, veja-se o caso da tese de Eleutério (2003) sobre Sesmarias do Convento do Carmo recentemente defendida na UFRJ. A pesquisadora teve de trabalhar com um impresso do século XX de um texto do século XVII copiado no século XVIII porque as fontes não literárias do século XVII, da BN-RJ ao menos, ainda não estão organizadas e descritas em catálogos. O processo de catalogação de qualquer tipo de fonte, entretanto, esbarra fundamentalmente no problema da imprecisão das fichas nos arquivos e bibliotecas. Em tais arquivos, o método de organização das fichas não traz qualquer esclarecimento sobre informações imprescindíveis a uma pesquisa cujo alvo seja a linguagem. A disposição das fichas em ordem alfabética, por exemplo, traz lado a lado documentos dos mais diversos assuntos, períodos e origens.
O problema da imprecisão muitas vezes só é percebido quando nos debruçamos sobre os arquivos com um propósito definido. Sendo o nosso objetivo primordial reunir material para descrever e estudar a evolução do Português Brasileiro, foi necessário desenvolver uma metodologia de trabalho adequada que nos permitisse resolver questões gerais sobre os elementos fundamentais à pesquisa em lingüística histórica. São eles:
Só podemos trabalhar com textos datados e localizados (Brasil ou Portugal, as regiões internas de cada nação);
Precisamos operar com rigoroso aparato filológico e paleográfico, de maneira que possamos efetivamente ler e compreender manuscritos dessa época e classificá-los com base em algum critério (ou critérios), seja pela forma, conteúdo, origem, função, etc;
Precisamos discutir a elaboração de tipologias textuais baseadas na representatividade histórico-lingüística dos escritos, ou seja, decidir o que realmente é um fato característico de uma determinada época e o que indica sinal de mudança lingüística interessante para ser averiguado dentro do projeto PHPB;
Devemos, por fim, enfrentar questões sobre a língua escrita e sua representação na oralidade.
Se essa última é mais ampla e não diz respeito à elaboração de catálogos - por exemplo, definir o grau de representação por meio da pontuação de sinais diacríticos da entoação perdida da oralidade subliminar à escritura - as três primeiras são centrais em nosso trabalho.
Discussão Metodológica
A datação e a localização do documento.
A nós somente interessariam, como já mencionado, documentos escritos ao longo do século XVII. Freqüentemente, contudo, não encontrávamos documentos originais, tampouco suas cópias coevas, mas sim suas cópias feitas durante o século XVIII. Documentos que não sejam originais sempre representam uma ameaça a afirmações conclusivas em uma pesquisa cujo foco seja a linguagem, uma vez que não se pode assegurar que o texto original foi copiado de forma absolutamente fiel - fator indispensável em pesquisas desse tipo. Um exemplo do problema que isso pode nos causar é o caso de um fenômeno bastante comum até o século XVIII que deixou de ser usual e passa ao emprego estilizado no século XIX: a “interpolação da negativa”. Um autor do século XVIII tranqüilamente escreveria uma sentença do tipo: “...e certamente o não faria por motivo algum...”, colocando o “não” (negativa) entre o clítico e o verbo. Já no século XIX, a posição normal do clítico nessa sentença seria: “... e certamente não o faria por motivo algum...”. Essa pequena diferença poderia, como testemunha a tradição filológica, influenciar um copista do século XIX que, ao ler a sentença e apreendendo rapidamente seu sentido, inverteria inconscientemente a ordem da negativa, prejudicando assim uma possível pesquisa lingüística que investigasse, por exemplo, a colocação dos clíticos em relação ao verbo.
Em casos de dúvida quanto à datação correta de um documento, portanto, aplicávamos alguns critérios capazes de esclarecer se um texto era autógrafo (o original escrito pelo próprio autor) ou se se tratava de uma cópia. Partindo do mais geral para o mais específico, o primeiro dos critérios era verificar o tipo de papel: sabemos que o papel prensado é raro no fim do século XVIII e passa de característico do XIX em diante, enquanto que papéis constituídos a partir de misturas com trapos dissolvidos em pastas espalhadas sobre telas são comuns até fins do XVIII. Em seguida, após constatar se há ou não marca d’água das fábricas de papel, devíamos consultar as obras de referência que listam diversas dessas marcas utilizadas em um determinado lugar e época para confirmar onde e quando o papel foi feito. Em última instância, poderíamos, também, fazer uso de trabalho filológico propriamente dito, mais especificamente de crítica histórico-literária, pois, através da análise da própria fonte, podemos constatar se há alguma informação “nas entrelinhas” que nos permita afirmar a datação do texto. Para exemplificar isto, citemos o episódio em que, ao investigarmos documentos supostamente escritos pelo Padre Antônio Vieira (de acordo com a ficha catalográfica ele era o autor), tivemos contato com uma obra que se constituía de um índice de palavras usadas nas obras do padre. A ficha dizia:
“Vieira, Antônio, Padre (1608 - 1697)
Índice de palavras usadas nas obras do Padre Antônio Vieira.
Original.”
Ao abrir o próprio documento, porém, encontramos no topo da primeira folha a seguinte anotação: “Palavras escolhidas de Vieira: as que vão notadas com huma estrelinha, faltão no Diccionario de Moraes”. Ora, sabemos que o Dicionário de Moraes é uma importante e conhecida obra de referência cuja primeira edição é do fim do século XVIII. Se o autor do índice afirma que existem palavras no mesmo que não constam na obra de Moraes, significa dizer que esta é, então, uma obra posterior à de Moraes. Além de descobrirmos que Antônio Vieira não era o autor do índice, ficamos cientes também que tal documento não nos é tão útil quanto ao interesse em documentos do século XVII, isso porque apesar de se tratar de uma reunião de palavras usadas pelo Pe. Antonio Vieira, homem seiscentista, não podemos saber da qualidade das edições usadas como fontes pelo verdadeiro autor índice. Por outro lado, é um material com grande potencial para estudos lexicográficos, que, se não tivesse sido aberto por nós, provavelmente ainda ficaria por muito tempo esquecido nas estantes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Por intermédio desse caso, podemos também perceber a necessidade da verificação integral de documento por documento, o que seria uma condição ideal para o catálogo. Em geral, nosso trabalho se atém às fichas catalográficas dos arquivos. Somente solicitávamos aos bibliotecários os textos que nos traziam dúvidas quanto ao local ou à data. Após a publicação da versão preliminar do catálogo, pretendemos verificar pelo menos cerca de 10% dos documentos para a elaboração de uma primeira edição crítica do conteúdo dos arquivos. É bem verdade que, assim, podemos perder ou deixar esquecido um material riquíssimo para pesquisa em lingüística histórica, mas a carência de catálogos justifica o trabalho parcial temporário. Nesse caso específico podemos dizer que tivemos sorte (e é preciso sempre contar com ela nos arquivos) em encontrar tal material. Isso porque, a princípio o nosso objetivo era checar o local em que ele fora elaborado, já que esta informação não constava na ficha, como vimos anteriormente, e sabíamos que por ser de autoria de Vieira (era o que achávamos) poderia também ter sido escrito enquanto o padre esteve na Europa (Portugal e Itália). Com a investigação acabamos achando o que não esperávamos. O problema, na verdade não era com o local, mas sim com a data e principalmente, com o próprio autor.
Quanto à localização, havia duas possibilidades de imprecisão: a ficha simplesmente não conter qualquer referência ao local; ou a ficha indicar o local em que o documento foi escrito, porém sem detalhes suficientes que nos auxiliassem a confirmar se Vila de Santarém, por exemplo, referia-se ao lugar em Portugal ou a seu homônimo no Brasil (Pará). Algumas ferramentas para investigar a localização eram as Listas de População do Século XVIII, como a de Pina Manique, de 1798, publicada em Serrão (1970) e manuscritos inéditos guardados no Palácio da Ajuda, em Lisboa, dos quais contamos com fotocópias. Nessas listas constavam nomes de cidades, vilas, etc, antes e depois da mudança Pombalina, que, no século XVIII, trocou o nome de muitos lugares que antes possuíam nomes indígenas para nomes da Língua Portuguesa. Além disso, foi preciso também estudar os livros de abreviaturas dos nomes de localidades, como o de Nunes (1981). Os nomes de algumas cidades eram abreviados ao longo do texto, dificultando o entendimento por parte de um leitor leigo. Como exemplo dessas abreviaturas podemos citar “Capnia de S. Vte.”(= Capitania de São Vicente); “Phyba” (= Parahyba). Esses instrumentos são essenciais ao trabalho.
A tipologia textual
Sobre a tipologia textual, já foi comentado ser imprescindível classificar adequadamente um texto de forma que possamos ter idéia de sua representatividade. A princípio, sabemos que não nos interessam obras literárias, mas somente textos não-literários. Além disso, é importante observar as categorias dos arquivos: ou elas são descritivas de conteúdo (de acordo com o engenho de quem organiza/redige as fichas); ou apontam/repetem o rótulo (de acordo com a classificação que o próprio documento ostenta - “representação”, por exemplo); ou ainda, formatam sua classificação documental na simples reprodução dos comentários iniciais encontrados no próprio resumo/conteúdo do manuscrito. Se ele começa por “Esta procuração...”, o rótulo categórico será procuração, mesmo que a maior parte dos fólios ali reunidos sejam de natureza diversa. Essas categorias estabelecidas pelo próprio autor do documento ou mesmo por quem faz as fichas catalográficas, nem sempre são capazes de revelar se o material é mais ou menos adequado para representar algum traço socio-lingüístico ou tipológico. Isso porque muitos desses textos representam apenas uma tradição discursiva, sendo descritos com um “rótulo oficial” que na verdade representa uma espécie de “fórmula”, “modelo”. Muitas vezes trata-se mesmo de formulários, onde só os dados pessoais são incluídos ou, no máximo, um texto explicativo/justificativo do “pedido”, da mercê em si feito pelo escrivão e não por aquele(s) que assina(m) o documento. Um procedimento útil em casos assim seria o mapeamento de que partes do texto são “fórmulas” (às vezes até seculares), e que outras contam como trechos mais “espontâneos”. Só assim saberemos distinguir a história da língua da história das tradições textuais.
A naturalidade do autor
Dentre as quatro informações básicas de que precisaríamos à nossa pesquisa preliminar, a naturalidade do autor é certamente a mais difícil de ser confirmada. O ideal seria que nós soubéssemos a naturalidade de quem escreve para constatarmos se há interferência do Português Europeu. Um português que nasceu e cresceu em Portugal, veio para o Brasil já na juventude ou após, mesmo que escreva em solo brasileiro, possui sua linguagem sem dúvida marcada por traços do Português dos nossos colonizadores. Em casos como o do próprio Pe. Antonio Vieira, porém, sabemos que sua naturalidade é portuguesa, mas que ele veio ainda no início da infância para o Brasil (aos seis anos de idade), ou seja, recebendo, ainda em fase de aquisição lingüística, a linguagem da América Portuguesa. Mais que isso, seus estudos e formação religiosa iniciados no Brasil alcançaram sua fase madura. Enfim, pode-se dizer que Vieira pode ser, portanto, lingüisticamente considerado um brasileiro. Mas o fato é que, salvo em casos raros de autores como Vieira que, por sua notoriedade, têm sua biografia bastante conhecida, ninguém escrevia textos com o cabeçalho indicando “autor brasileiro” ou “autor nascido e criado em Portugal”. Assim sendo, a maneira mais comum de se descobrir a naturalidade de um determinado autor era através do cruzamento de informações indiretas, como enciclopédias, livros de genealogia, dicionários de famílias, etc. Além disso, era também bastante útil cruzar informações em certidões de batismo e de óbito do local e da época em que supostamente viveu o autor, indicações geralmente guardadas nas cúrias e mitras diocesanas, sedes oficiais da Igreja Católica de cada município brasileiro.
Conclusão
Como vimos, não é tarefa fácil elaborar um bom catálogo de fontes colhidas em arquivos históricos. Dentro da mencionada “cadeia de qualidade” (levantar e catalogar fontes, editar essas fontes para delas levantar dados de cada fenômeno lingüístico em foco e, ao fim publicar os resultados em artigos, atas, etc.), hoje o nosso trabalho estaria na fase de catalogar as fontes já levantadas/reunidas. A princípio, editaremos uma versão preliminar apenas com poucos documentos comentados. Essa versão preliminar será entregue à Biblioteca Nacional e já poderá ser consultada por pesquisadores que tenham interesse em material desse tipo. Futuramente, pretendemos organizar gradativamente versões que comentem cada vez um número maior de documentos. Colocaríamos a disposição, por exemplo, uma primeira edição com cerca de 10% dos manuscritos estudados exaustivamente, em seguida uma segunda edição com 15%... e assim sucessivamente. O fato é que comentar 100% do corpus do catálogo talvez seja um trabalho que não caiba nem mais a nós do PHPB. Se resolvêssemos esperar comentar todo o material para só então publicá-lo, a comunidade acadêmica teria de ficar sem essa fonte de consulta por mais décadas e décadas. Abrir documento por documento, descrevendo cada fonte e estimulando cada problema (se houver) de cópia, datação, etc... é o ideal que todos nós desejaríamos alcançar, mas que infelizmente demandaria uma vida inteira de trabalho e a pesquisa não pode esperar.
A solução é, portanto, oferecer o todo ao menos catalogado (com recortes) e alguns documentos trabalhados que sirvam como “guia”, “modelo”, “manual” de preocupações/procedimentos do usuário para lidar com todos os materiais que lhe caiam em mãos.
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