A
PALAVRA ‘QUE’
SUBORDINANTE
INTERFACE CAUSAL-EXPLICATIVA
UMA
ABORDAGEM
DIACRÔNICA
Geraldo José da Silva (UEMS)
Introdução
É
comum a
constatação de
dificuldade
por
parte dos
estudiosos da
Língua Portuguesa
em
analisar as
funções do
que na
constituição dos
períodos
compostos
por
coordenação e
por
subordinação
em
situação sincrônica.
Dada a complexidade do
uso desse
conectivo, uma
vez
que o
mesmo se
encontra na
zona
limítrofe da
coordenação e da
subordinação e,
também, a
proximidade sintático-semântica na
manifestação
textual,
nos propusemos a
fazer uma
reflexão – à
luz de uma
abordagem
diacrônica – desse
fenômeno.
Objetiva
este
trabalho
fazer
um
levantamento de
ocorrências do
que/ca subordinante, às
vezes coordenante,
em
textos
arcaicos, destacando-se os
valores sintático-semânticos centrados
em
enunciados de
cunho
causal e
explicativo.
Para
melhor
entender as
ocorrências e
funções desse
significante, elegemos a
cantiga 85 do
Cancioneiro da
Ajuda, de Pero
Soares de Burgalês,
como
texto
base
para o
estudo das
ocorrências do
que/ca visando ao aclaramento
analítico do
uso desse
conectivo
em
situação
atual.
O
estudo balizado
pelo
viés
diacrônico desta
questão dará
maior
consistência
analítica e,
com
certeza,
maior
segurança no
trato do
objeto,
razão da
pesquisa
em
tela.
Fundamentação
teórica
Considerando a
variedade de
uso do ca/que
e
sua polissemia, vê-se
que
esse
significante
ora é coordenante,
ora é subordinante, podendo na
fase
arcaica da
língua
equivaler,
também, ao
que
integrante e ao do
que
ou
que de
enunciados
comparativos e
consecutivos. O
uso do ca
explicativo
ou quia
ou qua
latinos é
muito
freqüente na
documentação
arcaica. Mattos e Silva
assim assevera:
A
dificuldade da
classificação do ca
não está,
como ocorreu
com
adversativas e conclusivas-explicativas,
em
considerá-lo
conjunção
ou adverbial,
mas
em
considerá-lo subordinante
ou coordenante
e, optando-se
por uma dessas
duas possiblidades,
que
tipo de
subordinante
ou coordenante:
causal
(classificação
mais
generalizada),
consecutiva,
explicativa. A
dificuldade é
de
natureza
sintáctica e
semântica.
(1989: 690).
Em
Estruturas trecentistas, a autora
afirma
que “os
enunciados introduzidos
por ca estão naquela
duvidosa
zona
limítrofe da
coordenação e da
subordinação”.
Isto
nos remete à
grande
dificuldade de
análise da
ocorrência desse
significante
nos
enunciados da
língua
em
uso
arcaico e,
mais
ainda, no
aspecto sincrônico.
Em
consonância
com a autora, percebemos
que o
enunciado introduzido
por ca (coordenante)
sempre sucede,
como
em
qualquer
coordenada, ao
enunciado a
que se
liga, explicitando-o
ou justificando-o;
já
com os
enunciados
subordinados circunstanciais, as
causais iniciadas
sobretudo
por
porque (semanticamente
afins aos
iniciados
por ca) podem
anteceder
ou
suceder o
enunciado
básico.
Para Mattos e Silva (1989: 691), é
mais adequado
classificar ca
como
explicativo, uma
vez
que o
valor
semântico de ca é
mais abrangente
por
expressar uma
justificação, uma motivação, uma exemplificação e
não
estritamente uma
causa,
embora
em
certos
contextos expresse a
causa.
Em
situações
causais, faz
falta o
falante
nativo
para
informar se o ca e o
porque teriam nestes
contextos
valor
idêntico, se seriam,
portanto, intercambiáveis. “Ide-vos a boa
ventura, ca non
ei
eu mester
cavalo.” (MATTOS E SILVA, 1989: 692).
A autora
nos apresenta - na
obra analisada -
que ca e
porque
causais ocorrem
em
um
mesmo
enunciado
complexo, sendo observável a
distribuição
sintática
distinta desses
dois
conectivos de
semântico,
senão
idênticos,
bastante aproximados. “E o
santo
homem deu muitas
graças a
deus
porque metera en coraçon ao
papa de o
querer veer,
portanto mandou aos
seus
monges
que guisassen
bestas
pêra o camĩho ca el
logo se queria
ir”.(id., ibid., p.
693-694).
Prosseguindo
sua
análise,
Mattos e Silva ( 1989: 696-698)
nos apresenta
considerações
relevantes,
onde aborda
que
...a
subordinação
de
um
enunciado a
outro se
realiza
por
um
enunciado
introduzido
por
conectivo subordinante e
com
verbo
em uma de
suas
formas finitas
ou
em
formas
nominais:
infinitivo,
gerúndio,
particípio
passado. O
enunciado
subordinado
integra o
que se
comunica no
enunciado
subordinante
por
expressar
um facto
circunstancial
complementar [as
circunstanciais];
ou
por
expressar
um facto
exigido
por
um dos
componentes do
enunciado
subordinante [sintagma
nominal
sujeito
ou
complemento=
as completivas];
ou
por
expressar uma
qualificação de
algum
elemento desse
enunciado [sintagma
nominal
qualificador = as restritivas].
O
que é
um
paradigma
que se multiplica
em
seu
uso sintaticamente,
pois dependendo do
contexto assume
posição e
função coordenativa e,
também, subordinativa [introduzindo
enunciados circunstanciais,
relativos e completivos].
Retomando
nosso
viés de
pesquisa e
análise, vejamos a
ocorrência de
que
com
valor
causal apresentado
por Mattos e Silva (1989: 698): “E non é
maravilha se as irmãã
mais agĩha gaanhou de
nosso
Senhor o
que cobiçou ca
seu
irmão, ca, se
Deus he
amor, assi
como diz San Joane, dereito juizo de
Deus foi aquela podesse
mais
que
mais amou”.
Mattos e Silva (1993: 111)
argumenta
que no
período
arcaico o
que,
integrante, varia
com ca,
mas essa
variante tem
freqüência
baixa
em
relação a
que e
começa a
deixar de
ser documentada
já no
século XV.
Para a autora o
que, no
período
arcaico,
como
hoje, é o “pronome
relativo
primário
em
português. Representa, historicamente,
um
nivelamento do
nominativo
latino
que (Masc.), quae (fem.),
quod (neutro) e dos
acusativos
quem, quam, quod
também”.
Na
documentação
arcaica,
embora
pouco
freqüente, o
relativo
que ocorre grafado ca,
tal
como ocorre
com a
integrante
que. No
processo de
constituição das
línguas românicas, a
partir do
latim
corrente, poucas das
conjunções subordinativas do
latim
clássico permaneceram:
que < quid,
como < quomodo,
quando <
quando, se <
si, ca < quia.
“A
coordenação
explicativa tem
como
conectivo
mais
corrente na
documentação
arcaica o ca,
cujo
étimo
em
geral proposto é o quia do
latim. Mantém-se
presente
até o
século XVI,
mas se perderá
em
proveito de
pois, etimologicamente
um
temporal (< lat. post)”, diz Mattos e Silva
(1993: 121).
Vale
chamar a
atenção
para o
fato de
que
este ca,
homógrafo do ca
integrante e
relativo
antes referidos, remete diacronicamente
para o quia
latino.
Ainda
para a autora, “as explicativas e
causais estão no
limite
entre
coordenação e
subordinação, se se
admitir
que
esses
mecanismos representam
um continuum de possibilidades
que vai da
subordinação
plena,
como é o
caso das completivas marcadas,
sobretudo,
pelo
que,
constituinte
essencial à
sentença de
que depende,
até a
coordenação
plena
que é a
adição
simples, marcada
pelo e ” (1993: 122).
Almeida (1999: 352-355) explica
que as
conjunções explicativas “ligam duas
orações, explanando
ou continuando a
segunda o
sentido da
primeira: Ex.: Morreu,
ou seja, deixou de incomodar-nos”.
Já as
conjunções
causais “ligam duas
orações, das
quais uma depende da
outra,
como o
efeito depende da
causa; a
que indica o
efeito é a
principal, e a
que representa a
causa é a
subordinada. Ex.:
Cansado
que fiquei, procurei
apoio.”
O
autor discute a
questão
conceitual trazida
pela NGB no
tocante ao
uso do
que
ora
causal,
ora
explicativo. A NGB (Apud
ALMEIDA, 1999: 355) traz: “As
conjunções
que e
porque e equivalentes
ora têm
valor coordenativo,
ora subordinativo; no
primeiro
caso, chamam-se explicativas; no
segundo
caso,
causais”.
Segundo o
autor, há
grave
engano nesse
trato
conceitual e
ainda questiona o
exemplo: “
Não suba,
que
você cai”
onde apresenta uma
análise
em
que a
subordinada constitui uma
explicação,
sem
porém
deixar de
implicar
motivo. E acrescenta Almeida (1999: 355) “A
admitir as
causais
como explicativas,
forçoso se
torna
admitir
como explicativas as
finais, as
temporais e
ainda outras”.
Polemiza
também se
que,
quando tem
valor subordinativo, é
causal, pode-se
dizer
que
que no
período “Gostaria
que
eles estudassem” é
causal? E se
que
com
valor coordenativo é
explicativo no
período “Mexe
que mexe”?
Conclui o
autor “ parece
que o
que houve foi terem
dado à
palavra ‘explicativa’
o
sentido
lato de ‘declarativa’,
ou terem confundido
conjunção
com
oração,
ou
gramática
com
filosofia” (1999: 355).
Cunha e Cintra (1985: 567-572) conceituam as
conjunções explicativas
como sendo a
ligação
entre duas
orações, a
segunda das
quais justifica a
idéia contida na
primeira. Ex.: Vamos
comer,
Açucena,
que estou morrendo de
fome. (Adonias
Filho).
Também registram
que as
conjunções adverbiais subordinadas
causais iniciam uma
oração
subordinada denotadora de
causa.
Exemplos: Tenho continuado a
poetar,
porque
decididamente se
me renovou o
estro. (A . de Quental);
Como as
pernas trôpegas exigiam
repouso, descia
raro à
cidade. (G.
Ramos)
Mesquita (1996: 436-445) apresenta o
que
explicativo coordenativo no
exemplo: “ Parem
esse
troço
que
eu vou
descer” (L. F. Veríssimo) e
que
causal subordinativo
em “
Eu
choro
que (=
porque) a
saudade existe.
O
autor
trabalha
com a valoração coordenativa (explicativa)
e subordinativa (causal) da
conjunção
porque.
Assim, o
porque
com
valor coordenativo
explicativo ocorre na
oração
coordenada
que apresenta uma
idéia
nova explicando uma afirmação
anterior;
geralmente é separada da
antecedente
por
ponto-e-vírgula
ou
vírgula. A
primeira
oração apresenta,
geralmente, o
verbo no
imperativo (Anda,
Maria,
porque
já
começa a
noite).
Já o
porque
com
valor subordinativo
causal situa uma
causa
em
relação à
conseqüência
que foi
exposta na
oração
principal. Pode
ser anteposta a esta
quando a
conjunção é substituída
por
como, o
que
não ocorre
com a coordenativa
explicativa. Ex.: “Desprezam-me
porque sou
pobre” [conseqüência
>
causa] e “Como sou
pobre, desprezam-me ” [causa
>
conseqüência].
Infante (1995: 441) conceitua as
orações
coordenadas explicativas
como aquelas
que expressam o
que levou
alguém a
fazer uma
declaração
anterior. Ex.: “
Não o perturbe,
que
ele
precisa
trabalhar”. O
autor
chama a
atenção
para
que
não confundamos
explicação
com
causa.
Segundo
ele uma
explicação é
sempre
posterior ao
fato
que a gerou; uma
causa é
sempre
anterior à
conseqüência
que dela resulta. Ao
apresentar as
orações
coordenadas (explicativas) Ulisses
Infante segue as
orientações da NGB e
este reconhece a
problemática
conceitual da
questão: coordenativas explicativas e/ou
subordinativas adverbiais
causais.
Segundo a NGB, as
orações
coordenadas sindéticas devem
ser classificadas de
acordo
com o
tipo de
conjunções
que as introduzem, levando-se
em
conta as
conjunções
que encabeçam essas
orações e
não o
sentido da
relação
que se estabelece. Corroborando essas
limitações, o
autor discute os
exemplos: “
Você
quer
ajuda, e
eu
não posso o
ajudar” e “ Faça o
que
lhe digo e será
bem-sucedido”, os
quais apresentam a
segunda
oração
como
orações
coordenadas sindéticas aditivas, encabeçadas
pela
conjunção e, seguindo
orientação da NGB.
Por
outro
lado, é
claro
que essas
orações
não
são
puramente aditivas: no
primeiro
caso, há
um
valor
adversativo [
Você
quer
ajuda,
mas
eu
não posso
ajudar]; no
segundo
caso, percebe-se
um
valor
consecutivo [ Faça o
que
lhe digo e
em
conseqüência será
bem-sucedido].
Infante (1995: 442) assevera “
Por
isso, voltamos a
insistir
em
que
você se preocupe
mais
com o
uso
efetivo das
estruturas
lingüísticas do
que
com as
intermináveis
discussões dos
gramáticos
sobre
questões de
nomenclatura...”
Ao
expor as
orações subordinadas adverbiais
causais,
Infante (1995: 427)
não polemiza,
ou seja, faz uma
definição
convencional: “causa é
aquilo
que provoca
um
determinado
fato”.
Argumenta
que a
conjunção subordinativa
mais utilizada
para a
expressão dessa
circunstância é
porque. Podendo
fazer
uso,
também, da
conjunção
como
em
orações subordinadas
sempre antepostas à
principal. “As
ruas foram alagadas
porque o
rio transbordou”; “
Como
não se planejaram adequadamente as
etapas de
realização do
projeto, os
trabalhos tiveram de
ser suspensos várias
vezes”.
Kury (1997: 89-125) admite a complexidade
conceitual ao
tratar de
orações
coordenadas explicativas e
orações subordinadas
causais.
Ele apresenta, didaticamente,
alguns
artifícios
práticos na
otimização do
processo
analítico.
1°) Tendo
sempre
em
mente
que a
oração
subordinada adverbial
vale
por
um
adjunto adverbial ( o
que
não acontece
com a
coordenada
explicativa, sintaticamente
independente), tente-se
substituir a
oração
desenvolvida
iniciada
com
que,
pois,
porque
por
outra equivalente, reduzida de
infinitivo,
iniciada
pela
preposição
por. Se
isso for
possível,
sem
forçar o
sentido é
sinal
evidente de
que a
oração
em
tela é
causal.
Segundo o
autor
esse
processo é o
mais
eficiente de
todos.
2°) Na
maior
parte dos
casos, a
oração
que antecede uma
explicativa tem o
verbo no
imperativo, indicando
tempo
futuro; compare-se: “
Não chores,
porque estou a
teu
lado.” (explicativa);
“
Não chores [
porque estou a
teu
lado] (causal),
que
não
te farei
mal.” (explicativa); “
Chorava [
porque a
mãe
não estava a
seu
lado]”. (
causal).
3°) Na
sua
maioria, as
orações
causais de
que,
pois,
porque podem substituir-se
por equivalentes
com os
conectivos
como (no
início do
período), uma
vez
que e
análogos, o
que
não é
possível
com as explicativas.
“ A
aplicação
conjunta destes
critérios,
mormente o
primeiro, sanará
talvez todas as
dúvidas,
principalmente se
não se
esquecer
este
fato :
só é
subordinada adverbial
causal a
oração
que exerce,
em
relação à
outra, a
função de
adjunto adverbial de
causa.” Kury (1997: 90). O
autor apresenta
exemplos
para
aplicação
prática.
1) “ Fala-lhe
tu,
que
eu
não quero
que
ele
me conheça.” (Camilo,
AP, 65.) Veja-se
que, neste
exemplo, é
perfeitamente
possível a
omissão do
conectivo: “ Fala-lhe
tu:
eu
não quero
que
ele
me conheça”, o
verbo da
oração
anterior está no
imperativo; seria
forçada a
substituição da
oração indicada
por
outra introduzida
por
como,
ou
por uma
oração reduzida.
Tudo
isso indica
que se
trata de
oração
independente
explicativa,
coordenada à
anterior.
2) “O povoléu
intacto fugia espavorido,
que
ninguém se atrevia ao
filho do
carregador.” O
segundo
exemplo
posto,
também,
nos possibilita o
entendimento de
que a
oração pode
ter
equivalência reduzida ( ...
por
não se atrever
ninguém...),
ou introduzida
por uma
vez
que,
ou
visto
que,
ou
como.
Assim, concluímos
que se
trata de
oração
subordinada adverbial de
causa.
O
desafio de
estudar a
Língua Portuguesa, requer de
nossa
parte
um
olhar
mais
amplo,
sem
perder de
vista os
aspectos
diacrônicos e sincrônicos deste
código.
Isto
posto, a
retomada de
textos
arcaicos é
oportuna,
pois no
registro de
textos
atuais encontramos
fenômenos
lingüísticos
que,
também, exigem
maior
atenção
para
compreensão e
interpretação, levando-se
em
conta o
processo estrutural e de
construção de
sentido.
Observando
estes
aspectos, especificamente os morfossintáticos,
centramos
nosso
estudo no
corpus “Cantiga
85 do
Cancioneiro da
Ajuda” (de Pero
Soares de Burgalês) na
versão Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
CANÇÃO
85 ( Tr.193)
Carolina Michaëlis de Vasconcelos
Qual
dona
Deus fez
melhor
parecer
e
que
fezo de quantas outras son
falar
melhor, e en
melhor razon,
e con tod’esto
melhor
prez aver,
5 e
mais
mansa das
que
eu
nunca
vi: 2030
aquesta fez[o]
desejar a
mi
Deus,
por
jamais
nunca
coita
perder.
Non
me fez
Deus
tal
dona ben
querer,
nen mi-a mostrou, se
por
aquesto non:
10
por aver
eu eno
meu
coraçon 2035
mui
grande
coita ja,
mentr’eu
viver’ .
Por én,
cativo,
mal-dia naci,
que
viverei, mentr’eu
viver’, assi
por quen-no
nunca
per min á
saber!
15 Nen ja
per outre non
o saberá, 2040
ca
eu a outre
nunca o direi,
per bõa
fé;
mais atanto
farei:
negá-lh’-ei sempr’
ata
que
moira ja.
E se mi-o
om’
adevin[h]ar
poder’,
20 e
pois a
vir’, e
tal esforç’
ouver’
que
lh’ouse ren
dizer,
por
si dirá!
Ca ben sei
eu, u
outra ren non
á,
que
tal esforç’
averá
qual
eu
ei
quando a vejo,
que
por ren non
sei
25
que
lh’i
dizer: e el assi
fará! 2050
Se
per
ventura
lhe
dizer quiser’
algũa ren,
ali u estever’
ant’ela,
todo
lh’escaescerá!
Ca
pois
vir’ – assi
Deus a
mi perdon! –
30 o
seu fremoso
parecer,
enton 2055
demo x’o lev’
o
que
lh’al nembrará!
Tradução
da
Cantiga
85
1ª
estrofe
Que
espécie de
mulher
Deus fez
com
melhor
aparência
e fez
falar
melhor
que
de todas as outras, e
com
melhor
raciocínio,
e
com
tudo
isso
ter
melhor
apreço e
ser
tão
meiga
como
igual
eu
nunca vi.
(
mais
meiga =
tão
meiga
que
eu
nunca vi
igual):
Deus
me fez
desejar
justamente
esta,
para
nunca
perder a
coita (o
sofrimento)
2ª
estrofe
Deus
não
me fez
tal
mulher
amar
nem a mostrou
a
mim,
a
não
ser
por
isso:
para
eu
ter no
meu
coração
o
maior
sofrimento,
enquanto
eu
viver
por
isso,
coitado de
mim, nasci
em
dia
tão
infeliz,
que
viverei
enquanto
eu
viver,
assim
por
quem
nunca
por
mim o saberá.
3ª
estrofe
Nem o saberei
por
outra
pessoa,
porque
eu
nunca a
outrem o
direi,
eu
juro;
farei
mais
isso (
tamanha
coisa):
sempre
lhe negarei
até
morrer.
E se
alguém
em
mim o puder
adivinhar,
e
depois a
vir, e tiver
ânimo a
ponto de
ousar dizer-lhe alguma
coisa,
por
si o dirá!.
4ª
estrofe
Porque
eu
bem sei,
quando
não há
outra
pessoa
que
tiver
tal
ânimo
quanto
eu tenho
quando a vejo,
que
não sei
por
nada o
que
lhe
dizer
sobre
isso!
Se
por
felicidade
lhe quiser
dizer
algo/coisa,
quando estiver
diante dela,
tudo
lhe cairá
em
esquecimento!
Finda
Porque
depois
que
vir –
assim
Deus
me perdoe! – a
sua
formosura,
então o
diabo se
leve o
que
outrem
lhe
lembrar!
4.
Análise do
corpus “Cantiga
85 do
Cancioneiro da
Ajuda” na
versão Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
Tendo
como aporte
teórico a
obra
Estruturas Trecentistas de Mattos e
Silva,
nos propusemos a
fazer
um
levantamento das
ocorrências do ca/que
na
Cantiga 85 (de Pero
Soares de Burgalês) do
Cancioneiro da
Ajuda, na
versão Carolina Michaëlis de Vasconcelos,
com o
objetivo de
verificar
suas
funções sintático-semânticas. Essa
abordagem
leva
em
conta a
dificuldade de
precisar se o ca/que
é
explicativo e/ou
causal
em
textos
arcaicos,
pois é
sabido
que
esse
significante está na
zona
limítrofe da
coordenação e da
subordinação.
Logo na
primeira
estrofe,
segundo
verso, “Qual
dona
Deus fez
melhor
parecer e
que fezo de quantas outras son...”
temos a
primeira
ocorrência do
que
com
valor de
pronome
relativo[
que = a
qual].
Ainda, nesta
estrofe, no
quinto
verso,
novamente o
que assume,
em
frase
comparativa, a
função de
pronome
relativo [das = do
que aquelas], desempenhando a
função
sintática de
objeto
direto [ a
mais
mansa
que
eu
nunca vi] =
eu
nunca vi (outra)
em
relação às
demais.
No
verso 13, o
que assume
valor
consecutivo “Por én,
cativo, mal-dia naci,
que viverei, mentr’eu
viver’, assi ”.
nascer
cativo =
viver
assim]. Há uma motivação causativa e
um
efeito
conseqüente.
Essa
ocorrência do
que merece uma
atenção
porque
nos
mostra uma
incidência desse
significante assumindo
função
sintática
limítrofe
entre a
coordenação e a
subordinação. Vejamos “ nasce
em
mal
dia” [causa] > “
viver
cativo” [explicativo],
o
fato de
nascer
em
dia
tão
infeliz
não implica
viver
assim
enquanto
viver,
mas há uma
relação de
ato e
efeito na
voz do “eu” poético.
No
verso 16, notamos o
uso do ca
que equivale a
que (porque)
causal,
pois
este
verso é continuidade do “[15]
Nen
já
per outre non o saberá, [16] ca
eu a outre
nunca o direi,”. Temos
ainda, no
verso 18,
um
que
acompanhado da
preposição
arcaica
ata “ata
que”, denotando uma temporalidade,
mas
que – ao
mesmo
tempo – sugere uma
idéia de causalidade se considerarmos a
seqüenciação do
décimo
sétimo
verso “[17]
per boa
fé;
mais atanto farei: [18]
negá-lh’-ei sempr’
ata
que
moira
já.”. No
vigésimo
primeiro
verso, a
ocorrência do
que tem
função
consecutiva
em continuidade ao
vigésimo
verso “[20] e
pois a
vir’, e
tal esforç’ ouver’, [21]
que lh’ ouse ren
dizer,
por
si dirá!”
Na
quarta
estrofe, no
verso “[22] Ca ben sei
eu, u
outra ren non á,” temos
um ca iniciando o
verso desempenhando valoração causativa, sendo
seguido
por
um
efeito seqüenciador
textual [ u
outra ren non á].
Já, no
verso [23] “
que
tal esforç’ averá
qual
eu
ei”, o
que
desempenha
função de
pronome
relativo [
que
tal esforç’ averá
qual
eu
ei ]
em
relação ao
verso
anterior.
A
incidência do
significante
que no
verso 24 “
quando a vejo,
que
por ren non sei ”
nos possibilita duas
análises.
Primeiro,
ele assume valoração de
elemento
integrante
em
relação ao
verso 22, respeitando-se a
oração circunstancial intercalada [
quando
não há
outra
pessoa]. Vejamos o
verso 22 “
Porque
eu
bem sei (...)
que
não sei”. Fica
evidente a
função do
conectivo
que sintaticamente
integrante.
Segundo, o
que
desempenha
função
sintática
consecutiva, levando-se
em
conta a
força
expressiva contida no
conjunto de
versos
composto dos
versos 22 a 25. No
vigésimo
quinto
verso, há
incidência de
um
que
com
função de
pronome
relativo [
que lh’i
dizer: e el assi fará]
em
relação ao
vigésimo
quarto
verso.
Na finda,
verso 29, o ca
inicial é causativo,
pois
logo, a
seguir, ocorre
um
efeito
que é o “perdão de
Deus”.
Por
fim, no
trigésimo
primeiro
verso,
mais uma
incidência do
que
com
função de
pronome
relativo de
cunho
restritivo [
demo x’o lev o
que lh’al nembrará! ].
As
ocorrências do
CA
nos
versos 22 e
29, desempenham
funções de
elementos de
ligação de
frases/versos
e
nos permite
inferir
que essas
ocorrências
estão no
limite
causal/explicativo
por
circunstância
contextual.
Vejamos no
verso 22 “Ca
ben sei
eu,
u
outra
ren non á,” [Porque
eu
bem sei,
quando
não há
outra
pessoa
que tiver
ânimo
quanto
eu tenho
quando a vejo]
um
eu
subjetivo
que sofre
um
efeito,
ciente da
causa,
frente à
amada.
Esse
efeito é
deduzido
pela
razão de
somente “ele”
saber do
sentimento
que tem
por
ela.
Já no
verso 29, o CA
está
mais
para a
explicação da
causa do
sentimento do
“eu”
textual, dando
mostras de
que
não
lhe importa o
que
outrem
lembrar
ou
pensar a
respeito da “amada”
dele – no
que se refere
à
formosura
que
ela apresenta.
O
que importa é
o
que
ele sentiu e
viveu
por
ela.
Conclusão
Ao analisarmos
esse
significante ca/que
em
textos
arcaicos e verificarmos a
sua complexidade no
que se refere à classificação sintático-semântica
em
sua
ocorrência no
corpus escolhido, percebemos
que essa complexidade
também está
presente
em
textos e/ou
discursos sincrônicos.
Nossos
gramáticos
atuais
pouco
ou
quase
nada trazem a
respeito do
significante
em
estudo, o
que
nos permite
dizer
que a
incidência de ca/que
como coordenante (explicativo)
ou
como subordinante (causal)
deve
ser
determinada
significadamente
pelo
contexto. Há
que se
levar
em
consideração a NGB,
pois dela advêm os
nortes
que registram as
gramáticas de
nossa
língua.
Importante
lembrar
que
esse
fenômeno tem ocorrido
em
textos
tanto
diacrônicos
como sincrônicos. É
notória a
contribuição de Mattos e Silva (1989)
quando aborda a
questão na
obra
Estruturas Trecentistas analisando os
Diálogos de
Santo Gregório.
Esse
estudo é
instigante e
exigente,
pois tratamos
aqui da
ocorrência do
significante ca/que
e
seu
uso
que
ora se
comporta
como coordenante (explicativo)
ora subordinante (causal),
constituindo uma
zona
limítrofe
entre a
coordenação e a
subordinação.
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