A PALAVRAQUE’ SUBORDINANTE
INTERFACE
CAUSAL-EXPLICATIVA
UMA
ABORDAGEM DIACRÔNICA

Geraldo José da Silva (UEMS)

 

Introdução

É comum a constatação de dificuldade por parte dos estudiosos da Língua Portuguesa em analisar as funções do que na constituição dos períodos compostos por coordenação e por subordinação em situação sincrônica. Dada a complexidade do uso desse conectivo, uma vez que o mesmo se encontra na zona limítrofe da coordenação e da subordinação e, também, a proximidade sintático-semântica na manifestação textual, nos propusemos a fazer uma reflexão – à luz de uma abordagem diacrônica – desse fenômeno.

Objetiva este trabalho fazer um levantamento de ocorrências do que/ca subordinante, às vezes coordenante, em textos arcaicos, destacando-se os valores sintático-semânticos centrados em enunciados de cunho causal e explicativo. Para melhor entender as ocorrências e funções desse significante, elegemos a cantiga 85 do Cancioneiro da Ajuda, de Pero Soares de Burgalês, como texto base para o estudo das ocorrências do que/ca visando ao aclaramento analítico do uso desse conectivo em situação atual.

O estudo balizado pelo viés diacrônico desta questão dará maior consistência analítica e, com certeza, maior segurança no trato do objeto, razão da pesquisa em tela.

 

Fundamentação teórica

Considerando a variedade de uso do ca/que e sua polissemia, vê-se que esse significante ora é coordenante, ora é subordinante, podendo na fase arcaica da língua equivaler, também, ao que integrante e ao do que ou que de enunciados comparativos e consecutivos. O uso do ca explicativo ou quia ou qua latinos é muito freqüente na documentação arcaica. Mattos e Silva assim assevera:

A dificuldade da classificação do ca não está, como ocorreu com adversativas e conclusivas-explicativas, em considerá-lo conjunção ou adverbial, mas em considerá-lo subordinante ou coordenante e, optando-se por uma dessas duas possiblidades, que tipo de subordinante ou coordenante: causal (classificação mais generalizada), consecutiva, explicativa. A dificuldade é de natureza sintáctica e semântica. (1989: 690).

Em Estruturas trecentistas, a autora afirma que “os enunciados introduzidos por ca estão naquela duvidosa zona limítrofe da coordenação e da subordinação”. Isto nos remete à grande dificuldade de análise da ocorrência desse significante nos enunciados da língua em uso arcaico e, mais ainda, no aspecto sincrônico. Em consonância com a autora, percebemos que o enunciado introduzido por ca (coordenante) sempre sucede, como em qualquer coordenada, ao enunciado a que se liga, explicitando-o ou justificando-o; com os enunciados subordinados circunstanciais, as causais iniciadas sobretudo por porque (semanticamente afins aos iniciados por ca) podem anteceder ou suceder o enunciado básico.

Para Mattos e Silva (1989: 691), é mais adequado classificar ca como explicativo, uma vez que o valor semântico de ca é mais abrangente por expressar uma justificação, uma motivação, uma exemplificação e não estritamente uma causa, embora em certos contextos expresse a causa.

Em situações causais, faz falta o falante nativo para informar se o ca e o porque teriam nestes contextos valor idêntico, se seriam, portanto, intercambiáveis. “Ide-vos a boa ventura, ca non ei eu mester cavalo.” (MATTOS E SILVA, 1989: 692).

A autora nos apresenta - na obra analisada - que ca e porque causais ocorrem em um mesmo enunciado complexo, sendo observável a distribuição sintática distinta desses dois conectivos de semântico, senão idênticos, bastante aproximados. “E o santo homem deu muitas graças a deus porque metera en coraçon ao papa de o querer veer, portanto mandou aos seus monges que guisassen bestas pêra o camĩho ca el logo se queria ir”.(id., ibid., p. 693-694).

Prosseguindo sua análise, Mattos e Silva ( 1989: 696-698) nos apresenta considerações relevantes, onde aborda que

...a subordinação de um enunciado a outro se realiza por um enunciado introduzido por conectivo subordinante e com verbo em uma de suas formas finitas ou em formas nominais: infinitivo, gerúndio, particípio passado. O enunciado subordinado integra o que se comunica no enunciado subordinante por expressar um facto circunstancial complementar [as circunstanciais]; ou por expressar um facto exigido por um dos componentes do enunciado subordinante [sintagma nominal sujeito ou complemento= as completivas]; ou por expressar uma qualificação de algum elemento desse enunciado [sintagma nominal qualificador = as restritivas].

O que é um paradigma que se multiplica em seu uso sintaticamente, pois dependendo do contexto assume posição e função coordenativa e, também, subordinativa [introduzindo enunciados circunstanciais, relativos e completivos].

Retomando nosso viés de pesquisa e análise, vejamos a ocorrência de que com valor causal apresentado por Mattos e Silva (1989: 698): “E non é maravilha se as irmãã mais agĩha gaanhou de nosso Senhor o que cobiçou ca seu irmão, ca, se Deus he amor, assi como diz San Joane, dereito juizo de Deus foi aquela podesse mais que mais amou”.

Mattos e Silva (1993: 111) argumenta que no período arcaico o que, integrante, varia com ca, mas essa variante tem freqüência baixa em relação a que e começa a deixar de ser documentada no século XV. Para a autora o que, no período arcaico, como hoje, é o “pronome relativo primário em português. Representa, historicamente, um nivelamento do nominativo latino que (Masc.), quae (fem.), quod (neutro) e dos acusativos quem, quam, quod também”.

Na documentação arcaica, embora pouco freqüente, o relativo que ocorre grafado ca, tal como ocorre com a integrante que. No processo de constituição das línguas românicas, a partir do latim corrente, poucas das conjunções subordinativas do latim clássico permaneceram: que < quid, como < quomodo, quando < quando, se < si, ca < quia.

“A coordenação explicativa tem como conectivo mais corrente na documentação arcaica o ca, cujo étimo em geral proposto é o quia do latim. Mantém-se presente até o século XVI, mas se perderá em proveito de pois, etimologicamente um temporal (< lat. post)”, diz Mattos e Silva (1993: 121).

Vale chamar a atenção para o fato de que este ca, homógrafo do ca integrante e relativo antes referidos, remete diacronicamente para o quia latino.

Ainda para a autora, “as explicativas e causais estão no limite entre coordenação e subordinação, se se admitir que esses mecanismos representam um continuum de possibilidades que vai da subordinação plena, como é o caso das completivas marcadas, sobretudo, pelo que, constituinte essencial à sentença de que depende, até a coordenação plena que é a adição simples, marcada pelo e (1993: 122).

Almeida (1999: 352-355) explica que as conjunções explicativas “ligam duas orações, explanando ou continuando a segunda o sentido da primeira: Ex.: Morreu, ou seja, deixou de incomodar-nos”. as conjunções causais “ligam duas orações, das quais uma depende da outra, como o efeito depende da causa; a que indica o efeito é a principal, e a que representa a causa é a subordinada. Ex.: Cansado que fiquei, procurei apoio.”

O autor discute a questão conceitual trazida pela NGB no tocante ao uso do que ora causal, ora explicativo. A NGB (Apud ALMEIDA, 1999: 355) traz: “As conjunções que e porque e equivalentes ora têm valor coordenativo, ora subordinativo; no primeiro caso, chamam-se explicativas; no segundo caso, causais”. Segundo o autor, há grave engano nesse trato conceitual e ainda questiona o exemplo: “ Não suba, que você cai” onde apresenta uma análise em que a subordinada constitui uma explicação, sem porém deixar de implicar motivo. E acrescenta Almeida (1999: 355) “A admitir as causais como explicativas, forçoso se torna admitir como explicativas as finais, as temporais e ainda outras”.

Polemiza também se que, quando tem valor subordinativo, é causal, pode-se dizer que que no período “Gostaria que eles estudassem” é causal? E se que com valor coordenativo é explicativo no período “Mexe que mexe”?

Conclui o autor “ parece que o que houve foi terem dado à palavraexplicativa o sentido lato de ‘declarativa’, ou terem confundido conjunção com oração, ou gramática com filosofia” (1999: 355).

Cunha e Cintra (1985: 567-572) conceituam as conjunções explicativas como sendo a ligação entre duas orações, a segunda das quais justifica a idéia contida na primeira. Ex.: Vamos comer, Açucena, que estou morrendo de fome. (Adonias Filho). Também registram que as conjunções adverbiais subordinadas causais iniciam uma oração subordinada denotadora de causa. Exemplos: Tenho continuado a poetar, porque decididamente se me renovou o estro. (A . de Quental); Como as pernas trôpegas exigiam repouso, descia raro à cidade. (G. Ramos)

Mesquita (1996: 436-445) apresenta o que explicativo coordenativo no exemplo: “ Parem esse troço que eu vou descer” (L. F. Veríssimo) e que causal subordinativo emEu choro que (= porque) a saudade existe.

O autor trabalha com a valoração coordenativa (explicativa) e subordinativa (causal) da conjunção porque. Assim, o porque com valor coordenativo explicativo ocorre na oração coordenada que apresenta uma idéia nova explicando uma afirmação anterior; geralmente é separada da antecedente por ponto-e-vírgula ou vírgula. A primeira oração apresenta, geralmente, o verbo no imperativo (Anda, Maria, porque começa a noite). o porque com valor subordinativo causal situa uma causa em relação à conseqüência que foi exposta na oração principal. Pode ser anteposta a esta quando a conjunção é substituída por como, o que não ocorre com a coordenativa explicativa. Ex.: “Desprezam-me porque sou pobre[conseqüência > causa] e “Como sou pobre, desprezam-me ” [causa > conseqüência].

Infante (1995: 441) conceitua as orações coordenadas explicativas como aquelas que expressam o que levou alguém a fazer uma declaração anterior. Ex.: “ Não o perturbe, que ele precisa trabalhar”. O autor chama a atenção para que não confundamos explicação com causa. Segundo ele uma explicação é sempre posterior ao fato que a gerou; uma causa é sempre anterior à conseqüência que dela resulta. Ao apresentar as orações coordenadas (explicativas) Ulisses Infante segue as orientações da NGB e este reconhece a problemática conceitual da questão: coordenativas explicativas e/ou subordinativas adverbiais causais. Segundo a NGB, as orações coordenadas sindéticas devem ser classificadas de acordo com o tipo de conjunções que as introduzem, levando-se em conta as conjunções que encabeçam essas orações e não o sentido da relação que se estabelece. Corroborando essas limitações, o autor discute os exemplos: “ Você quer ajuda, e eu não posso o ajudar” e “ Faça o que lhe digo e será bem-sucedido”, os quais apresentam a segunda oração como orações coordenadas sindéticas aditivas, encabeçadas pela conjunção e, seguindo orientação da NGB. Por outro lado, é claro que essas orações não são puramente aditivas: no primeiro caso, há um valor adversativo [ Você quer ajuda, mas eu não posso ajudar]; no segundo caso, percebe-se um valor consecutivo [ Faça o que lhe digo e em conseqüência será bem-sucedido].

Infante (1995: 442) assevera “ Por isso, voltamos a insistir em que você se preocupe mais com o uso efetivo das estruturas lingüísticas do que com as intermináveis discussões dos gramáticos sobre questões de nomenclatura...”

Ao expor as orações subordinadas adverbiais causais, Infante (1995: 427) não polemiza, ou seja, faz uma definição convencional: “causa é aquilo que provoca um determinado fato”. Argumenta que a conjunção subordinativa mais utilizada para a expressão dessa circunstância é porque. Podendo fazer uso, também, da conjunção como em orações subordinadas sempre antepostas à principal. “As ruas foram alagadas porque o rio transbordou”; “ Como não se planejaram adequadamente as etapas de realização do projeto, os trabalhos tiveram de ser suspensos várias vezes”.

Kury (1997: 89-125) admite a complexidade conceitual ao tratar de orações coordenadas explicativas e orações subordinadas causais. Ele apresenta, didaticamente, alguns artifícios práticos na otimização do processo analítico.

1°) Tendo sempre em mente que a oração subordinada adverbial vale por um adjunto adverbial ( o que não acontece com a coordenada explicativa, sintaticamente independente), tente-se substituir a oração desenvolvida iniciada com que, pois, porque por outra equivalente, reduzida de infinitivo, iniciada pela preposição por. Se isso for possível, sem forçar o sentido é sinal evidente de que a oração em tela é causal. Segundo o autor esse processo é o mais eficiente de todos.

2°) Na maior parte dos casos, a oração que antecede uma explicativa tem o verbo no imperativo, indicando tempo futuro; compare-se: “ Não chores, porque estou a teu lado.” (explicativa); “ Não chores [ porque estou a teu lado] (causal), que não te farei mal.” (explicativa); “ Chorava [ porque a mãe não estava a seu lado]”. ( causal).

3°) Na sua maioria, as orações causais de que, pois, porque podem substituir-se por equivalentes com os conectivos como (no início do período), uma vez que e análogos, o que não é possível com as explicativas.

“ A aplicação conjunta destes critérios, mormente o primeiro, sanará talvez todas as dúvidas, principalmente se não se esquecer este fato : é subordinada adverbial causal a oração que exerce, em relação à outra, a função de adjunto adverbial de causa.” Kury (1997: 90). O autor apresenta exemplos para aplicação prática.

1) “ Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.” (Camilo, AP, 65.) Veja-se que, neste exemplo, é perfeitamente possível a omissão do conectivo: “ Fala-lhe tu: eu não quero que ele me conheça”, o verbo da oração anterior está no imperativo; seria forçada a substituição da oração indicada por outra introduzida por como, ou por uma oração reduzida. Tudo isso indica que se trata de oração independente explicativa, coordenada à anterior.

2) “O povoléu intacto fugia espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do carregador.” O segundo exemplo posto, também, nos possibilita o entendimento de que a oração pode ter equivalência reduzida ( ... por não se atrever ninguém...), ou introduzida por uma vez que, ou visto que, ou como. Assim, concluímos que se trata de oração subordinada adverbial de causa.

O desafio de estudar a Língua Portuguesa, requer de nossa parte um olhar mais amplo, sem perder de vista os aspectos diacrônicos e sincrônicos deste código. Isto posto, a retomada de textos arcaicos é oportuna, pois no registro de textos atuais encontramos fenômenos lingüísticos que, também, exigem maior atenção para compreensão e interpretação, levando-se em conta o processo estrutural e de construção de sentido.

Observando estes aspectos, especificamente os morfossintáticos, centramos nosso estudo no corpusCantiga 85 do Cancioneiro da Ajuda(de Pero Soares de Burgalês) na versão Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

 

CANÇÃO 85 ( Tr.193)

Carolina Michaëlis de Vasconcelos

 

Qual dona Deus fez melhor parecer

e que fezo de quantas outras son

falar melhor, e en melhor razon,

e con tod’esto melhor prez aver,

5    e mais mansa das que eu nunca vi:          2030

aquesta fez[o] desejar a mi

      Deus, por jamais nunca coita perder.

     

       Non me fez Deus tal dona ben querer,

      nen mi-a mostrou, se por aquesto non:

10  por aver eu eno meu coraçon                  2035

      mui grande coita ja, mentr’eu viver’ .

      Por én, cativo, mal-dia naci,

      que viverei, mentr’eu viver’, assi

      por quen-no nunca per min á saber!

 

15         Nen ja per outre non o saberá,         2040

      ca eu a outre nunca o direi,

      per bõa ; mais atanto farei:

      negá-lh’-ei sempr’ ata que moira ja.

      E se mi-o om’ adevin[h]ar poder’,

20  e pois a vir’, e tal esforç’ ouver’

      que lh’ouse ren dizer, por si dirá!

     

                     Ca ben sei eu, u outra ren non á,

      que tal esforç’ averá qual eu ei

      quando a vejo, que por ren non sei

25  que lh’i dizer: e el assi fará!                    2050

      Se per ventura lhe dizer quiser’

      algũa ren, ali u estever’

ant’ela, todo lh’escaescerá!

 

        Ca pois vir’ – assi Deus a mi perdon! –

30  o seu fremoso parecer, enton                  2055

      demo x’o lev’ o que lh’al nembrará!

 

Tradução da Cantiga 85 [1]

estrofe

Que espécie de mulher Deus fez com melhor aparência

e fez falar melhor que de todas as outras, e com melhor raciocínio,

e com tudo isso ter melhor apreço e ser tão meiga como igual eu nunca vi.

( mais meiga = tão meiga que eu nunca vi igual):

Deus me fez desejar justamente esta, para nunca perder a coita (o sofrimento)

 

estrofe

Deus não me fez tal mulher amar nem a mostrou a mim,

a não ser por isso: para eu ter no meu coração

o maior sofrimento, enquanto eu viver

por isso, coitado de mim, nasci em dia tão infeliz, que viverei

enquanto eu viver, assim por quem nunca por mim o saberá.

 

estrofe

Nem o saberei por outra pessoa, porque eu nunca a outrem o direi, eu juro;

farei mais isso ( tamanha coisa): sempre lhe negarei até morrer.

E se alguém em mim o puder adivinhar,

e depois a vir, e tiver ânimo a ponto de ousar dizer-lhe alguma coisa,

por si o dirá!.

 

estrofe

Porque eu bem sei, quando não outra pessoa

que tiver tal ânimo quanto eu tenho

quando a vejo, que não sei

por nada o que lhe dizer sobre isso!

Se por felicidade lhe quiser dizer algo/coisa, quando estiver diante dela,

tudo lhe cairá em esquecimento!

 

Finda

Porque depois que vir assim Deus me perdoe! – a sua formosura,

então o diabo se leve o que outrem lhe lembrar!

 

4. Análise do corpusCantiga 85 do Cancioneiro da Ajuda” na versão Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Tendo como aporte teórico a obra Estruturas Trecentistas de Mattos e Silva, nos propusemos a fazer um levantamento das ocorrências do ca/que na Cantiga 85 (de Pero Soares de Burgalês) do Cancioneiro da Ajuda, na versão Carolina Michaëlis de Vasconcelos, com o objetivo de verificar suas funções sintático-semânticas. Essa abordagem leva em conta a dificuldade de precisar se o ca/que é explicativo e/ou causal em textos arcaicos, pois é sabido que esse significante está na zona limítrofe da coordenação e da subordinação.

Logo na primeira estrofe, segundo verso, “Qual dona Deus fez melhor parecer e que fezo de quantas outras son...” temos a primeira ocorrência do que com valor de pronome relativo[ que = a qual]. Ainda, nesta estrofe, no quinto verso, novamente o que assume, em frase comparativa, a função de pronome relativo [das = do que aquelas], desempenhando a função sintática de objeto direto [ a mais mansa que eu nunca vi] = eu nunca vi (outra) em relação às demais.

No verso 13, o que assume valor consecutivoPor én, cativo, mal-dia naci, que viverei, mentr’eu viver’, assi ”. nascer cativo = viver assim]. Há uma motivação causativa e um efeito conseqüente.

Essa ocorrência do que merece uma atenção porque nos mostra uma incidência desse significante assumindo função sintática limítrofe entre a coordenação e a subordinação. Vejamos “ nasce em mal dia” [causa] > “ viver cativo” [explicativo], o fato de nascer em dia tão infeliz não implica viver assim enquanto viver, mas há uma relação de ato e efeito na voz do “eu” poético.

No verso 16, notamos o uso do ca que equivale a que (porque) causal, pois este verso é continuidade do “[15] Nen per outre non o saberá, [16] ca eu a outre nunca o direi,”. Temos ainda, no verso 18, um que acompanhado da preposição arcaica ata ata que”, denotando uma temporalidade, mas que – ao mesmo tempo – sugere uma idéia de causalidade se considerarmos a seqüenciação do décimo sétimo verso “[17] per boa ; mais atanto farei: [18] negá-lh’-ei sempr’ ata que moira .”. No vigésimo primeiro verso, a ocorrência do que tem função consecutiva em continuidade ao vigésimo verso “[20] e pois a vir’, e tal esforç’ ouver’, [21] que lh’ ouse ren dizer, por si dirá!”

Na quarta estrofe, no verso “[22] Ca ben sei eu, u outra ren non á,” temos um ca iniciando o verso desempenhando valoração causativa, sendo seguido por um efeito seqüenciador textual [ u outra ren non á]. , no verso [23] “ que tal esforç’ averá qual eu ei”, o que desempenha função de pronome relativo [ que tal esforç’ averá qual eu ei ] em relação ao verso anterior.

A incidência do significante que no verso 24 “ quando a vejo, que por ren non sei ” nos possibilita duas análises. Primeiro, ele assume valoração de elemento integrante em relação ao verso 22, respeitando-se a oração circunstancial intercalada [ quando nãooutra pessoa]. Vejamos o verso 22 “ Porque eu bem sei (...) que não sei”. Fica evidente a função do conectivo que sintaticamente integrante. Segundo, o que desempenha função sintática consecutiva, levando-se em conta a força expressiva contida no conjunto de versos composto dos versos 22 a 25. No vigésimo quinto verso, há incidência de um que com função de pronome relativo [ que lh’i dizer: e el assi fará] em relação ao vigésimo quarto verso.

Na finda, verso 29, o ca inicial é causativo, pois logo, a seguir, ocorre um efeito que é o “perdão de Deus”. Por fim, no trigésimo primeiro verso, mais uma incidência do que com função de pronome relativo de cunho restritivo [ demo x’o lev o que lh’al nembrará! ].

As ocorrências do CA nos versos 22 e 29, desempenham funções de elementos de ligação de frases/versos e nos permite inferir que essas ocorrências estão no limite causal/explicativo por circunstância contextual. Vejamos no verso 22 “Ca ben sei eu, u outra ren non á,” [Porque eu bem sei, quando não outra pessoa que tiver ânimo quanto eu tenho quando a vejo] um eu subjetivo que sofre um efeito, ciente da causa, frente à amada. Esse efeito é deduzido pela razão de somenteele saber do sentimento que tem por ela. no verso 29, o CA está mais para a explicação da causa do sentimento do “eu textual, dando mostras de que não lhe importa o que outrem lembrar ou pensar a respeito da “amada” dele – no que se refere à formosura que ela apresenta. O que importa é o que ele sentiu e viveu por ela.

 

Conclusão

Ao analisarmos esse significante ca/que em textos arcaicos e verificarmos a sua complexidade no que se refere à classificação sintático-semântica em sua ocorrência no corpus escolhido, percebemos que essa complexidade também está presente em textos e/ou discursos sincrônicos. Nossos gramáticos atuais pouco ou quase nada trazem a respeito do significante em estudo, o que nos permite dizer que a incidência de ca/que como coordenante (explicativo) ou como subordinante (causal) deve ser determinada significadamente pelo contexto. Há que se levar em consideração a NGB, pois dela advêm os nortes que registram as gramáticas de nossa língua. Importante lembrar que esse fenômeno tem ocorrido em textos tanto diacrônicos como sincrônicos. É notória a contribuição de Mattos e Silva (1989) quando aborda a questão na obra Estruturas Trecentistas analisando os Diálogos de Santo Gregório.

Esse estudo é instigante e exigente, pois tratamos aqui da ocorrência do significante ca/que e seu uso que ora se comporta como coordenante (explicativo) ora subordinante (causal), constituindo uma zona limítrofe entre a coordenação e a subordinação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, N.M. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 44ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

CANCIONEIRO DA AJUDA. Ed. de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Vol. I. Reimpressão da edição de Halle (1904), acrescentada do prefácio de Ivo de Castro e do Glossário das Cantigas (Revista Lusitana, XXIII). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990.

CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

INFANTE, U. Curso de Gramática Aplicada aos Textos. São Paulo: Scipione, 1995.

KURY, A . G. Novas lições de análise sintática. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1997.

MATTOS E SILVA, R.V. Estruturas trecentistas. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989.

MATTOS E SILVA, R.V. O Português Arcaico Morfologia e Sintaxe. São Paulo: Contexto, 1993.

MESQUITA, R. M. Gramática da Língua Portuguesa. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.


 

[1] A tradução é minha, com observações do Dr. João Bortolanza. Professor visitante na UEMS/Dourados-MS. Coordenador do Núcleo de Estudos Clássicos e Diacrônicos da UEMS.