Revendo
alguns
conceitos
sobre
a
constituição
histórica
do
português
brasileiro
Ricardo
Tupiniquim
Ramos (UNEB/FABES/ISEC)
Descoberto
em
1500, o Brasil
só
começou a
ser
efetivamente
colonizado
cerca
de 30
anos
depois.
Assim,
com
a
chegada
dos
primeiros
colonos,
o
português
começou a
ser
transplantado
para
cá.
Antigamente
cria-se
que
a
maioria
dos
colonos
para
cá
enviados
nessa
época
tivessem
origem
na
região
Sul
de Portugal.
Contudo,
descobertas
documentais
mais
recentes
mostram
que
os
primeiros
portugueses a se estabelecerem no Brasil provinham de todas as
regiões
de Portugal.
Já
que
provas
documentais
são
incontestes,
como
se explica o
fato
de o
português
brasileiro
atual
tanto
se
aproximar
dos
falares
setentrionais
portugueses? A
resposta
não
é
tão
complicada. Inseridos numa
realidade
em
que
teriam de
conviver
com
línguas
totalmente
diversas da
sua,
os
colonos
portugueses, tacitamente, eliminaram de
sua
fala
os
traços
característicos
de
seus
dialetos
regionais,
utilizados
apenas
em
ambiente
doméstico.
Da
eliminação
desses dialetismos, resultou
um
idioma
comum
bastante
semelhante
aos
falares
lusitanos
do
sul,
que
passou a
sofrer
a
influência
dos aloglotas
ameríndios
e
africanos.
As primeiras
proposições
sobre
a
constituição
histórica
do
português
do Brasil
são
elaboradas
pelos
defensores
da
teoria
dos
substratos
lingüísticos.
Eles
se referem a uma
situação
inicial
de adstrato
entre
a
língua
lusa e o Tupi-antigo,
que
se estendeu
por
todo
o
século
XVI
até
cerca
de
meados
do
século
XVIII,
época
em
que,
graças
ao
aumento
de migrantes portugueses
para
a
colônia
e a
entrada
maciça
de
escravos
negros
africanos
para
o
trabalho
nas
lavras
auríferas e diamantinas mineiras, entrou
em
gradativo
declínio
até
extinguir-se no
final
desse
século,
deixando,
contudo,
marcas
indeléveis
na
toponímia
e
principalmente
no
léxico
da
fala
popular
brasileira.
Assim,
para
esse
autor,
o
português
aprendido no Brasil
por
índios
e
africanos
teria formado uma
espécie
de semi-crioulo
que,
a
partir
do
século
XVIII,
graças
aos
já
referidos
declínio
da
língua
geral
indígena
e
aumento
de contigentes populacionais lusos migrantes
para
o Brasil e do
número
de
cidades,
à
integração
mameluca
à
sociedade
branca
e,
vale
dizer,
segundo
esse
autor,
ao
avanço
da escolarização, foi
lentamente
caindo
em
desuso, dando
lugar,
salvo
em
variantes
interioranas, a
um
português
polido,
uniforme
e
unitário.
Também
Câmara Jr. acredita,
inicialmente, numa crioulização
prévia do
português do Brasil
devida ao
influxo
africano na
língua
aqui
falada, cujas
marcas permaneceram na
estrutura
fonológica e
gramatical do
português
popular
brasileiro
interiorano, ao
lado de
arcaísmos portugueses.
Assim
ele afirma:
...a
língua
comum se
enriqueceu na
época do
bilingüismo
português-tupi e do
português
crioulo
dos
escravos
negros. (...)O
problema do
português
popular e
dialetal no Brasil é,
naturalmente,
outro. Nele
podem
ter atuado
substratos
indígenas,
não
necessariamente,
Tupi, e os
falares
africanos, na
estrutura
fonológica e
gramatical. (Câmara
Jr. 1979:30-1)
Posteriormente,
contudo,
ele
muda
de
opinião,
passando a
considerar
os
crioulos
elementos
eliciadores de uma
deriva
lingüística
interior
ao
sistema
e
dormente
(cf.
Câmara
Jr. 1972).
Estudos
mais
recentes
da
interação
lingüística
afirmam a
total
irrelevância
da tricotomia
substrato/adstrato/superestrato
para
o
conhecimento
do
fenômeno
por
tratar
tão
somente
de
sua
realidade
exógena.
Atualmente,
o
que
realmente
importa
para
a
compreensão
dos
processos
interativos
entre
sistemas
lingüísticos
distintos
e do
bilingüismo
é o
tempo
de
duração
do
contato
que,
em
última
análise,
aliado
a
fatores
sócio-históricos
múltiplos,
é o
determinante
da
maior
ou
menor
penetração
intersistêmica.
Assim,
embora
quase
incontestáveis
no
momento
de
suas
formulações,
as
idéias
apontadas
por
Silva
Neto
(1957) e
Câmara
Jr. (1979) carecem duma
revisão
à
luz
desses
preceitos
teóricos
mais
recentes,
que
as alargue e atualize.
Quanto à
compreensão da
situação
lingüística do Brasil-Colônia,
um
conceito a
ser reformulado é o de
língua
geral,
realidade
inexistente
para o brasilíndio
até
seu
contato
com o
homem
português.
Embora houvesse a
compreensão
mútua
por
usuários de
vários
falares
costeiros de
origem
Tupi
nos
tempos pré-cabralianos, é
certo
que
ele
só assume o
caráter de koiné a
partir da
intervenção disciplinadora da
norma
gramatical e da
escrita impostas
pelos
jesuítas.
Logo,
diante disso, parece
frágil o
antes
inconteste
bilingüismo luso-tupínico do
primeiro
século da colonização portuguesa no Brasil,
já
que outras
línguas eram faladas
em
todo o
país.
Em
verdade, havia
um
multilingüismo luso-ameríndio,
ainda
hoje
vivo
em
alguns
recantos do
país.
Embora o
Tupi tenha sido, de
fato, a
mais
importante
língua
indígena
brasileira do
período colonial,
devido à
superioridade numérica de
seus utentes e à
extensão do
seu
domínio,
não foi a
única a
ser
alçada à
categoria de koiné,
pois,
para
travar
contatos
em
regiões
pequenas do
território,
com
silvícolas de
matiz cultural
distinta da
Tupi, os portugueses aprenderam outras
línguas,
como a Kariri,
que
também teve
gramática e
catecismos
escritos
por
um
jesuíta no
século XVII.
Também perderam-se
vários
outros
documentos
importantes
escritos
em
Tupi,
dois
dicionários,
um da
língua Maromimim
ou Guarulho e
um da
língua Kariri, e
sete
catecismos
escritos
em
línguas amazônicas
pelo
Padre Antônio Vieira.
Segundo Houaiss (1985:50),
Em quaisquer
casos de
línguas
gerais,
ocorria
já
não diglossia,
mas o
bilingüismo:
cada
grupo
indígena –
assim
como
cada
grupo
africano
ou
português
conexo –
mantinha
sua
língua
para
comunicação
intragrupal e usava a
língua
geral
para a
comunicação
intergrupal –
mormente
quando
um dos
interlocutores
fosse
português
ou
seu
descendente.
É
também Houaiss (1985)
que propõe o
seguinte
quadro descritivo da
intercomunicação
lingüística no Brasil quinhentista,
feito a
partir da
perspectiva da
língua portuguesa.
Segundo
ele, havia:
1)
grupos lusófonos
muito minoritários,
cuja
práxis
lingüística,
em
português,
já foi mencionada;
2)
grupos interlinguageiros de
relações
entre aborígenes e
colonos,
com
base na
língua
geral
costeira
ou
qualquer
outra, mediado
ou
não
pelos
línguas;
3)
grupos interlinguageiros de
relações
entre aborígenes e aborígenes,
com
base na
língua
geral
costeira
ou
qualquer
outra;
4) as
entradas,
que utilizavam
inicialmente os
línguas,
mas,
após as reduções, impunham aos
índios escravizados a
língua
geral
costeira
ou
um
rudimentar
falar de
intercurso de
base portuguesa.
De
tudo
isto, conclui-se
que o Tupi-antigo convivia
com outras
línguas de
menor
alcance e
número de utentes e competia lingüisticamente
com o
português numa
relativa
superioridade de
condições, a
ponto de
ser
conhecido na Europa
por a
língua
brasílica.
Sobre a
vivacidade do
intercâmbio
lingüístico luso-tupi
em
São Paulo,
que pode
ser
entendido numa
perspectiva
mais
ampla,
para a
maior
parte do
país, o
padre Antônio Vieira (apud
Silva
Neto 1986:51) deixou
para a
posteridade o
seguinte
testemunho
em
meados do
século XVII: “as
famílias dos portugueses, e
índios
em
São Paulo estão
tão
ligadas
hoje umas
com as outras,
que (...) a
língua
que nas ditas
famílias se
fala, é a dos
índios, e a Portuguesa a
vão os
meninos
aprender à
escola”.
Isto confirma a afirmação de Houaiss (1985:49) de
que, nessa
época, “como
língua
falada, o (...)
português
tinha
caráter de insularidade
nos
centros
urbanos
emergentes”,
que se constituíam
não
só
como
ilhotas lusófonas e, num
sentido
mais
amplo, culturais lusitanas.
Contudo,
saindo
posteriormente
de
São
Paulo
para
realizar
seu
apostolado
no Maranhão, o
próprio
Vieira (1940:423-6) dá o
seguinte
testemunho
do
início
do
declínio
da
língua
geral
da
costa
já
no
fim
do
século
XVII:
Quão
praticada fosse a [língua]
do Brasil nessa
província,
bem
o testifica a
primeira
arte
ou
gramática
dela, de
que
foi
autor
e
inventor
o
grande
Anchieta(...)
Bem
o testificam as outras
que
depois
saíram
mais
abreviadas, e os
vocabulários
tão
copiosos,
e o
catecismo
tão
exato.
(...)
Sobretudo
o testifica o
mesmo
uso
de
que
nos
lembramos os
velhos,
em
que
a
nativa
língua
portuguesa
não
era
mais
geral
entre
nós
do
que
a
brasílica.
(...)
Isto
é o
que
alcancei,
mas
não
é
isto
o
que
vejo
hoje,
não
sei se
com
maior
sentimento,
ou
maior
admiração.
(...) E
que
direi
eu
ao
Colégio
da Bahia,
ou
o
que
me
dirá
ele
a
mim,
quando
nessa
comunidade
é
já
tão
pouco
geral
a
língua
chamada
geral
do Brasil,
que
são
muito
contados
aqueles
em
que
se
acha.
Quanto
às
causas
do
declínio
da
língua
geral
indígena
no Brasil pós-meso-seiscentista, é
razoável
que
se coloquem, ao
lado
do
maior
fluxo
migratório
português,
a
assimilação
de
parte
dos
índios,
a
sua
sensível
diminuição,
quer
pelo
extermínio,
quer
pelo
rechaçamento dos não-assimilados
para
o
interior,
e a
integração
do
mameluco
à
cultura
branca,
que
lhe
representava
um
meio
de
ascensão
social.
Além disso,
como
língua de
Estado, ensinada na
escola às
novas
gerações, o
português foi,
paulatinamente, ganhando
terreno
em
relação
ele,
mesmo
durante os
anos da
União
Ibérica (1580-1640),
mormente nas
áreas
mais próximas ao
centro político-administrativo da
colônia, a Bahia,
onde a
imigração de reinós passou a
ser
maior e
mais
constante.
Em
relação
às
línguas
africanas,
não
se pode
saber
quantas e
quais
ingressaram no Brasil
desde
o
início
do
tráfico
negreiro, no
período
colonial,
até
sua
abolição,
já
na
época
do
Império.
Contudo,
sabe-se
que,
pelo
menos
antes
da
proibição
do
tráfico,
em
1851,
era
prática
comum
não
embarcarem
nos
negreiros
falantes
de uma
mesma
língua
ou
dialeto.
Portanto,
imagina-se
que
para
cá
foram transplantados inúmeras
línguas
e
dialetos
africanos,
dos
quais
se sabe genericamente serem dos
troncos
bantu e sudanês.
Novo
elemento
étnico-lingüístico do Brasil
já
a
partir
de 1532,
mas
mais
maciçamente
em
meados
de 1600, o
negro
era
também
heterogêneo,
na
medida
que
os
africanos
introduzidos no
país
pertenciam a
grupos
humanos
diversos,
falantes
de
idiomas
vários,
que
se misturavam
primeiramente
nos
porões
dos
navios
negreiros e
depois
nas
senzalas
das
fazendas.
Nesse
contexto
de multidiversidade
lingüística
africana,
eles
tiveram de
desenvolver
entre
si
um
falar
de
intercurso
e,
para
se
comunicar
com
o
resto
da
nova
sociedade
também
multilíngüe
em
que
foram inseridos
como
mão-de-obra
bruta,
acabaram
também
por
aprender
a koiné
indígena,
que
se enriqueceu.
Por
mais
falaciosas
que
hoje
pareçam,
até
mais
ou
menos
as
décadas
de 40 e 50 do
século
passado,
eram
comuns
declarações
preconceituosas
acerca
das
diferenças
entre
a
língua
falada
no Brasil e a
sua
matriz
portuguesa,
mesmo
entre
os
estudiosos.
A
título
de
ilustração,
assim
caracteriza Barreto (1980:357) a
variedade
brasileira
de
português:
“A
língua
portuguesa no Brasil é
diferente
e errada,
mal
falada,
em
relação
à
falada
em
Portugal, e
alguns
fatos
dessa
imperfeição
se devem ao
contato,
aqui
havido,
com
os
idiomas
africanos
e
indígenas”.
O
que
normalmente
mencionam os
compêndios
didáticos
universitários
desse
tempo,
como
Mansur Guérios (1942) e Silva
Neto
(1957),
sobre
o
papel
das
línguas
ameríndias e africanas na
constituição
do
português
brasileiro
normalmente
se resume à
citação
da
presença
de
nomes
da
flora
e da
fauna
nativas, de
alguns
costumes,
usanças
sociais
e
elementos
do
folclore,
e à
indicação
de
determinados
fatos
de
natureza
estrutural existentes,
principalmente,
no
padrão
popular
e/ou
regional
do
português
brasileiro,
como,
por
exemplo,
a
tendência
à
ausência
de
flexão
pessoal
nos
tempos
verbais,
a
duplicação
negativa
e a supressão de
consoantes
finais
das
palavras.
A
tendência
dessa
época
era
justamente
a de
atribuir
as
diferenças
entre
a
norma
lingüística
portuguesa e a
brasileira
aos
contatos
aqui
havidos, no
período
colonial,
com
as
línguas
ameríndias e africanas.
Aí
estariam a
origem
dos
fenômenos
próprios
do
português
não-padrão
brasileiro,
que
seria
um
falar
tosco
e
rude,
comparado ao
purismo
lingüístico
registrado no
português
lusitano.
O
preconceito
dos
estudiosos
dessa
época
contra
a
condição
subdesenvolvida
do
brasileiro,
fruto
de
séculos
de
exploração
colonial e neocolonial, teve
como
conseqüência
um
erro
de
natureza
teleológica
nos
trabalhos
então
publicados,
em
que
os
autores
comparavam corpora extraídos da
fala
rural
brasileira
com
corpora advindos da
literatura
portuguesa.
Caso
comparassem os
falares
rurais
portugueses –
sobretudo
os da
zona
de arcaização do
norte
do
país
–
com
os
falares
rurais
brasileiros,
perceberiam
certas
semelhanças
que
não
os permitiriam
fazer
declarações
tão
pouco
científicas e
tão
depreciativas da
variedade
de
português
falada
em
seu
próprio
país.
Hoje,
contudo,
as
distinções
entre
as subnormas
lusitana
e
brasileira
da
língua
portuguesa
são
explicadas
pelo
fato
de,
nos
dois
países,
a
língua
obedeceu a
distintos
condicionamentos sócio-históricos,
entre
os
quais
se incluem,
sem
dúvida,
os
contatos
etno-lingüísticos
entre
os colonizadores
europeus
e
africanos
e as
populações
autóctones,
no
início
da
história
brasileira,
vindo a
tomar
caminhos
evolutivos
diferentes,
todos
já
previstos
na
própria
deriva
românica
(como
comprova a comparação
com
outras
línguas
neolatinas
em
que
ocorreram
fenômenos
análogos).
Assim,
por
exemplo,
–
embora
algumas dessas lexias estejam
também
presentes
no
português
lusitano
–,
Chaves
de Melo (1971) pretende
ver
um
influxo
africano
e
ameríndio
no
vocabulário
do
português
brasileiro,
esse
mais
horizontal
–
ou
seja,
presente
em
vários
grupos
semânticos
de
todos
os
falares
regionais
e
sociais
brasileiros
–;
aquele,
mais
vertical
–
ou
seja,
específico
de
alguns
grupos
semânticos
e
extensivo
a
poucos
falares
regionais
e
sociais
brasileiros.
Por
várias
razões,
o
vocabulário
brasileiro
de
origem
africana
é
estudo
difícil:
·
inicialmente,
não
se sabe ao
certo
quantas e
quais
foram as
línguas
africanas transplantadas
para
o Brasil ao
longo
entre
os
séculos
XVI e XIX,
porque
os
registros
referentes
ao
tráfico
negreiro existentes à
época
da
abolição
foram destruídos ao
que
se diz,
por
ordem
de Rui Barbosa,
que
pretendia,
com
esse
ato,
apagar
da
história
do Brasil o
flagelo
da
escravidão;
·
além
disso, a
herança
africana
à
variedade
brasileira
de
português
sempre
sofreu
um
preconceito
muito
maior
do
que
a
herança
indígena
por
parte
de
nossa
academia,
essencialmente
eurocentrista, de
forma
que
os
estudos
existentes
são
sempre
muito
genéricos
e se referem a
marcas
vocabulares esparsas, muitas
vezes
restringindo-as a determinadas
áreas
semânticas,
as
mais
afeitas à
herança
cultural
africana
no Brasil;
·
somadas as duas
razões
acima
aludidas, têm-se a
terceira,
a
grande
incerteza
sobre
a
língua
de
origem
de
alguns
vocábulos
e
expressões
seguramente
africanos;
muitos
dicionários
fazem
referência
apenas
a uma
origem
africana;
outros
apontam
com
certa
insegurança
grupos
lingüísticos
–
sobretudo
o bantu (línguas
kibundo, kokongo, imbundo) , o
assim
chamado sudanês (língua
nagô
ou
iorubá,
língua
ewe
ou
fon).
Talvez
por
causa
disso, os
dicionários
históricos
e
etimológicos
do
português
publicados no Brasil declarem-se
tão
duvidosos
e
entre
si
contraditórios
na
proposição
de
étimos
ou
significações de
palavras
de alegada
origem
africana.
Quanto
ao
vocabulário
brasileiro
procedente
das
línguas
nativas, os
problemas
também
são
muitos.
Inicialmente,
porque
a
maioria
delas foi
extinta
sem
ser
ao
menos
registrada. Algumas chegaram a
ser
(em
parte)
documentadas,
como
a
língua
Kariri,
já
mencionada. Disso resulta, mutatis mutandis, a
mesma
dificuldade
encontrada
para
a
determinação
da alegada
ameríndia
de outras
formas.
Para
discutir os
efeitos na
formação de
falar(es)
crioulo(s) da
inserção do
negro no
complexo
cenário de
línguas e
culturas do Brasil-Colônia, convém
tentar estabelecer-lhe a
atual
amplitude
terminológica, a
partir de uma
definição de
meados deste
século: “Dá-se o
nome
técnico de ‘dialeto
crioulo’ aos
aspectos
locais de
línguas de
civilização transplantadas,
que se distinguem
por uma
extrema simplificação do
mecanismo
gramatical e
impregnação, no reduzido
vocabulário, de
palavras
indígenas”. (Chaves de
Melo, 1971:70)
Contemporaneamente,
contudo,
considera-se o
crioulo
“uma
língua
que
nasce
em
circunstâncias
sociolingüísticas
especiais
que
conduzem à
aquisição
de uma L1,
com
base
em
um
modelo
defectivo
de L2” (Baxter & Lucchesi 1997:69). Essas
condições
sociolingüísticas
especiais
surgem do
processo
colonizador e
escravocrata
europeu
imposto
a uma
população
que,
num
primeiro
contato
com
a
língua
de
dominação,
lhe
adquire
um
padrão
irregular,
um
jargão
ou
um
pidgin,
respectivamente,
uma
língua
rudimentar
composta
de uma
parcela
de
itens
lexicais
aloglóticos adaptados às
estruturas
das
línguas
maternas dos
falantes,
e
um
jargão
cristalizado. Expostas às
línguas
nativas de
seus
pais
e a essa L2, a
segunda
geração
a
partir
do
contato,
em
detrimento
daquela, optará
por
essa,
devido
a
sua
maior
viabilidade
social
e,
apesar
de
sua
variabilidade e incompletude
em
relação
à
língua
européia, logrará
êxito
em
elaborar
formal
e
funcionalmente
sua
língua
nativa,
crioula.
Consoante
essa
teoria
atualizada do
processo
de crioulização, pode-se
especular
que
o multivariado
quadro
lingüístico
existente no Brasil
antes
mesmo
da
chegada
do
negro
já
apontava a possibilidade de
formação
não
de
um
crioulo
homogêneo
em
todo
o
território
colonial,
mas
de
vários
crioulos
leves
ou
semi-crioulos,
processo
esse
favorecido
mais
ainda
pela
inserção
do
negro
nesse
contexto.
Contudo, a
tese da crioulização
prévia do
português do Brasil
não é unanimemente aceita
entre os
estudiosos. Scherre e Naro (2000) afirmam
que os
fatos das
falas de
comunidades negras isoladas brasileiras apontados
como
resquícios de
falares
crioulos
anteriormente existentes encontram-se
também registrados
em
variedades
populares do
português
lusitano, o
que demonstraria a
inconsistência da
tese da crioulização
prévia do
português
brasileiro.
Apesar da
força dos
argumentos de
ambos os
grupos de
cientistas, nenhuma das
correntes –
nem a defensora
nem a contestadora da crioulização
prévia do
português
brasileiro –, dispõe de
dados
definitivos
acerca do
que afirmam.
Assim,
pelo
menos
por
hora, o
mais
razoável é
admitir uma
posição conciliatória: o
português introduzido no Brasil no
século XVI encontrou
por
aqui
um
cenário de
multilingüismo
ameríndio, –
posteriormente enriquecido
com o
advento de
um
multilingüismo
africano –,
que facilitou (graças
a
tendências
já
latentes na
própria
língua lusa
para a
existência de
variedades marcadas
pela simplificação das
formas e do
uso das
categorias
gramaticais), a
formação
não de
um,
mas de
vários
crioulos ao
longo do
território
brasileiro,
extintos,
sobretudo a
partir do
século XVIII,
mas
que deixaram
traços perceptíveis nas
falas de
comunidades negras
até
muito
recentemente isoladas e podem
ter deixado corroborado
para a
existência e a
fixação de
alguns
traços
próprios de
certas
variedades estigmatizadas do
português do Brasil.
O
declínio
da
língua
geral
indígena
e a descrioulização dever-se-iam
não
aos
fatores
alegados
pela
geração
de
estudiosos
da
década
de 1950: uma
superioridade
intrínseca
à
língua
portuguesa,
ou
à
sua
tradição
literária
ou
status
de
meio
de
comunicação
de uma alegada
cultura
superior,
ou
ao
avanço
da escolarização;
mas
sim
a
fatores
sócio-históricos
diversos
e amalgamados
em
torno
de
um
só:
no
período
colonial
brasileiro,
o
português
era
língua
de
Estado,
língua
de
dominação.
Nesse
sentido,
diante da
realidade sincrônica
brasileira de
um analfabetismo
real
ou
funcional generalizado,
que atinge,
malgrado o floreio das
estatísticas
oficiais,
grande
parte da
população
brasileira, soa
ingênua, romântica e
descuidada a assertiva de
ter contribuído o
avanço da escolarização
para o desuso da koiné tupínica no Brasil. Se,
segundo
Ribeiro (1995), o
índice de
letrados no Brasil,
era de 2% no
início do
século XIX e de 6% no
final do
mesmo
século, pode-se
imaginar
que nas
centúrias
anteriores
era
tendente a
zero.
Como o desuso da
língua
Tupi
já podia
ser verificado,
conforme
exposto
anteriormente,
pelo
menos
um
século
antes, conclui-se
que o alegado
avanço da escolarização
não foi
causa preponderante
para o
declínio do
Tupi.
Reforçam
esse
argumento
três
fatos
de
natureza
histórica.
Primeiramente,
era
comum
aos
filhos
de
brasileiros
ilustres
no
período
colonial, e
mesmo
após
a
independência,
viajar
para
cumprir
curso
superior
na
Metrópole,
onde
tinham
contato
com
a
tradição
literária.
Além
disso,
até
pelo
menos
as reformas pombalinas do
século
XVIII, nas
escolas
brasileiras, mantidas,
via
de
regra,
por
jesuítas,
ensinava-se
mais
o
latim
que
o
próprio
português,
conforme
o
seguinte
testemunho
da
época:
No
tempo
em
que existiam
os
extintos
Jesuítas,
incumbidos
então de todas
as
escolas
menores (...),
havia
nos
Gerais do
Colégio desta
cidade
sete
classes (...).
Na
primeira das
sete
mencionadas
classes se
ensinava
gramática portuguesa,
desta passavam os
meninos a
aprender na
segunda os
primeiros
rudimentos da
língua
latina,
estudavam
sintaxe, e
sílaba na
terceira
classe, da
qual passavam
para a
quarta
onde aprendiam
a
construção da
mesma
língua, e
retórica,
tal
qual
então se
ensinava. Na
quinta a
matemática; na
sexta
filosofia, e
na
sétima se
ensinava
teologia
moral.
(Vilhena 1969:273-4)
Com
base
em
todos
esses
fatores, Houaiss (1985) propõe
um
novo
quadro
esquema
para a
intercomunicação
lingüística no Brasil seiscentista,
em
que houve:
1)
um
aumento da lusofonia, sustentada
pela
imigração
relativamente intensificada e
pela
descendência,
já
que,
para o
mestiço,
sobretudo o
habitante dos
incipientes
centros
urbanos
emergentes, a
língua portuguesa passara a
representar
meio de
ascensão
social;
2) a
prática
intensiva da
língua
geral do
Sul ao
Nordeste do
país
por
grupos interlinguageiros de
relações
entre aborígenes,
colonos portugueses e
escravos
africanos;
3)
contatos interlinguageiros
novos e
efêmeros de
relações
entre aborígenes e portugueses,
com
base
em
línguas
gerais distintas da
costeira e
em
geral extintas
até o
início do
século XVIII.
O
século XVIII presenciou a
penetração da colonização
para o
interior e o
ciclo minerativo.
Com a
febre de
ouro, fundaram-se
vilas e
cidades
em
pontos
distantes do
litoral e os
indígenas foram,
gradativamente, empurrados
ainda
mais
para as
regiões inóspitas e
ainda não-conquistadas do
Planalto
Central
ou exterminados pelas
guerras
ou pelas
epidemias. O
início dessa
centúria foi
também a
época das
missões
jesuítas e
bandeirantes nas
bacias do
Paraná e do
Prata, ao
sul, e a
sua
segunda
metade, a
vez da
conquista da
bacia
amazônica, ao
norte.
O
caminho
bipartido
que
tomou o Tupi-antigo acabou gerando duas
variedades
de
língua
geral:
a do
sul
ou
Tupi-austral,
denominação
do naturalista von Martius, e a do
norte.
Com
base
no
Tupinambá
vicentino,
a
variedade
austral
avançou
rumo
ao
interior
dos
atuais
Estados
paulista,
paranaense,
goiano
e (sul)matogrossense,
atingindo o Paraguai,
onde,
em
contato
com
outros
falares
homogênicos e
com
o
espanhol,
confundiu-se
com
o Guarani-antigo,
base
do
idioma
vernáculo
ainda
hoje
falado,
em
situação
de adstrato
com
a
língua
de colonização daquele
país.
Apesar
de
ter
sido o
veículo
de
entrada
da
incipiente
colonização da
região
das
Minas
Gerais,
a
língua
geral
do
sul
foi
logo
eliminada da
região,
devido
ao acentuado
...
desenvolvimento
urbano
(...) e da
força
da mineração no
conjunto
da
economia,
assentada no
uso
do
escravo
africano.
Os
índios,
na
região
mineradora, foram sendo massacrados e empurrados
progressivamente
para
além
das
fronteiras
da
ocupação
lusitana.
(Dick & Seabra 2001)
A
variedade
nortista desenvolveu-se a
partir
da
ação
colonizadora na
bacia
amazônica,
iniciada
pela
conquista
do Maranhão e concluída
por
portugueses e
luso-brasileiros
até
o
século
passado.
Aí
fixada
também
pelas
missões
religiosas,
era
ainda
falada
na
região
norte
pelos
idos
da
década
de 1940, numa
forma
evoluída denominada Nheengatu,
como
língua
materna
da
população
cabocla,
como
língua
franca
entre
índios
e não-índios e
entre
índios
de
grupos
distintos.
Não
há
trabalhos
recentes
que
registrem o
uso
dessa
variedade
moderna
de
Tupi.
Segundo
Ribeiro
(1995), o
trabalho
catecúmeno,
civilizador e
aparentemente
humanitário
dos inacianos nessas
áreas
fracassou
devido
à
oposição
frontal
da
ordem
à
escravidão
indígena
e às
enfermidades
trazidas
pelos
brancos,
que
se tornavam
epidemias,
algumas
naturais,
outras provocadas,
como
as de
varíola,
ocorridas
em
1562,
que
aniquilaram os
índios
da
ilha
de Itaparica, na
Baía
de
Todos
os
Santos.
Dois
outros
fatores de
relevância
para o
extermínio e o encurralamento dos
nossos
silvícolas e de
sua
cultura foram a
legislação
pombalina publicada a
partir de 1727 (que culmina
com a
criação de
um
Diretório
em 1757, tornando
obrigatório o
uso da
língua portuguesa nas
províncias do
Pará e do Maranhão,
posteriormente ampliado
para a
toda
colônia), e,
em 1759, a
expulsão
definitiva dos
jesuítas,
paradoxalmente os
maiores
defensores e aculturadores dos
índios.
Apesar das várias
objeções ao
Diretório,
ele foi
efetivamente aplicado e,
quando da
sua
abolição
por uma
Carta
Régia de 1798, o
português
já se havia
imposto
em
regiões brasileiras tipicamente
Tupi.
Nos
dizeres de Araújo (2001), “a
política do
idioma executada
pelo
Marquês de
Pombal resultou na
consolidação da
língua portuguesa na América”.
Apos a
emancipação
política, as
políticas
lingüísticas do
Estado
brasileiro
em
relação às outras
línguas do Brasil, seja no
período imperial, seja no republicano, foram
sempre no
sentido de
oficializar
um
discurso
em
torno do
idioma
português, considerado
língua
nacional
por todas as
Constituições,
desde a Imperial (1824)
até a da
época dos
Generais
Presidentes (1967), a
despeito da
existência de inúmeras
línguas
indígenas e de
língua várias de
emigração (própria das
comunidades de
imigrantes
estrangeiros ingressas no Brasil
sobretudo a
partir da
abolição da
escravatura).
O
advento da
Constituição vigente de 1988 abriu outras
possibilidades
para as
línguas minoritárias faladas no Brasil,
visto
que essa
Carta
Magna atribui ao
português o
caráter de
idioma
oficial do Brasil;
assim, o
Estado reconhece a
existência de
brasileiros
que
não têm
como
língua
materna o
português e,
por
conseguinte, o
direito de
eles serem escolarizados
também
em
suas
línguas.
Apesar do
avanço da
lei, as
políticas públicas nesse
sentido
pouco avançaram;
igualmente, os
esforços de
nossa
academia nessa
direção têm sido
muito
tímidos,
principalmente no
que se refere ao
estudo das
línguas
indígenas
ainda faladas
que,
por
mais
que sirvam
para
exemplificar e
testar
teorias
lingüísticas
alienígenas,
não têm,
salvo raríssimas
exceções,
sua
descrição
gramatical e
seu
vocabulário dicionarizado,
pontos
esses
essenciais
para a
construção de
material
didático
para alfabetização e escolarização nessas
línguas.
Esperamos ao
longo dessa
exposição
ter contribuído
para a
revisão de
alguns
aspectos
relativos à
constituição
histórica do
português
brasileiro
que necessitam de
urgente
revisão
nos
meios
acadêmicos,
revisão
que
não
só atualize
como
também amplie o
espectro dessas
discussões.
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