Revendo alguns conceitos
sobre a constituição histórica
do
português brasileiro

Ricardo Tupiniquim Ramos (UNEB/FABES/ISEC)

 

Descoberto em 1500, o Brasil começou a ser efetivamente colonizado cerca de 30 anos depois. Assim, com a chegada dos primeiros colonos, o português começou a ser transplantado para . Antigamente cria-se que a maioria dos colonos para enviados nessa época tivessem origem na região Sul de Portugal. Contudo, descobertas documentais mais recentes mostram que os primeiros portugueses a se estabelecerem no Brasil provinham de todas as regiões de Portugal.

que provas documentais são incontestes, como se explica o fato de o português brasileiro atual tanto se aproximar dos falares setentrionais portugueses? A resposta não é tão complicada. Inseridos numa realidade em que teriam de conviver com línguas totalmente diversas da sua, os colonos portugueses, tacitamente, eliminaram de sua fala os traços característicos de seus dialetos regionais, utilizados apenas em ambiente doméstico. Da eliminação desses dialetismos, resultou um idioma comum bastante semelhante aos falares lusitanos do sul, que passou a sofrer a influência dos aloglotas ameríndios e africanos.

As primeiras proposições sobre a constituição histórica do português do Brasil são elaboradas pelos defensores da teoria dos substratos lingüísticos. Eles se referem a uma situação inicial de adstrato entre a língua lusa e o Tupi-antigo, que se estendeu por todo o século XVI até cerca de meados do século XVIII, época em que, graças ao aumento de migrantes portugueses para a colônia e a entrada maciça de escravos negros africanos para o trabalho nas lavras auríferas e diamantinas mineiras, entrou em gradativo declínio até extinguir-se no final desse século, deixando, contudo, marcas indeléveis na toponímia e principalmente no léxico da fala  popular brasileira.

Alguns desses estudiosos afirmam até ter-se iniciado a constituição de um crioulo de base portuguesa no Brasil. Entre eles está Silva Neto (1957:436-7), que expressa o seguinte conceito de crioulo:

Os crioulos são falares de emergência, com caracteres definidos e vida própria, que consistem na deturpação e simplificação extrema de uma língua, quando imperfeitamente transmitida e aprendida por gente de civilização inferior.(...) Nos crioulos vários graus de aprendizagem, pois, segundo as circunstâncias, o primitivo falar xacoco mantém-se ou é aos poucos renovado pelo sangue novo da língua européia. De geração em geração, graças sobretudo à escola, vai-se aperfeiçoando e enriquecendo a primitiva fala de emergência. (...) Daí o admitir-se a existência de um semi-crioulo, ou seja, um estágio mais aperfeiçoado da primitiva aprendizagem. Ele exemplifica-nos o choque entre o falar europeu e o crioulo. Este vai sendo, pouco a pouco, invadido por palavras e giros do falar das pessoas socialmente mais bem dotadas. O semi-crioulo encerra, pois, formas e torneios semi-cultos.

Assim, para esse autor, o português aprendido no Brasil por índios e africanos teria formado uma espécie de semi-crioulo que, a partir do século XVIII, graças aos referidos declínio da língua geral indígena e aumento de contigentes populacionais lusos migrantes para o Brasil e do número de cidades, à integração mameluca à sociedade branca e, vale dizer, segundo esse autor, ao avanço da escolarização, foi lentamente caindo em desuso, dando lugar, salvo em variantes interioranas, a um português polido, uniforme e unitário.

Também Câmara Jr. acredita, inicialmente, numa crioulização prévia do português do Brasil devida ao influxo africano na língua aqui falada, cujas marcas permaneceram na estrutura fonológica e gramatical do português popular brasileiro interiorano, ao lado de arcaísmos portugueses. Assim ele afirma:

...a língua comum se enriqueceu na época do bilingüismo português-tupi e do português crioulo dos escravos negros. (...)O problema do português popular e dialetal no Brasil é, naturalmente, outro. Nele podem ter atuado substratos indígenas, não necessariamente,  Tupi, e os falares africanos, na estrutura fonológica e gramatical. (Câmara Jr. 1979:30-1)

Posteriormente, contudo, ele muda de opinião, passando a considerar os crioulos elementos eliciadores de uma deriva lingüística interior ao sistema e dormente (cf. Câmara Jr. 1972).

Estudos mais recentes da interação lingüística afirmam a total irrelevância da tricotomia substrato/adstrato/superestrato para o conhecimento do fenômeno por tratar tão somente de sua realidade exógena. Atualmente, o que realmente importa para a compreensão dos processos interativos entre sistemas lingüísticos distintos e do bilingüismo é o tempo de duração do contato que, em última análise, aliado a fatores sócio-históricos múltiplos, é o determinante da maior ou menor penetração intersistêmica. Assim, embora quase incontestáveis no momento de suas formulações, as idéias apontadas por Silva Neto (1957) e Câmara Jr. (1979)  carecem duma revisão à luz desses preceitos teóricos mais recentes, que as alargue e atualize.

Quanto à compreensão da situação lingüística do Brasil-Colônia, um conceito a ser reformulado é o de língua geral, realidade inexistente para o brasilíndio até seu contato com o homem português. Embora houvesse a compreensão mútua por usuários de vários falares costeiros de origem Tupi nos tempos pré-cabralianos, é certo que ele assume o caráter de koiné a partir da intervenção disciplinadora da norma gramatical e da escrita impostas pelos jesuítas. Logo, diante disso, parece frágil o antes inconteste bilingüismo luso-tupínico do primeiro século da colonização portuguesa no Brasil, que outras línguas eram faladas em todo o país. Em verdade, havia um multilingüismo luso-ameríndio, ainda hoje vivo em alguns recantos do país.

Embora o Tupi tenha sido, de fato, a mais importante língua indígena brasileira do período colonial, devido à superioridade numérica de seus utentes e à extensão do seu domínio, não foi a única a ser alçada à categoria de koiné, pois, para travar contatos em regiões pequenas do território, com silvícolas de matiz cultural distinta da Tupi, os portugueses aprenderam outras línguas, como a Kariri, que também teve gramática e catecismos escritos por um jesuíta no século XVII. Também perderam-se vários outros documentos importantes escritos em Tupi, dois dicionários, um da língua Maromimim ou Guarulho e um da língua Kariri, e sete catecismos escritos em línguas amazônicas pelo Padre Antônio Vieira. Segundo Houaiss (1985:50),

Em quaisquer casos de línguas gerais, ocorria não diglossia, mas o bilingüismo: cada grupo indígena assim como cada grupo africano ou português conexo – mantinha sua língua para comunicação intragrupal e usava  a língua geral para a comunicação intergrupal – mormente quando um dos interlocutores fosse português ou seu descendente.

É também Houaiss (1985) que propõe o seguinte quadro descritivo da intercomunicação lingüística no Brasil quinhentista, feito a partir da perspectiva da língua portuguesa. Segundo ele, havia:

1) grupos lusófonos muito minoritários, cuja práxis lingüística, em português, foi mencionada;

2) grupos interlinguageiros de relações entre aborígenes e colonos, com base na língua geral costeira ou qualquer outra, mediado ou não pelos línguas;

3) grupos interlinguageiros de relações entre aborígenes e aborígenes, com base na língua geral costeira ou qualquer outra;

4) as entradas, que utilizavam inicialmente os línguas, mas, após as reduções, impunham aos índios escravizados a língua geral costeira ou um rudimentar falar de intercurso de base portuguesa.

De tudo isto, conclui-se que o Tupi-antigo convivia com outras línguas de menor alcance e número de utentes e competia lingüisticamente com o português numa relativa superioridade de condições, a ponto de ser conhecido na Europa por a língua brasílica.

Sobre a vivacidade do intercâmbio lingüístico luso-tupi em São Paulo, que pode ser entendido numa perspectiva mais ampla, para a maior parte do país, o padre Antônio Vieira (apud Silva Neto 1986:51) deixou para a posteridade o seguinte testemunho em meados do século XVII: “as famílias dos portugueses, e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que (...) a língua que nas ditas famílias se fala, é a dos índios, e a Portuguesa a vão os meninos aprender à escola”. Isto confirma a afirmação de Houaiss (1985:49) de que, nessa época, “como língua falada, o (...) português tinha caráter de insularidade nos centros urbanos emergentes”, que se constituíam não como ilhotas lusófonas e, num sentido mais amplo, culturais lusitanas.

Contudo, saindo posteriormente de São Paulo para realizar seu apostolado no Maranhão, o próprio Vieira (1940:423-6) dá o seguinte testemunho do início do declínio da língua geral da costa no fim do século XVII:

Quão praticada fosse a [língua] do Brasil nessa província, bem o testifica a primeira arte ou gramática dela, de que foi autor e inventor o grande Anchieta(...) Bem o testificam as outras que depois saíram mais abreviadas, e os vocabulários tão copiosos, e o catecismo tão exato. (...) Sobretudo o testifica o mesmo uso de que nos lembramos os velhos, em que a nativa língua portuguesa não era mais geral entre nós do que a brasílica. (...) Isto é o que alcancei, mas não é isto o que vejo hoje, não sei se com maior sentimento, ou maior admiração. (...) E que direi eu ao Colégio da Bahia, ou o que me dirá ele a mim, quando nessa comunidade é tão pouco geral a língua chamada geral do Brasil, que são muito contados aqueles em que se acha.

Quanto às causas do declínio da língua geral indígena no Brasil pós-meso-seiscentista, é razoável que se coloquem, ao lado do maior fluxo migratório português, a assimilação de parte dos índios, a  sua  sensível  diminuição quer pelo extermínio, quer pelo rechaçamento dos não-assimilados para o interior, e a integração do mameluco à cultura branca, que lhe representava um meio de ascensão social.

Além disso, como língua de Estado, ensinada na escola às novas gerações, o português foi, paulatinamente, ganhando terreno em relação ele, mesmo durante os anos da União Ibérica (1580-1640), mormente nas áreas mais próximas ao centro político-administrativo da colônia, a Bahia, onde a imigração de reinós passou a ser maior e mais constante.

Em relação às línguas africanas, não se pode saber quantas e quais ingressaram no Brasil desde o início do tráfico negreiro, no período colonial, até sua abolição, na época do Império. Contudo, sabe-se que, pelo menos antes da proibição do tráfico, em 1851, era prática comum não embarcarem nos negreiros falantes de uma mesma língua ou dialeto. Portanto, imagina-se que para foram transplantados inúmeras línguas e dialetos africanos, dos quais se sabe genericamente serem dos troncos bantu e sudanês.

Novo elemento étnico-lingüístico do Brasil a partir de 1532, mas mais maciçamente em meados de 1600, o negro era também heterogêneo, na medida que os africanos introduzidos no país pertenciam a grupos humanos diversos, falantes de idiomas vários, que se misturavam primeiramente nos porões dos navios negreiros e depois nas senzalas das fazendas. Nesse contexto de multidiversidade lingüística africana, eles tiveram de desenvolver entre si um falar de intercurso e, para se comunicar  com  o  resto  da nova sociedade também multilíngüe em que foram inseridos como mão-de-obra bruta, acabaram também por aprender a koiné indígena, que se enriqueceu.

Por mais falaciosas que hoje pareçam, até mais ou menos as décadas de 40 e 50 do século passado, eram comuns declarações preconceituosas acerca das diferenças entre a língua falada no Brasil e a sua matriz portuguesa, mesmo entre os estudiosos. A título de ilustração, assim caracteriza Barreto (1980:357) a variedade brasileira de português: “A língua portuguesa no Brasil é diferente e errada, mal falada, em relação à falada em Portugal, e alguns fatos dessa imperfeição se devem ao contato, aqui havido, com os idiomas africanos e indígenas”.

O que normalmente mencionam os compêndios didáticos universitários desse tempo, como Mansur Guérios (1942) e Silva Neto (1957), sobre o papel das línguas ameríndias e africanas na constituição do português brasileiro normalmente se resume à citação da presença de nomes da flora e da fauna nativas, de alguns costumes, usanças sociais e elementos do folclore, e à indicação de determinados fatos de natureza estrutural existentes, principalmente, no padrão popular e/ou regional do português brasileiro, como, por exemplo, a tendência à ausência de flexão pessoal nos tempos verbais, a duplicação negativa e a supressão de consoantes finais das palavras.

A tendência dessa época era justamente a de atribuir as diferenças entre a norma lingüística portuguesa e a brasileira aos contatos aqui havidos, no período colonial, com as línguas ameríndias e africanas. estariam a origem dos fenômenos próprios do português não-padrão brasileiro, que seria um falar tosco e rude, comparado ao purismo lingüístico registrado no português lusitano.

O preconceito dos estudiosos dessa época contra a condição subdesenvolvida do brasileiro, fruto de séculos de exploração colonial e neocolonial, teve como conseqüência um erro de natureza teleológica nos trabalhos então publicados, em que os autores comparavam corpora extraídos da fala rural brasileira com corpora advindos da literatura portuguesa. Caso comparassem os falares rurais portugueses – sobretudo os da zona de arcaização do norte do país com os falares rurais brasileiros, perceberiam certas semelhanças que não os permitiriam fazer declarações tão pouco científicas e tão depreciativas da variedade de português falada em seu próprio país.

Hoje, contudo, as distinções entre as subnormas lusitana e brasileira da língua portuguesa são explicadas pelo fato de, nos dois países, a língua obedeceu a distintos condicionamentos sócio-históricos,  entre os quais se incluem, sem dúvida, os contatos etno-lingüísticos entre os colonizadores europeus e africanos e as populações autóctones, no início da história brasileira, vindo a tomar caminhos evolutivos diferentes, todos previstos na própria deriva românica (como comprova a comparação com outras línguas neolatinas em que ocorreram fenômenos análogos).

Assim, por exemplo, – embora algumas dessas lexias estejam também presentes no português lusitano –, Chaves de Melo (1971) pretende ver um influxo africano e ameríndio no vocabulário do português brasileiro, esse mais horizontal ou seja, presente em vários grupos semânticos de todos os falares regionais e sociais brasileiros –; aquele, mais vertical ou seja, específico de alguns grupos semânticos e extensivo a poucos falares regionais e sociais brasileiros.

Por várias razões, o vocabulário brasileiro de origem africana[1] é estudo difícil:

·  inicialmente, não se sabe ao certo quantas e quais foram as línguas africanas transplantadas para o Brasil ao longo entre os séculos XVI e XIX, porque os registros referentes ao tráfico negreiro existentes à época da abolição foram destruídos ao que se diz, por ordem de Rui Barbosa, que pretendia, com esse ato, apagar da história do Brasil o flagelo da escravidão;

·  além disso, a herança africana à variedade brasileira de português sempre sofreu um preconceito muito maior do que a herança indígena por parte de nossa academia, essencialmente eurocentrista, de forma que os estudos existentes são sempre muito genéricos e se referem a marcas vocabulares esparsas, muitas vezes restringindo-as a determinadas áreas semânticas, as mais afeitas à herança cultural africana no Brasil;

·  somadas as duas razões acima aludidas, têm-se a terceira, a grande incerteza sobre a língua de origem de alguns vocábulos e expressões seguramente africanos; muitos dicionários fazem referência apenas a uma origem africana; outros apontam com certa insegurança grupos lingüísticos sobretudo o bantu (línguas kibundo, kokongo, imbundo) , o assim chamado sudanês (língua nagô ou iorubá, língua ewe ou fon). Talvez por causa disso, os dicionários históricos e etimológicos do português publicados no Brasil declarem-se tão duvidosos e entre si contraditórios na proposição de étimos ou significações de palavras de alegada origem africana.

Quanto ao vocabulário brasileiro procedente das línguas nativas, os problemas também são muitos. Inicialmente, porque a maioria delas foi extinta sem ser ao menos registrada. Algumas chegaram a ser (em parte) documentadas, como a língua Kariri, mencionada. Disso resulta, mutatis mutandis, a mesma dificuldade encontrada para a determinação da alegada ameríndia de outras formas.

Para discutir os efeitos na formação de falar(es) crioulo(s) da inserção do negro no complexo cenário de línguas e culturas do Brasil-Colônia, convém tentar estabelecer-lhe  a atual amplitude terminológica, a partir de uma definição de meados deste século: “Dá-se o nome técnico de ‘dialeto crioulo’ aos aspectos locais de línguas de civilização transplantadas, que se distinguem por uma extrema simplificação do mecanismo gramatical e impregnação, no reduzido vocabulário, de palavras indígenas”. (Chaves de Melo, 1971:70)

Contemporaneamente, contudo, considera-se o crioulo “uma língua que nasce em circunstâncias sociolingüísticas especiais que conduzem à aquisição de uma L1, com base em um modelo defectivo de L2” (Baxter & Lucchesi 1997:69). Essas condições sociolingüísticas especiais surgem do processo colonizador e escravocrata europeu imposto a uma população que, num primeiro contato com a língua de dominação, lhe adquire um padrão irregular, um jargão ou um pidgin, respectivamente, uma língua rudimentar composta de uma parcela de itens lexicais aloglóticos adaptados às estruturas das línguas maternas dos falantes, e um jargão cristalizado. Expostas às línguas nativas de seus pais e a essa L2, a segunda geração a partir do contato, em detrimento daquela, optará por essa, devido a sua maior viabilidade social e, apesar de sua variabilidade e incompletude em relação à língua européia, logrará êxito em elaborar formal e funcionalmente sua língua nativa, crioula.

Consoante essa teoria atualizada do processo de crioulização, pode-se especular que o multivariado quadro lingüístico existente no Brasil antes mesmo da chegada do negro apontava a possibilidade de formação não de um crioulo homogêneo em todo o território colonial, mas de vários crioulos leves ou semi-crioulos, processo esse favorecido mais ainda pela inserção do negro nesse contexto.

Contudo, a tese da crioulização prévia do português do Brasil não é unanimemente aceita entre os estudiosos. Scherre e Naro (2000) afirmam que os fatos das falas de comunidades negras isoladas brasileiras apontados como resquícios de falares crioulos anteriormente existentes encontram-se também registrados em variedades populares do português lusitano, o que demonstraria a inconsistência da tese da crioulização prévia do português brasileiro.

Apesar da força dos argumentos de ambos os grupos de cientistas, nenhuma das correntesnem a defensora nem a contestadora da crioulização prévia do português brasileiro –, dispõe de dados definitivos acerca do que afirmam. Assim, pelo menos por hora, o mais razoável é admitir uma posição conciliatória: o português introduzido no Brasil no século XVI encontrou por aqui um cenário de multilingüismo ameríndio, – posteriormente enriquecido com o advento de um multilingüismo africano –, que facilitou (graças a tendências latentes na própria língua lusa para a existência de variedades marcadas pela simplificação das formas e do uso das categorias gramaticais), a formação não de um, mas de vários crioulos ao longo do território brasileiro, extintos, sobretudo a partir do século XVIII, mas que deixaram traços perceptíveis nas falas de comunidades negras até muito recentemente isoladas e podem ter deixado corroborado para a existência e a fixação de alguns traços próprios de certas variedades estigmatizadas do português do Brasil.

O declínio da língua geral indígena e a descrioulização dever-se-iam não aos fatores alegados pela geração de estudiosos da década de 1950: uma superioridade intrínseca à língua portuguesa, ou à sua tradição literária ou status de meio de comunicação de uma alegada cultura superior, ou ao avanço da escolarização; mas sim a fatores sócio-históricos diversos e amalgamados em torno de um : no período colonial brasileiro, o português era língua de Estado, língua de dominação.

Nesse sentido, diante da realidade sincrônica brasileira de um analfabetismo real ou funcional generalizado, que atinge, malgrado o floreio das estatísticas oficiais, grande parte da população brasileira, soa ingênua, romântica e descuidada a assertiva de ter contribuído o avanço da escolarização para o desuso da koiné tupínica no Brasil. Se, segundo Ribeiro (1995), o índice de letrados no Brasil, era de 2% no início do século XIX e de 6% no final do mesmo século, pode-se imaginar que nas centúrias anteriores era tendente a zero. Como o desuso da língua Tupi podia ser verificado, conforme exposto anteriormente, pelo menos um século antes, conclui-se que o alegado avanço da escolarização não foi causa preponderante para o declínio do Tupi.

Reforçam esse argumento três fatos de natureza histórica. Primeiramente, era comum aos filhos de brasileiros ilustres no período colonial, e mesmo após a independência, viajar para cumprir curso superior na Metrópole, onde tinham contato  com tradição literária Além disso, até pelo menos as reformas pombalinas do século XVIII, nas escolas brasileiras, mantidas, via de regra, por jesuítas, ensinava-se mais o latim que o próprio português, conforme o seguinte testemunho da época:

No tempo em que existiam os extintos Jesuítas, incumbidos então de todas as escolas menores (...), havia nos Gerais do Colégio desta cidade sete classes (...). Na primeira das sete mencionadas classes se ensinava gramática portuguesa, desta passavam os meninos a aprender na segunda os primeiros rudimentos da língua latina, estudavam sintaxe, e sílaba na terceira classe, da qual passavam para a quarta onde aprendiam a construção da mesma língua, e retórica, tal qual então se ensinava. Na quinta a matemática; na sexta filosofia, e na sétima se ensinava teologia moral. (Vilhena 1969:273-4)

Enfim, um argumento irrefutável: era parquíssimo o número de unidades escolares, mesmo após a emancipação política, se comparado ao da infinitamente superior população em idade escolar. Além disso, naquela época a classe docente era desprestigiada em seus vencimentos e condições de trabalho. Confirmam o estado crítico da educação pública durante o período do Segundo Reinado (imagine ulteriormente!!) as seguintes notícias extraídas de um jornal da época:

Há no Brasil  6180 escolas públicas. (Echo Santamarense, 4(13):1, 18/06/1884, col. 3, Noticiário: Escolas)

Os professores públicos de Santa Catarina há quatro meses não recebem vencimentos. Os do Paraná se acham no mesmo caso. No Ceará os professores um ano que deixaram de receber os seus cobres. Não se pode afirmar, portanto, que seja muito animador o estado da instrução pública nessas províncias”. (Echo Santamarense, 3(221):2, 28/03/1884, col. 2, Noticiário: Classe mártir)

Com base em todos esses fatores, Houaiss (1985) propõe um novo quadro esquema para a intercomunicação lingüística no Brasil seiscentista, em que houve:

1) um aumento da lusofonia, sustentada pela imigração relativamente intensificada e pela descendência, que, para o mestiço, sobretudo o habitante dos incipientes centros urbanos emergentes, a língua portuguesa passara a representar meio de ascensão social;

2) a prática intensiva da língua geral do Sul ao Nordeste do país por grupos interlinguageiros de relações entre aborígenes, colonos portugueses e escravos africanos;

3) contatos interlinguageiros novos e efêmeros de relações entre aborígenes e portugueses, com base em línguas gerais distintas da costeira e em geral extintas até o início do século XVIII.

O século XVIII presenciou a penetração da colonização para o interior e o ciclo minerativo. Com a febre de ouro, fundaram-se vilas e cidades em pontos distantes do litoral e os indígenas foram, gradativamente, empurrados ainda mais para as regiões inóspitas e ainda não-conquistadas do Planalto Central ou exterminados pelas guerras ou pelas epidemias. O início dessa centúria foi também a época das missões jesuítas e bandeirantes nas bacias do Paraná e do Prata, ao sul, e a sua segunda metade, a vez da conquista da bacia amazônica, ao norte.

O caminho bipartido que tomou o Tupi-antigo acabou gerando duas variedades de língua geral: a do sul ou Tupi-austral, denominação do naturalista von Martius, e a do norte. Com base no Tupinambá vicentino, a variedade austral avançou rumo ao interior dos atuais Estados paulista, paranaense, goiano e (sul)matogrossense, atingindo o Paraguai, onde, em contato com outros falares homogênicos e com o espanhol, confundiu-se com o Guarani-antigo, base do idioma vernáculo ainda hoje falado, em situação de adstrato com a língua de colonização daquele país.

Apesar de ter sido o veículo de entrada da incipiente colonização da região das Minas Gerais, a língua geral do sul foi logo eliminada da região, devido ao acentuado

... desenvolvimento urbano (...) e da força da mineração no conjunto da economia, assentada no uso do escravo africano. Os índios, na região mineradora, foram sendo massacrados e empurrados progressivamente para além das fronteiras da ocupação lusitana. (Dick  & Seabra 2001)

A variedade nortista desenvolveu-se a partir da ação colonizadora na bacia amazônica, iniciada pela conquista do Maranhão e concluída por portugueses e luso-brasileiros até o século passado. fixada também pelas missões religiosas, era ainda falada na região norte pelos idos da década de 1940, numa forma evoluída denominada Nheengatu, como língua materna da população cabocla, como língua franca entre índios e não-índios e entre índios de grupos distintos. Não trabalhos recentes que registrem o uso dessa variedade moderna de Tupi.

Segundo Ribeiro (1995), o trabalho catecúmeno, civilizador e aparentemente humanitário dos inacianos nessas áreas fracassou devido à oposição frontal da ordem à escravidão indígena e às enfermidades trazidas pelos brancos, que se tornavam epidemias, algumas naturais, outras provocadas, como as de varíola, ocorridas em 1562, que aniquilaram os índios da ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos.

Dois outros fatores de relevância para o extermínio e o encurralamento dos nossos silvícolas e de sua cultura foram a legislação pombalina publicada a partir de 1727 (que culmina com a criação de um Diretório em 1757, tornando obrigatório o uso da língua portuguesa nas províncias do Pará e do Maranhão, posteriormente ampliado para a toda colônia), e, em 1759, a expulsão definitiva dos jesuítas, paradoxalmente os maiores defensores e aculturadores dos índios. Apesar das várias objeções ao Diretório, ele foi efetivamente aplicado e, quando da sua abolição por uma Carta Régia de 1798, o português se havia imposto em regiões brasileiras tipicamente Tupi. Nos dizeres de Araújo (2001), “a política do idioma executada pelo Marquês de Pombal resultou na consolidação da língua portuguesa na América”.

Apos a emancipação política, as políticas lingüísticas do Estado brasileiro em relação às outras línguas do Brasil, seja no período imperial, seja no republicano, foram sempre no sentido de oficializar um discurso em torno do idioma português, considerado língua nacional por todas as Constituições, desde a Imperial (1824) até a da época dos Generais Presidentes (1967), a despeito da existência de inúmeras línguas indígenas e de língua várias de emigração (própria das comunidades de imigrantes estrangeiros ingressas no Brasil sobretudo a partir da abolição da escravatura).

O advento da Constituição vigente de 1988 abriu outras possibilidades para as línguas minoritárias faladas no Brasil, visto que essa Carta Magna atribui ao português o caráter de idioma oficial do Brasil; assim, o Estado reconhece a existência de brasileiros que não têm como língua materna o português e, por conseguinte, o direito de eles serem escolarizados também em suas línguas.

Apesar do avanço da lei, as políticas públicas nesse sentido pouco avançaram; igualmente, os esforços de nossa academia nessa direção têm sido muito tímidos, principalmente no que se refere ao estudo das línguas indígenas ainda faladas que, por mais que sirvam para exemplificar e testar teorias lingüísticas alienígenas, não têm, salvo raríssimas exceções, sua descrição gramatical e seu vocabulário dicionarizado, pontos esses essenciais para a construção de material didático para alfabetização e escolarização nessas línguas.

Esperamos ao longo dessa exposição ter contribuído para a revisão de alguns aspectos relativos à constituição histórica do português brasileiro que necessitam de urgente revisão nos meios acadêmicos, revisão que não atualize como também amplie o espectro dessas discussões.

 

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VIEIRA, Antônio (S.C.J.). “Exortação primeira em véspera do Espírito Santo pregado na capela interior do Colégio em 1688”. In: Id. Sermões pregados no Brasil. Lisboa: Sá da Costa, 1940.

VILHENA, Luís Carlos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Irapuã, 1969, 3 v.


 

[1] Nesse acervo vocabular, há itens: a) comuns às variedades lusitana e brasileira, muitas das quais arcaísmos em ambas, em geral, lexias de origens no grupo bantu, introduzidas no português lusitano no início da era dos descobrimentos (por via direta ou através de outros idiomas europeus) e para trazidas pelos colonizadores; b) antigos, disseminados apenas no vocabulário comum do português brasileiro desde os tempos coloniais, trazidas pelas primeiras levas de africanos para transplantadas, a maioria de origem bantu, outras, de procedência iorubá; c) típicos do falar baiano geral, mais do de Salvador, essas de várias origens; d) próprios do uso das religiões afro-brasileiras, de diversas origens, a depender da gênese etnolingüística do culto.

Esse riquíssimo vocabulário em sua maioria composto de nomes (muitos dos quais derivados das formas africanas originais e híbridos), mas também de  verbos (híbridos) –, encontra-se distribuído nos seguintes  agrupamentos semânticos: comidas e bebidas (abará, acarajé, aluá, angu, cachaça, mugunzá, vatapá, etc.); dança (lundu, maracatu, maxixe, samba, etc.); doenças (banzo, calombo, calundu, caxumba, tunga, etc.); fauna (acanga, calunga, camundongo, caxinguelê, macaco, marimbondo, etc.); flora (andu, chuchu, dendê, inhame, jiló, moranga, mulungu, etc.); indumentária (balangandã, canga, miçanga, tanga, etc.); música (agogô, batuque, berimbau, cuíca, ganzá, marumba, timbau, etc.); nomes populares de partes do corpo (binga, bunda, cabaço, tabaca, toba, etc.); nomes populares relativos a pessoas (babá, caçula, capenga, mucama, moleque, xibungo, etc.); objetos fabricados (caçamba, cachimbo, cacimba, carimbo, etc.); religião (bozó, ebó, candomblé, macumba, orixá, etc.); tópicos (cafofo, cafua, mocambo, senzala, etc.;) usos e costumes (cafuné, cochilo, dengo, etc.).

Para um aprofundamento das questões apontadas neste tópico, sugerimos a leitura de Castro (2002), recentíssimo e completíssimo trabalho sobre o tema.