SONORIZAÇÃO: UM CAMINHO DE MÃO DUPLA

João Bortolanza (UEMS / UFMS)

 

Entre as “leis fonéticas ou tendências da formação do português, avulta a  sonorização das surdas e a correspondente síncope das sonoras intervocálicas. Dentro do projeto de pesquisa em andamentoLuzes do Passado: estudos diacrônicos do português” – cujo pressuposto é que o passado traz luzes para o entendimento do presente esse é um dos aspectos que merece atenção.

Diz Iorgu Iordan ( 1974, p. 299): “L’aspect le plus intéressant du problème [la sonorisation] me semble l’existence réelle, jusqu’aujourd’hui, dans diverses langues romanes, de toutes les étapes parcourues par le phénomène em question”.[i] Como se explica “a existência real de todas as etapas percorridas” pela lei fonética mencionada é o que se pretende desenvolver nesse trabalho.

O francês sirva de exemplo, por ser a língua românica que percorreu praticamente todas as etapas: as surdas se sonorizam e depois sofrem apócope: votu > voeu, amatu < aimé, genuculu > genou, cantatu >chanté, aqua > eau, sanitate > santé, securu > sûr, maturu > mûr, amicu > ami. Abonando a afirmação de Iordan, encontram-se formas eruditas que testemunham a etapa incial e às vezes a intermediária: cantatrice, votif, amateur / amadouer, aquifère, sécurité, maturation, sanitaire, amical. Verifica-se ainda a fricatização:  capillu > cheveu / capillarité, chevelure; potere (< posse) > pouvoir / potenciel; site > soif, scopa  > escouve (ant.). 

Quanto à fricatização,cumpre salientar que, de acordo com Manuel Ariza (1994, p. 30), há filólogos que consideram quefue la fricatización de las sonoras latinas la que motivó la reacción en cadena”, ou seja, com a transformação das sonoras intervocálicas em fricativas, como é o caso do b > β no latim vulgar, abria-se o caminho para a sonorização das oclusivas surdas. Se é essa a origem do processo evolutivo ou se é a simplificação das geminadas que abriu o caminho para a sonorização, não cabe aqui discutir, o que importa é que a fricatização se faz presente no português, além de no francês e no espanhol. Assim o -b- latino pode evoluir para -v- (habere, debere, probare, amabant, caballu, nebula, herba, trabe > haver, dever, provar, amavam, cavalo, névoa, erva, trave), abrindo caminho para que o -p- se sonorize na homorgânica -b-: lupu, caepulla, capillu, capere, super, *capitia (caput),  sapere, apertu > lobo, cebola, cabelo, caber, sobre, cabeça, saber, aberto.

Em português, bem como em espanhol, verifica-se facilmente a sonorização. a síncope das sonoras intervocálicas é antes uma marca do português, embora esteja presente também em castelhano. Atente-se para a sonorização das surdas de  amicu, amatu, acutu, lupu, aqua, mutu > amigo, amado, agudo, lobo, água, mudo (em ambas as línguas). Entretanto, em  pede, lana, gradu, palu, filu, cadere, legere, magis, fidele, a síncope é uma constante no português, diferentemente do espanhol, em que ora ocorre, ora não – seguindo tendências diversas. Notem-se as divergências português/espanhol: /pied, /lana, grau/grado, pau/palo, fio/hilo, cair/caer, ler/leer, mais/más, fiel/fidel. Observem-se, por outro lado, as formas verbais, em que se pode observar também o fenômeno da fricatização, além das diferenças quanto à síncope da sonora: cantatis > cantais, cantabas > cantavas / cantabas, scribebas > escrevias / escribías, audiebamus > ouvíamos / oíamos,  cantate > cantai / cantad.

Especificamente no Português, podem aplicar-se as palavras de Iorgu Iordan: podem verificar-se as várias etapas dessa “lei fonética”, pela presença de radicais alomorfes, uns atestando as surdas e as sonoras latinas, outros com as sonoras resultantes das surdas homorgânicas ou sem as sonoras originais. Amigo ao lado de amical, amicíssimo; ler/legível, grau/gradual, /lanígero, mudo/mutismo, fiel/fidelidade – e os exemplos se multiplicam em famílias, como: de um lado, , peão, peanha (pequeno pedestal), peia, pear, peagem (pedágio) etc., atestando a síncope; por outro, pedal, pedestre, pedágio, quadrúpede, pedestal, pediforme, entre outros, a recomporem a forma latina.

Um passeio histórico ajudará a entender como isso ocorreu. Comecemos pelo século XIII, com duas cantigas do CA-Cancioneiro da Ajuda.

Cantiga 174 do CA-Cancioneiro da Ajuda - João Soares Coelho

Noutro dia, quando m’eu espedi

de mia senhor, e quando mi-ouv’a ir,

e me non falou, nen me quis oïr,

tan sen ventura foi que non morri!

                           Que, se mil vezes podesse morrer,                                                                                                                                                     

                           mẽor coita me fora de soffrer!

 

U lh’eu dixi: “con graça, mia senhor!”

catou-m’un pouqu’e teve-mi en desden;

e porque me non disso mal nen ben,

fiquei  coitad(o), e con tal gran pavor

                           que, se mil vezes podesse morrer,

                           mẽor coita me fora de soffrer!

 

E sei mui ben, u me d’ela quitei,

e m’end’eu fui, e non me quis falar,

ca, pois ali non morri con pesar,

nunca jamais con pesar morrerei:

                           que, se mil vezes podesse morrer,

                           mẽor coita me fora de soffrer!

 

Glossário:

Espedir < expetere = despedir            Mi-ouv’a ir = tive que ir

Morrer > morere (mori)                   Minore(m) > mẽor

Ubi > u  = quando                             Catar < captare = olhar

Desden (prov.) < desdignare            Ficar < *figicare (< figere)

Coitado = aflito (com coita)             Soffrer < sofferere (sufferre)

Quietare > quitar-se = separar-se      Ende < inde  = dali

Pois < post = visto que, porque         Coita> cocta (coacta)

Pesar = mágoa (< pensare = tomar o peso, pendurando; causar , desgosto, mágoa)

Nessa cantiga, fica claro que a sonorização das surdas intervocálicas acontecera: PETERE > PEDIR – no caso, o composto espedir, hoje, após a prótese, despedir – ; POTERE > PODER; COCTATU > COITADO; VICES > VEZES. Também é facilmente comprovado que a síncope das sonoras ocorrera: UBI > u; FABULARE > falar, embora não diretamente, pois passou pela assimilação  fablar> fallar; AUDIRE > oir, forma depois reconstituída com fricatização, ouvir; MINORE >  mẽor, também depois sofrendo regressão semi-erudita.

Releve-se, por outro lado, que não um exemplo sequer de formação erudita, como petição, potencial, coatado (coagido), coativo (coercivo), vicário, ubicação, confabular, auditório, minoridade. É que estamos ainda no “romance”, o dialeto formado pela evolução normal do latim vulgar, a língua falada pelo povo, o romanice fabulare. As formas clássicas tinham sofrido as transformações multisseculares. Será preciso a erudição classicizante da escrita para que tais formas ressurjam.

Consideremos uma 2a. cantiga, também do CA[ii] de  Martin Códax

Mia irmana fremosa, treydes comigo

a  la igreja de Vig’, u é o mar salido:

                       E miraremos las ondas!

 

Mia irmana fremosa, treydes de grado

a  la igreja de Vig’, u é o mar levado:

                       E miraremos las ondas!

 

A la igreja de Vig’, u é o mar salido,

e verrá i mia madre’ e o meu amigo:

                       E miraremos las ondas!

 

A la igreja de Vig’, u é o mar levado,

E verrá i mia madr’ e o meu amado:

                       E miraremos las ondas!

 

Glossário:

irmana: amiga, companheira            u < ubi = onde

tráhitis > treides  (trahere): vinde[iii]   Vigo < Vicus Spacorum (vilarejo)

de grado (<gratu):de boa vontade     levado < levatu  = levantado, encapelado

salido < salitu: que salta bruscamente                amigo<amicu = amado<amatu: namorado, amante

Esta curta cantiga, tão cheia de repetições, revela-se muito rica em exemplos para o estudo da Sonorização das Surdas e da Síncope das Sonoras intervocálicas. A Sonoricação verifica-se em : TREIDES < trahitis, SALIDO < salitu, GRADO < gratu, IGREJA < ecclesia, VIGO < Vicus, LEVADO < levatu, MADRE < matre, AMIGO < amicu e AMADO < amatu. De se notar que ainda se conserva o -d- proveniente da sonorização -tis >-des, para as segundas pessoas de plural dos verbos: TREYDES, forma depois regularizada, assim como cantades, queredes, que, no final da 1a. fase do português arcaico, passaram a cantaes, quereis. As palavras MADRE e padre também estavam cumprindo uma segunda etapa, a síncope da sonora, sendo comum o emprego de mae ou mai e pae.

A Síncope da Sonora intervocálica ocorre em U < ubi, VERRÁ < venire habet. Não ocorreu em IRMANA, na realidade porque foi empregado como um arcaísmo “mia irmana”, posto que era corrente a nasalação, com a síncope do -n- intervocálico. Outro fato a observar-se é que o verbo vir < venire ora mantinha a a nasalação (vĩir, vĩia, vẽo, vĩindo), ora sofria a desnasalação, como é o caso de VERRÁ, verria, o que, aliás, explica que o radical de vir ainda hoje tenha alomorfes com nasalidade (vem, vindes, vinhas, venham, havia vindo).

Nessa cantiga também não ocorre nenhuma palavra com o radical original latino, o que ocorrerá com o Humanismo, que será responsável pelo enriquecimento do vocabulário com termos científicos greco-latinos, consolidando o romancefalado como língua moderna.

Para completar, um pequeno passeio ou excurso diacrônico, o poemaMãos Dadas” de Carlos Drummond de Andrade, que rescende atualidade:

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a grande realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os

                                  homens presentes, a vida presente.

Rapidamente podem levantar-se, nesse poema modernista, diversos exemplos de palavras eruditas. São facilmente reconhecidas, por não terem sofrido as modificações fonéticas características, especificamente a sonorização e a síncope das intervocálicas: POETA < poeta, CADUCO< caducus, FUTURO < futurus, TACITURNOS < taciturnos, NUTRIR < nutrire (arc. nodrir), CONSIDERAR < considerare (arc. consiirar, consirar), além de outros, como ENORME, PRESENTE, DISTRIBUIR, ENTORPECENTE, SUICIDA, RAPTADO, MATÉRIA. A notar-se que o -d- intervocálico não sofre síncope em caduco e considerar, embora nesta tenha havido regressão erudita, restabelecendo o -d- sincopado; o -t- intervocálico permanece inalterado em poeta, futuro, taciturno e nutrir, ainda que novamente a regressão erudita tenha revertido a sonorização de nodrir (arc.); enquanto materia evoluiu regularmente para madeira, pelas características sonorização e hipértese, materia (< de materies) manteve-se por formação erudita, com registro a partir do século XIV; em RAPTADO não houve vocalização, embora haja exemplo de rauto por rapto no século XV, mas houve a sonorizaçãogramatical” da forma participial -atu > -ado, como é de regra para os particípios de verbos eruditos.

Pelos três poemas analisados, pode-se perceber como são úteis os excursos diacrônicos: num primeiro momento, a língua portuguesa vivia sob a égide da “lei fonética”, não se encontrando, no corpus aqui analisado, exemplos de permanência das sonoras e surdas intervocálicas; , no poema da atualidade, parece desvencilhar-se da onipresença da lei, e as modificações fonéticas encontram-se mescladas com os radicais reconstituídos.

A análise diacrônica permite lançar luzes sobre o presente e, no presente trabalho, entender como convivem radicais alomorfes, uns submetidos à variação histórica, intactos outros, o  que autoriza a dizer que a “sonorização é um caminho de mão dupla”: por um lado, temos a sonorização e a síncope das intervocálicas surdas e sonoras respectivamente; por outro lado, analisando as palavras atuais, pode-se verificar, em sentido inverso, como se dá a epêntese das sonoras e as sonoras se transmutam em surdas – que o que MUDA sofre MUTAÇÃO,  e todo MUTÁVEL lembra MUDANÇA (sit venia ao trocadilho!), no caminho de “mão dupla” dos radicais MUD ↔ MUT – algo como a proposta de Ubiali, em seu Do Latim ao Português sem Dicionário, em adivinhar a forma latina a partir das formas portuguesas.

Assim, quem diz popular sabe que se refere a povo, caprino lembra cabra, planta aquática vive na água pela sonorização de -p- e -k-, além da fricatização poboo (arc.) > povo –; o que é saudável é salutar, o solo da lua é lunar, e solitário se equivalem, régio, legal, graduado e pedestre referem-se a rei, lei, grau e , médio e egoísta incluem-se entre os cognatos de meio e eu, numa lista interminável de idas e vindas das sonoras intervocálicas (d, g, l, n), ora presentes, ora sincopadas. E esse vaivém não é privilégio dos eruditos, é uma competência do lusofalante, por mais simples.

Estudos como esse poderão habituar o profissional das Letras a observar o Português em sua história, em sua latinidade: nós lusos nascemos “latinos”, nossa herança lingüística traz marcas substanciais nada desprezíveis, posto que não acessórias – das etapas vividas, das tendências por que passou, envolvendo a nasalação e correspondente desnasalação, a criação de duas séries palatais e a “lei” da sonorização das surdas e síncope das sonoras intervocálicas. São aspectos fonéticos a que se somam os semânticos, os morfológicos e sintáticos, a fazerem parte da diacronia da língua, que precisa voltar a ter o destaque que merece, sendo com a sincronia cara e coroa do mesmo produto, a língua.

Como se pode constatar, o presente trabalho tem sobretudo intenções didáticas, com o intuito de argumentar em favor da “necessidade de um ressurgimento dos estudos clássicos e diacrônicos” e de “sugerir temas para a pesquisa”, como argumentava em “O Latim e o ensino do Português” (2000, p. 78) e dizia, em “Consangüinidade Latim-Português” (2002, p. 95), “Tanto na diacronia, quanto na sincronia, podemos agrupar os fenômenos, as tendências, denominá-los, traçando sempre paralelos, passeando pelos textos de várias épocas ou transcrevendo entrevistas de níveis de fala”.

Concluo retomando a frase provocativa que deixei lavrada na Revista Philologus (2000, p. 85): “Língua latina, apenas deslocada na linha do tempo, o Português se entende em sua dimensão diacrônica”.

 

Referências Bibliográficas

ARIZA, Manuel. Sobre Fonética Histórica de Español. Madrid: Arco Libros, 1994.

BORTOLANZA, João. Consangüinidade Latim-Português. In InterAtividade. Andradina-SP, v.2, n º1, jan/jun 2002, p. 90-99.

BORTOLANZA, João. O Latim e o ensino de Português. In Revista Philologus. Rio de Janeiro, ano 6, n º 18, set/dez 2000, p. 77-85.

CANCIONEIRO DA AJUDA. Ed. de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Reimpressão da edição de Halle (1904), acrescentada de um prefácio de Ivo de Castro e do glossário das Cantigas (Revista Lusitana, XXIII). Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 1904, 2 vol.

CUNHA, Celso. O Cancioneiro do Martin Códax. In –––. Cancioneiros dos Trovadores do Mar. Edição de Elsa Gonçalves. Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 1999.

IORDAN, Iorgu. Évolution des occlusives latines em Roman. In Revue de Linguistique Romane. Paris, tome 38, p. 297-301, 1974.

UBIALI, Nelson Attílio. Do Latim ao Português sem dicionário. 2a.ed. corr. e ampl. Londrina: UEL,


 

[i] “.o aspecto mais interessante do problema (sonorização) me parece a existência real, até hoje, em diversas línguas românicas, de todas as etapas percorridas pelo fenômeno em questão” (tradução minha).

[ii] Extraída de O Cancioneiro de Martin Códax de Celso Cunha, p. 53,  na  edição de Elsa Gonçalves Cancioneiros dos Trovadores do Mar (1999).

[iii] Treydes = “trazei-vos a vós mesmos” (Carolina Michaelis). In CUNHA, Cancioneiro de Martin Códax, 1999, p. 53.