SOBRE O RETORNO À FILOLOGIA

Ceila Maria Ferreira B. Rodrigues Martins (UFRJ)

De uns anos para cá, temos assistido ao crescimento de discussões acerca da Filologia nos meios acadêmicos nacionais e estrangeiros. Contudo, por mais que o tempo passe, uma das imagens mais vivas que conservamos da Filologia continua a assentar suas raízes nas atividades desenvolvidas por sábios, como Eratóstenes, na Biblioteca de Alexandria. O filólogo ainda hoje é o amigo da palavra, uma espécie de amante e intérprete de textos. É “[...] aquele que apreende a palavra, a expressão da inteligência, do pensamento alheio e com isso adquire conhecimentos, cultura e aprimoramento intelectual.” (BASSETTO, 2001: 17.)

Mas, então, por que há tanta controvérsia em torno da Filologia, seu conceito e seu campo de atuação?

Como muito bem escreveu o Professor Doutor Bruno Fregni Bassetto na introdução de Elemento da filologia românica, editado em 2001, o conceito de Filologia não é unívoco. Porém, podemos entender que o termo Filologia foi, desde a Antigüidade, utilizado preferencialmente em relação à sabedoria cultivada através da palavra e ao estudo, interpretação, explicação, fixação e apuramento de textos.

Conforme Ferdinand de Saussure, citado e traduzido pelo Professor Doutor Bruno Bassetto, em livro já referido neste trabalho:

A língua não é o único objeto da filologia, que pretende, antes de tudo, fixar, interpretar e comentar os textos; esse primeiro estudo faz com que se ocupe também com a história literária, costumes, instituições etc; em toda parte ela usa seu método próprio, que é a crítica. Se aborda as questões lingüísticas, é especialmente para comparar textos de épocas diferentes, determinar a língua particular de cada autor, decifrar e explicar inscrições numa língua arcaica e obscura. (Op. cit. p. 35).

Quer dizer: o objeto de estudo da Filologia, o texto, exige leituras e pesquisas num vasto campo de conhecimentos e solicita, muitas vezes, uma cultura que se espelha no Humanismo, no sentido renascentista do termo.

Até bem pouco tempo, a cultura da qual todos nós fazemos parte tinha como destino a especialização exagerada. A Filologia não se enquadra nesse modelo. Ela requer especialização, mas que não exclua a busca da totalidade dos saberes referentes aos textos pesquisados.

Nos dias de hoje, somos atingidos pelo processo de globalização e pela necessidade de nos abrirmos à interdisciplinaridade, à convivência entre formas diferentes de entender e abordar um assunto, um texto. Neste ambiente, a Filologia se encaixa como uma luva. Ela precisa desta convivência entre saberes para poder preservar e aumentar seu espaço. Hoje, podemos afirmar, a Filologia está na moda e os estudos filológicos estão presentes em discussões sobre interpretação, leitura aprofundada e radical de textos.

Todavia, um dos grandes problemas enfrentados pelos filólogos é a verdadeira confusão que ocorre entre Filologia e Lingüística em boa parte dos cursos de Letras do país e de outras partes do mundo, como os Estados Unidos, por exemplo.

Segundo o Professor Doutor Ivo Castro, Catedrático da Universidade de Lisboa, em artigo publicado no livro em homenagem a Celso Cunha, confundir Filologia com Lingüística é restringir, e muito, o campo de atuação dos filólogos. (CASTRO, 1995).

A Filologia trabalha com textos no intuito de fixá-los, comentá-los, explicá-los, aproximá-los o mais possível de seus leitores e de seu autor ou autora. Procura transportar, para um espaço de tempo contemporâneo aos receptores de um determinado texto, a palavra escrita por um homem ou mulher que viveu em um passado distante ou próximo. Busca identificar e classificar as alterações realizadas pelos próprios escritores ou por revisores, editores, tipógrafos, copistas através das sucessivas cópias manuscritas ou edições impressas de uma obra. Restitui ou tenta restituir a palavra escrita e considerada definitiva pelo autor ao público leitor. Intenta vencer o ruído que separa um texto de seus leitores. Mas, a maior parte dos filólogos sabe que é impossível juntar, igualar a sua visão da visão de mundo que um escritor ou escritora possuía quando produziu um determinado texto, objeto de pesquisa filológica.

Conforme Aurélio Roncaglia:

[...] as possibilidades de ruído [...] são tanto menores, quanto melhor é a qualidade do Canal; tanto maiores, de outra parte, quanto maior é a distância que separa o Emissor do Receptor (incluindo na noção de distância não só o intervalo físico de espaço e de tempo, mas também as eventuais diferenças de situação e de cultura [...] entre Emissor e Receptor). (Cf. RONCAGLIA, 1975: 25)

Ou seja, quanto maior for o cuidado e apuro na preparação de um texto para edição, maiores serão as possibilidades de transmissão de uma obra autêntica, fidedigna. Por texto autêntico, fica compreendido o que pode ser atribuído verdadeiramente a um dado autor. O que não sofreu alterações ao longo do processo de comunicação da mensagem escrita pelo emissor, no caso, o escritor, até essa chegar ao receptor ou leitor.

A Filologia tem como objeto de estudo o texto: sua leitura, interpretação, apuramento, explicação e publicação. Para tanto, ela se acerca de outras áreas do conhecimento humano como a História, a Literatura, a Filosofia, a própria Lingüística, a Paleografia, a Codicologia e outras que forem necessárias para o maior e melhor entendimento do universo textual. Portanto, os filólogos trabalham num campo interdisciplinar em que é preciso buscar, reunir, integrar informações advindas de várias fontes e ciências.

Distinguir Filologia e Lingüística é um caminho necessário para que as Faculdades de Letras do país realizem uma reforma curricular que encare os estudos filológicos como eles realmente deveriam ser compreendidos:

[...] em sentido estrito, [...] como a ciência do significado dos textos; e em sentido amplo, como a pesquisa científica do desenvolvimento e das características de um povo ou de uma cultura com base na língua ou em sua literatura. (BASSETTO, 2001: 37).

Retornar à Filologia é, conforme o Professor Doutor Ivo Castro em artigo já citado neste trabalho, regressar a uma ciência com vários séculos de conhecimentos acumulados, mas que não perdeu o poder e a vontade de se renovar e de enfrentar novos desafios (CASTRO, 1995). Um desses novos desafios é organização de uma disciplina ligada à Paleografia e à Codicologia nos cursos de Letras ministrados, por exemplo, no Rio de Janeiro. Como podem ser lidos, interpretados e explicados textos manuscritos produzidos em épocas pretéritas sem o auxílio de uma gama de informações oriundas de uma ciência voltada à decifração e datação da escrita antiga em qualquer espécie de material? Como podem ser levados em conta aspectos materiais relevantes para o estudo e descrição de manuscritos sem o auxílio de dados sistematizados pela Codicologia?

Outra questão importante que merece ser levantada é a de que a retomada dos estudos filológicos irá trazer à baila a necessidade de que todo e qualquer estudo que tenha como fundamento documentos escritos deve se basear em edições ou textos fidedignos, ou seja, em edições ou textos que não apresentem alterações a eles incorporadas pela intervenção de editores, revisores, tipógrafos e sim que estejam de acordo com vontade de seu autor.

Para Aurélio Roncaglia, a “[...] Crítica textual é a garantia da genuinidade e exatidão de todo conhecimento histórico que se fundamenta em documentos escritos [...]”.(RONCAGLIA, 1975: 27).

Na área da história da literatura, mais especificamente, da história da literatura brasileira, há o grave problema de ainda não temos acesso a um número significativo de obras impressas e manuscritas no período colonial. O caso da literatura produzida no século XVIII luso-brasileiro é muito preocupante, pois, se folhearmos a maior parte dos livros escritos sobre o assunto, constataremos que a prosa literária do período é relegada a quase total esquecimento. Mas por que isso ocorre? Porque grande parte desses textos são de difícil localização; muitos deles não tiveram novas edições ou se as tiveram não são, na maior parte dos casos, edições fidedignas.

Daí a importância de resgatarmos, através de estudos filológicos e, se possível, de edições críticas, a prosa literária do século XVIII de Portugal e da América portuguesa. Além disso, para termos uma idéia, o mais aproximada possível, do fazer literário na metrópole européia e na colônia americana portuguesas do século XVIII, devemos ler as poéticas escritas na época; pesquisar a influência da Retórica na literatura e os meios de edição e divulgação de textos no Século das Luzes em solo português. Todas essas informações são levadas em conta, quando utilizados o método de pesquisa filológico para nos aproximarmos o mais possível de um texto.

Nós nos reportamos ao século XVIII, pois essa foi nossa experiência de pesquisa filológica mais significativa, primeiramente com Aventuras de Diófanes e agora com O feliz independente.

Os estudos filológicos nos mostram que para realizarmos uma pesquisa consistente com textos literários ou não literários é preciso que tenhamos uma visão do sistema que produziu esses textos. Através do levantamento de toda a tradição direta e indireta de uma determinada obra e da pesquisa minuciosa de seu vocabulário, sua poética, de seus pontos obscuros, do quadro das mentalidades em que ela foi construída, podemos chegar bem perto desse objetivo.

A Filologia proporciona um mergulho vertiginoso e radical em uma obra estudada a partir de seu método de investigação. Contudo, os estudos filológicos não passaram inumes e inalterados depois de tantos anos de amplo contato com leitura e interpretação de textos. Discussões acaloradas na área da Literatura, Lingüística, Filosofia e o nascimento da Crítica Genética por exemplo, atingiram em cheio à Filologia e suas concepções sobre limites do texto; vontade final do autor; autor; escritor; texto base; texto crítico como um campo neutro para a realização de interpretações por parte de outros pesquisadores.

O que é um texto? Quais são os seus limites? Qual é o texto que deve ser apresentado aos leitores: o texto livre das dúvidas, das hesitações, das pistas que levariam a um melhor entendimento do processo de escritura, o texto considerado definitivo pelo autor, ou o texto em construção? É possível apreender a totalidade da vontade do autor em relação ao texto? É possível reconstruir todo o processo de criação? Essas são algumas das perguntas enfrentadas pelos filólogos atualmente. E a Filologia se renova apesar das dúvidas e, também, por causa delas.

BIBLIOGRAFIA

BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Paulo: EDUSP, 2001.

CASTRO, Ivo. O retorno à filologia. In: PEREIRA, Cilene da Cunha/ PEREIRA, Paulo Roberto Dias. Miscelânia de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 511- 520.

LESSA, Jean Pierre Couto. A questão da filologia. Texto inédito.

RODRIGUES, Henrique Bernardes. Questionamentos sobre filologia. Texto inédito.

RONCAGLIA, Aurélio. Principi e applicazioni di critica textuale. Roma: Bulzoni, 1975.