A EXPRESSÃO ADVERBIAL DE TEMPO E DE ASPECTO
NO PORTUGUÊS ESCRITO

Maria Maura Cezário (UFRJ)

Introdução

Este trabalho consiste no estudo dos empregos dos advérbios e locuções adverbiais com valor temporal ou aspectual no português. A pesquisa insere-se num projeto maior sobre a história dos advérbios (e também das locuções adverbiais) do português, tanto no que se refere à descrição e à explicação de seus usos como à apresentação da história do seu comportamento sintático ao longo da história da língua portuguesa.

Neste trabalho, iremos deter-nos à apresentação dos principais resultados da pesquisa sobre as locuções adverbiais temporais e aspectuais. Procuramos descrever as posições ocupadas por estas locuções, comparando os resultados da análise do português arcaico com o português atual.

Para tentarmos uniformizar os corpora (e para diminuirmos as diferenças decorrentes do tema), estamos trabalhando com textos que girem em torno do mesmo tema. Assim, codificamos os dados das 150 primeiras páginas do livro Orto do Esposo - representando o português arcaico - e o livro Tocai o Senhor - representando o português contemporâneo. Ambos os livros tratam de questões relacionadas ao tema religioso.

Advérbios e locuções temporais e aspectuais

Poucos estudos há sobre o emprego dos advérbios e locuções adverbiais no português. Na maioria das vezes, os autores estão preocupados apenas em apresentar uma classificação para os advérbios, subdividindo-os em advérbios de lugar, de tempo, de modo, etc. Mas temos a intenção de ir além disso: queremos descobrir quais são os motivos que influenciam a enorme variação de posição dessa classe de palavras, sobretudo no se refere ao tempo/aspecto.

Como o funcionalismo trabalha com a hipótese de que formas diferentes estão a serviço de funções diferentes, pensamos que deve haver uma motivação discursiva ou semântica que justifique a variação posicional como em : (a) Nesta manhã revi o artigo de Lingüística; (b) Revi, nesta manhã, o artigo de Lingüística e (c) Revi o artigo de Lingüística nesta manhã.

A pesquisa está se iniciando e, portanto, temos mais perguntas do que respostas, mas já é possível descrever as posições mais típicas e apontar alguns fatores queexplicam a variação posicional das locuções adverbiais temporais e aspectuais.

Objetivos e hipóteses

Este trabalho tem os seguintes objetivos: (1) caracterizar as posições mais típicas das locuções adverbiais no português arcaico e no contemporâneo; (2) observar se houve mudança nas tendências de colocação das locuções adverbiais nas duas sincronias; (3) classificar os diversos tipos de locuções adverbiais e (4) verificar se o tipo de locução adverbial influencia a variação posicional no português.

A nossa principal hipótese é a de que há fatores semântico-discursivos, assim como estruturais, que motivam a variação posicional das locuções adverbiais temporais/aspectuais.

As locuções adverbiais podem aparecer em diferentes contextos sintáticos. Para simplificar a nossa análise para esta apresentação, codificamos os dados segundo 5 contextos sintáticos (Adv é a locução adverbial):

Posição 1 : AdvV (pré-verbal e próxima do verbo) - “E Socrates per noueeta e noue ãnos nõ quedou de ẽsynar e escrepuer sciencia con door e cõ trabalho” (Orto do Esposo, p. 53/l. 32-34) ; “Muitas vezes reservamos para nós alguma parte de nosso coração” (Tocar o Senhor, p. 15/l.23).

Posição 2 : AdvXV - “(pré-verbal e distante do verbo) - “Ca muytas vezes a fortuna do mũdo ẽno começo parece que mostra boa andança ao homẽ, ” (Orto do Esposo. p. 129, l. 13-14) ; “ Mais uma vez, Jesus percebe que pode contar com ele e o convida para um momento de oração sobre o monte. ” (Tocar o Senhor . p. 25, l. 26).

Posição 3 : VAdv (pós-verbal e próxima do verbo)- “Onde diz Aristoteles que a elifante femea trage per dous anos o parto eno uentre, porque a grande corpo” (Orto do Esposo, p. 63/l. 11-12) ; “... o grande presente que viria concretizar para sempre a profissão de fé dita às margens do lago Tiberíades” (Tocar o Senhor p. 29, l. 6).

Posição 4 : VXAdv (pós-verbal e distante do verbo) - “E, segundo diz Isydoro, viuẽ os elifantes trezentos ãnos” (Orto do Esposo, p. 63/l. 17-18) ; “Foi fiel à sua fé e, graças a essa fidelidade, encontrou Cristo naquela memorável tarde” (Tocar o Senhor, p.35 /l.11).

Posição 5 : auxAdvV (entre o auxiliar e o verbo)- “... ca ẽ Roma foy hũa vez achado hũũ corpo dhũũ gigante muy grande” (Orto do Esposo p. 108, l. 24-25).

Os resultados - referentes à análise preliminar dos dados - encontram-se nas tabelas a seguir :

  VAdv VXAdv AdvV AdvXV auxAdvV Total
  N % N % N % N % N % N %
PA 62 35 36 20 45 25 32 18 3 2 178 100
PC 74 35 28 13,3 51 24,2 58 27,5 0 0 211 100

Tabela 1-
Posição da locução adverbial no português arcaico (PA) e no português contemporâneo (PC)

Os resultados demonstram que houve considerável variação entre as posições encontradas em cada sincronia, porém, ao compararmos os dois momentos, percebemos que houve poucas diferenças, que podem ser vistas melhor ao juntar as quatro primeiras ordens em dois grupos: aqueles com a locução na posição pré-verbal e aqueles com a locução na posição pós-verbal (tabela 2). Há um número muito pequeno de dados na ordem AuxADVverbo no português arcaico e não houve dados desta ordem no português atual. Mas ainda é cedo para tirarmos conclusões a esse respeito.

Posições/sincronias Posição pré-verbal Posição pós-verbal auxAdvV Total
  N. % N % N. % N %
PA 77 43 98 55 3 2 178 100
PC 109 51 102 48 0 0 211 100

Tabela 2: Posição da locução adverbial

Verificamos no português arcaico (por enquanto somente neste) se havia alguma relação entre posição da locução verbal temporal/aspectual e estrutura sintática do português. No português arcaico, havia várias ordens para os constituintes da oração. No corpus analisado, as ordens mais freqüentes foram:SV, SVO, VO, VS e VOS.

Posição Ordem Posição pré-verbal Posição pós-verbal Total
  N % N % N
SV+SVO 29 36,7 50 63,3 79
V 6 22,2 21 77,8 27
VOS 4 100 0 0 4
VO 15 62,5 9 37,5 24
VS 16 57,1 12 42,9 28

Tabela 3:
Relação entre posição da locução adverbial e ordem de palavras no português arcaico

Nas ordens mais freqüentes (SV, SVO e V), a locução ocorre após o verbo. Já nas ordens em que a posição pré-verbal do sujeito está vazia e há constituintes depois do verbo, a posição típica da locução é exatamente o local onde deveria estar o sujeito, ou seja, posição pré-verbal (VOS,VO e VS).

A estrutura sintática é um fator estrutural que explica parcialmente a variação posicional das locuções. Sabendo que as locuções são semanticamente muito diversificadas entre si, utilizamos a classificação semântica presente em Ilari (2001) com o objetivo de verificarmos se há uma motivação semântica para a variação posicional das locuções em estudo. Dessa forma, classificamos todas as locuções de acordo com a sua função em:

a) locuções com função durativa: informam o tempo empregado na ação verbal (as locuções desse tipo respondem a perguntas como “Em quanto tempo ... ?” ou “Quanto tempo... levou para...?” “Durante quanto tempo ...?”). Exemplos:

“...hũũ gentil, que auia nome Thioponto, quisera traladar a Sancta Scriptura e mistura-la cõ as sua hystorias que escripya e foy pori feicto sandeu per trinta dias” (Orto do Esposo. p. 45, l. 33-35) ; “Durante um ano inteiro, os dois participam das reuniões da comunidade e instruem a multidão” (Tocar o Senhor. p. 35, l. 23)

b) locuções com a função reiterativa: indicam a freqüência de realização da ação (as locuções respondem a pergunta “Quantas vezes...?”. Exemplos:

“O abbade Ysidoro choraua muytas uezes estando aa mesa, quando comia” (Orto do Esposo, p. 42/l. 32) ; “ Mais uma vez ele experimenta sua fraqueza e, vencido pelo cansaço, adormece” (Tocar o Senhor. p. 24, l. 8).

c) locuções com função dêitica/anafórica, localizam a ação verbal no tempo (as locuções respondem a pergunta com “Quando...?”).

Emno dia da payxom de Jhesu Christo forã fectos treeuas per toda a terra” (Orto do Esposo, p. 68/l. 10-11) ; “Pedro sente-se preparado para, naquela tarde, dar uma resposta convicta ao Senhor” (Tocar o Senhor. p. 24, l. 27)

Apresentamos a seguir o resultado dos três grandes grupos de locuções:

Função Total
  N %
Durativa 91 23,4
Reiterativa 194 49,8
Dêitica 104 26,7
Total 389 100

Tabela 4- Função da locução adverbial no português

Com relação à função da locução adverbial, a função de maior uso é a reiterativa. Esta função aspectual informa a freqüência de realização de uma ação através da locução adverbial, apresentando 49,8% dos 389 dados analisados. A função dêitica foi empregada em 26,7% dos dados e a função durativa, em 23,4% dos dados. Vejamos os resultados do cruzamento entre função das locuções e posição das mesmas com relação ao verbo, através da tabela 5.

Para facilitar a análise, optamos por reduzir as posições ocupadas pelas locuções em :

Posição 1º: Pré-verbal

Posição 2 : Pós-verbal

Posição 3 : Entre o auxiliar e o verbo

Posição Função Posição 1 Pré-verbal Posição 2 Pós-verbal Posição 3 Entre o aux e o verbo principal TOTAL
  N % N % N % N %
Durativa 27 29,6 64 70 0 0 91 100
Reiterativa 99 51 92 47,4 3 1,5 194 100
Dêitica 61 58 43 41,3 0 0 104 100
Total 187 48 199 51 3 1 389 100

Tabela 5- Posição e função da locução adverbial

Os resultados indicam que a função expressa pelas locuções pode explicar, em parte, a variação posicional, pré ou pós-verbal: as locuções que expressam reiteração podem ocorrer antes ou depois do verbo; as que expressam duração da ação verbal têm uma freqüência muito alta na posição pós-verbal; já as que expressam o momento da ação verbal, ou seja, as que são tipicamente circunstanciadores de tempo, tendem a ocorrer na posição pré-verbal. Os resultados indicam que os falantes tendem a localizar a ação no tempo antes de expressar a própria ação; enquanto apresentam a duração do processo depois do verbo.

Conclusão

A análise realizada indica que não houve mudança significativa nas posições ocupadas pelas locuções adverbiais, ao compararmos duas sincronias do português. Detectamos um fator estrutural que motiva a variação posicional e um fator semântico-pragmático. O fator estrutural refere-se ao tipo de estrutura utilizada pelo escritor para transmitir as informações: foi verificado que, nas orações em que o sujeito não estava anteposto e ao mesmo tempo havia constituintes depois do verbo, o advérbio ocorria na posição pré-verbal, ou seja, na posição mais freqüentemente ocupada por sujeitos. O fator semântico-pragmático refere-se à função da locução. Quanto a esse fator foi confirmada a hipótese de que o tipo de função expressa pela locução adverbial influencia a variação posicional de tal locução: as locuções com função dêitica/anafórica tendem a ocorrer na posição pré-verbal, localizando o processo verbal no tempo; enquanto as locuções que expressam duração ocorrem geralmente na posição pós-verbal, expressando um aspecto ligado à duração do processo verbal. As locuções reiterativas não possuem um contexto sintático prototípico. Provavelmente algum fator discursivo está atuando no momento em que o escritor posiciona essas locuções na oração.

As conclusões são parciais, pois a pesquisa ainda está no seu início. No momento, estamos testando outras categorias como o tipo semântico do verbo, o tipo do texto e o papel coesivo da locução. Assim teremos um conjunto de variáveis que poderão ser cruzadas para melhor compreendermos o mecanismo de uso das locuções adverbiais temporais e aspectuais do português.

BibLiografia

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