A REALIZAÇÃO DO DATIVO ANAFÓRICO
DE
TERCEIRA PESSOA NA ESCRITA SEMIFORMAL
BRASILEIRA E PORTUGUESA

Gilson Costa Freire (UFRJ)

 

1- INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, diferentes trabalhos sobre o português falado no Brasil têm sinalizado uma mudança na realização do dativo anafórico de terceira pessoa, uma vez que o clítico preconizado pela tradição escolar apresenta baixa ou nenhuma produtividade, o que licencia outras estratégias, como o uso do pronome lexical e do SN anafórico regidos ou não por preposição, além da categoria vazia (cf. Berlinck, 1996; Gomes, 1999; Freire, 2000). No entanto, verifica-se que, na fala lusitana, a variante padrão ainda é muito empregada na referência à terceira pessoa (cf. Freire, 2000). Tais constatações indubitavelmente contribuem para corroborar a hipótese de Galves (1998), segundo a qual o Português Brasileiro (PB) e o Português Europeu (PE) seriam duas gramáticas distintas.

Por outro lado, pouco se sabe a respeito do uso efetivo do clítico e a possível implementação das variantes mencionadas acima como estratégias de representação do dativo anafórico de terceira pessoa na escrita. O presente trabalho visa focalizar esse fenômeno, a partir de textos de entrevistas transcritas em jornais e revistas brasileiros e portugueses, visto que constituem amostras do registro escrito semiformal, permitindo assim verificar a possível infiltração de características da fala na escrita.

Dessa forma, este trabalho pretende trazer mais uma contribuição à descrição do português, uma vez que investiga até que ponto as mudanças apontadas pelas pesquisas no registro oral sobre a substituição do clítico dativo de terceira pessoa se encontram implementadas na escrita semiformal brasileira, o que conduz a uma reflexão sobre a atuação da escola em sua tarefa de ensinar as formas prestigiadas pela tradição gramatical.


 

O DATIVO ANAFÓRICO DE TERCEIRA PESSOA

Na análise das amostras, usou-se como critério de identificação das variantes candidatas à realização do dativo anafórico a possibilidade de substituição pelo clítico lhe, sendo então definidas as seguintes variantes:

a) uso do clítico dativo

(01)               Que o Brasil saiba festejar com Elba e lhe agradecer pelo seu enorme talento e generosidade. [PB: Revista DOMINGO do Jornal do Brasil, 07-11-1999][1]

(02)               Eu gosto mais de fotojornalismo do que retratar pessoas, mas um dia, conversando com o Cardoso Pires, disse-lhe que era interessante fotografar algumas personagens. [PE: DNA, 05-02-2000]

b) uso do SP anafórico constituído por

b1) pronome lexical

(03)               A conversa com Dona Lily foi boa e vou apresentar a ela nosso programa para a população de rua. [PB: Revista DOMINGO do Jornal do Brasil, 25-04-1999]

b2) SN

(04)               Eu tenho feito um trabalho(…) para ensinar música e bateria para os internos órfãos e para a comunidade carente do Morro Azul. Você acha que a música e a educação musical são capazes de dar uma formação moral mais digna para essas pessoas? [PB: Revista DOMINGO do Jornal do Brasil, 24-10-1999]

c) uso do dativo nulo

(05)               Mas de volta a Londres, encontramos uma carta da princesa à Lúcia, agradecendo __ a companhia. [PB: Jornal do Brasil, 06-07-2003]

(06)               “Por que é que você manda fotografias que dão uma má imagem de Portugal, se temos paisagens tão bonitas?”, perguntava ele. E eu respondia __: “Desculpe, senhor Inspector, mas eu não invento nada.” [PE: DNA, 05-02-2000]

O cômputo geral dos dados, distribuído de acordo com as variantes levantadas, é apresentado a seguir:

Tabela 1. Distribuição dos dados computados segundo a variante usada.

Variantes

Clítico

SP anafórico

Dativo nulo

Total

Variedades

N.º

%

N.º

%

N.º

%

N.º

%

PB

2

9

14

67

5

24

21

100

PE

20

91

2

9

22

100

Deve-se registrar que foi analisada uma boa quantidade de entrevistas tanto no PB quanto no PE, todavia o limitado número de dados deve-se à opção que se fez de focalizar apenas o dativo que serve de complemento a verbos acompanhados de objeto direto, representando o que Rocha Lima (1998) caracteriza como verdadeiro objeto indireto, isto é, o ser “a que se dirige ou destina a ação ou estado que o processo verbal expressa” (p. 248). Por essa razão, foram levantados nas amostras apenas os verbos que projetam dois argumentos internos, ou seja, os verbos dandi, dicendi e rogandi, que não ocorrem com tanta freqüência no discurso como outros tipos de verbo. Não obstante isso, a tabela acima revela diferenças fundamentais entre as duas variedades da língua. No PB, o uso do SP anafórico (67%) se apresenta como a estratégia predileta na realização do dativo de terceira pessoa, seguido discretamente pelo emprego do dativo nulo ou categoria vazia (24%), ocorrendo um uso bastante periférico do clítico (9%). no PE, o clítico (91%) se mantém praticamente como a variante absoluta na representação do dativo anafórico de terceira pessoa, visto que o uso do dativo nulo ou categoria vazia é insignificante (9%) e não se registrou o emprego de SP. Essas constatações refletem os resultados sobre o mesmo fenômeno na fala: em Freire (2000), não se encontrou um uso sequer de clítico dativo de terceira pessoa no PB, ao contrário do que se verificou no PE, em que essa variante apresentou um índice de 88% de ocorrência. Tais resultados vêm reforçar a hipótese de Galves (1993, 1998) sobre o enfraquecimento da concordância no PB, uma vez que o clítico, interpretado como elemento de concordância, mostra-se ausente na fala e inexpressivo na escrita semiformal brasileira para expressar o dativo anafórico de terceira pessoa. Por conseguinte, isso fornece mais um indício de que o PB e o PE constituiriam duas línguas-I distintas.


 

Condicionamentos lingüísticos

Os dados da amostra foram submetidos à análise de fatores como tipo de verbo, distância do referente e traço semântico, a fim de investigar as condições que mais favorecem a ocorrência de cada variante candidata à realização do dativo anafórico de terceira pessoa.

 

Tipo de verbo

Os dados foram distribuídos a partir da classificação proposta por Rocha Lima (1998: 249) para os verbosbitransitivos”, isto é, os verbos transitivos diretos e indiretos, a saber: dandi, dicendi e rogandi.

a) dandi protótipo: dar com seus correlatos e reversos.

(07)               Fui aluno da Conceição (…) Isso a ela latitude para falar mal de mim à vontade. [PB: O Globo, 13-07-2003]

(08)               (…) o que é importante é que a pessoa aja de acordo com o que considera correcto em sua consciência, mesmo que não seja o mais conveniente, mesmo que não seja aquilo que lhe traz mais vantagens imediatas(…) [PE: DNA, 26-02-2000]

b) dicendi protótipo: dizer com seus correlatos e reversos.

(09)               Eu me senti muito honrado pelo presidente Lula com o convite para trabalhar na sua equipe. (…) Disse para ele: se o senhor quiser, eu ajudo onde for útil. [PB: Jornal do Brasil, 06-07-2003]

(10)               O ministro dos Negócios Estrangeiros, julgo que era o Rui Patrício (…) E num desses almoços o correspondente da Associeted Press perguntou-lhe: “Sr. ministro, por que é que o Gageiro foi preso?(…)” [PE: DNA, 05-02-2000]

c) rogandi protótipo: pedir com seus correlatos.

(11)               Pelo que soube, ele nunca disse que eu era envolvido com o tráfico. Não pedi a ele que diminuísse as incursões para favorecer o tráfico. [PB: Jornal do Brasil, 25-05-2003]

As tabelas seguintes apresentam a distribuição dos dados:


 

Tabela 2. Distribuição das variantes segundo o tipo de verbo no PB.

PORTUGUÊS BRASILEIRO

Tipo de verbo

Clítico

SP anafórico

Dativo nulo

Dandi

90%

10%

Dicendi

26%

37%

37%

Rogandi

67%

33%

 

Tabela 3. Distribuição das variantes segundo o tipo de verbo no PE.

PORTUGUÊS EUROPEU

Tipo de verbo

Clítico

Dativo nulo

Dandi

100%

Dicendi

80%

20%

A respeito do PB, percebe-se que o SP anafórico ocorre em todos os tipos de verbo transitivo direto e indireto na realização do dativo anafórico, sendo seu uso majoritário com os verbos dandi e rogandi. Há, no entanto, um ligeiro equilíbrio entre os verbos dicendi, quando aparecem o clítico (26%) e o dativo nulo (37%) concorrendo com ele. Muito provavelmente seria esse o contexto em que o clítico mais persistiria na escrita, o que deve ser checado em trabalhos posteriores. Quanto ao PE, mesmo não tendo ocorrido verbos do tipo rogandi na amostra, depreende-se que é o clítico que aparece com maior freqüência entre os verbos transitivos diretos e indiretos na realização do dativo anafórico de terceira pessoa, havendo uma pequena variação entre o verbos dicendi, com um índice de 20% de apagamento, o que não representa algo significativo a ponto de sinalizar uma possível mudança, dada a ausência desse apagamento em outros contextos. De qualquer forma, os dados apontam para a seguinte realidade: enquanto no PE o clítico se mantém como forma quase absoluta de expressão do dativo de terceira pessoa, no PB o SP anafórico consolida-se cada vez mais como a estratégia preferida para exprimir essa função, especialmente aquele cujo núcleo é o pronome lexical ele(a), conforme os exemplos (07), (09) e (11) o demonstram.


 

Distância do referente

Também foi testada a influência do fator distância do referente sobre as variantes candidatas à representação do dativo, obtendo-se os seguintes resultados apresentados nas tabelas a seguir:

Tabelas 4. Distribuição das variantes segundo a distância do referente no PB.

PORTUGUÊS BRASILEIRO

Distância do referente

Clítico

SP anafórico

Dativo nulo

Oração imediatamente anterior

15%

47%

38%

Contexto precedente

100%

 

Tabela 5. Distribuição das variantes segundo a distância do referente no PE.

PORTUGUÊS EUROPEU

Distância do referente

Clítico

Dativo nulo

Oração imediatamente anterior

90%

10%

Contexto precedente

92%

8%

Segundo a tabela 4, no PB, o contexto que propicia o uso das diferentes variantes é aquele em que o referente do dativo anafórico se encontra mais próximo, pois, quando um distanciamento entre eles, é categórica a ocorrência do SP anafórico. Vejam-se os exemplos:

(12)               (…) o personagem se apaixona por uma menina que lhe mostrara os seios em uma procissão e fica com aquele peito na cabeça. [PB: Revista DOMINGO do Jornal do Brasil, 15-08-1999]

(13)               Usaria meu poder político, meu poder de governo e ia ao coronel Josias Quintal (ex-secretário de Segurança Pública) e pediria __ a sua saída. [PB: Jornal do Brasil, 25-05-2003]

(14)               Poderíamos andar na rua e cumprimentar as pessoas, dar mais dignidade a elas. [PB: Isto É, 05-08-2003]

(15)               Isso é tão natural que às vezes esqueço que eu e Tasso estamos em lados diferentes na política nacional. Muitas vezes eu me aconselho e pergunto coisas a ele. [PB: Época, 14-07-2003]

Pelo exposto acima sobre o PB, verificou-se que o clítico parece constituir apenas uma estratégia de estilo na representação do dativo de terceira pessoa, uma vez que aparece restrito a contextos em que o referente esteja próximo e, portanto, facilmente identificável, diferentemente do SP anafórico que ocorre com referente na oração imediatamente anterior ou não, como mostram os exemplos (14) e (15), respectivamente.

Com relação ao PE, a tabela 5 evidencia a pujança do clítico em qualquer contexto, tanto com referente mais próximo, quanto com mais distante. Observem-se o exemplos:

(16)               Ele e eu andámos à procura de coisas sobre o Alentejo. Às tantas, digo-lhe eu: “Eu vi tanta coisa e não me lembro deste texto.” [PE: DNA, 05-02-2000]

(17)               Enquanto que as outras crianças desenhavam uma mancha, que era a camisola e outra mancha, que era a saia, ela era capaz de pôr na camisola bolsos e botões e gola e na saia bolsos e folhos e bainha. Mas não consigo determinar algum talento particular. Dou-lhe a possibilidade de ir mexendo em liberdade. [PE: DNA, 08-04-2000]

 

Traço semântico

Investigou-se também o traço semântico do antecedente do dativo anafórico de terceira pessoa, tendo em vista observar a distribuição das variantes candidatas à sua representação. Vejam-se os resultados na tabela seguinte:

Tabela 6. Distribuição das variantes segundo o traço semântico.

Traço semântico — PB

Clítico

SP anafórico

Dativo nulo

[+ animado]

10%

69%

21%

[– animado]

50%

50%

Traço semântico — PE

Clítico

SP anafórico

Dativo nulo

[+ animado]

90%

10%

[– animado]

100%

Sobre o PB, observa-se que, com referentes de traço [+ animado], há a ocorrência das três variantes, destacando-se o SP anafórico. Note-se que o clítico que ainda aparece na amostra se restringe a referentes com esse traço semântico. sobre o PE, o uso do clítico é bem robusto com referentes de traço semântico [+ humano], sendo insignificante a ocorrência de apagamento. Todos os casos de dativo nulo com referente de traço semântico [+ humano] no PE e a maior parte desses casos no PB se deram com verbos dicendi:

(18)               Nabuco me repreendeu. Eu respondi __. [PB: Jornal do Brasil, 06-07-2003]

(19)               Chega um senhor que eu desconhecia(…) Respondi __ que era eu , tomámos um café e começámos uma amizade. [PE: DNA, 05-02-2000]

Isso talvez sugira que esse poderia ser um dos contextos ou situações em que seria o dativo um elemento opcional, conforme descreve Rocha Lima (1998), que dizia ser o objeto indireto “facilmente dispensável em muitas situações” (p. 249). Quanto aos referentes com traço [– animado], houve apenas dois casos tanto no PB quanto no PE, porém com realizações diferentes: SP anafórico e dativo nulo na escrita brasileira; clítico na escrita portuguesa. Observem-se os exemplos:

(20)               Para ele, o grande personagem de todos os momentos do hotel era o próprio hotel. Tenho a impressão que ele emprestou ao hotel esse caráter de transcendência, de eternidade. [PB: Revista DOMINGO do Jornal do Brasil, 18-04-1999]

(21)               Vamos agradecer aos partidos de oposição que votaram conosco. O PSDB votou, uma parte significativa do PFL. agradecemos __ e reconhecemos isso. [PB: Jornal do Brasil, 10-08-2003]

(22)               O PP tem tido um espaço e uma dimensão que lhe são dados sobretudo pelo abandono dos ideais de luta da Esquerda. [PE: DNA, 26-02-2000]

 

CONCLUSÃO

Tendo em vista a análise das amostras e os aspectos apontados acerca da realização do dativo anafórico de terceira pessoa, constatou-se que, na escrita semiformal brasileira, a variante prestigiada pela tradição escolar não é tão robusta, sendo superada pelas demais variantes, com destaque para o SP anafórico que, tal como na fala, firma-se como forma legítima de expressão do dativo de terceira pessoa. Tais resultados vêm ao encontro da hipótese levantada por muitos lingüistas segundo a qual a praticamente consumada perda do clítico dativo de terceira pessoa estaria se refletindo na escrita.

Por outro lado, verificou-se a manutenção do emprego da variante padrão na escrita portuguesa em larga escala, tal como ocorre na fala lusitana. Certamente, isso reforça a hipótese de Galves (1993, 1998) acerca da existência de duas línguas-I distintas, visto que o PB segue um caminho diferente do PE.

De qualquer forma, a presença de outras variantes em lugar do clítico lhe detectada em textos de entrevistas brasileiros revela que essas estratégias de representação do dativo anafórico se encontram infiltradas pelo menos na escrita semiformal, restando agora checar outros padrões de escrita, trabalho a ser empreendido que poderá trazer muitas luzes sobre as características da norma culta brasileira. Diante desse fato, a escola deve rever seus métodos de ensino do português, pois, se por um lado ela pretende recuperar o clítico dativo ausente na fala, por outro não pode negar a existência de outras formas de realização do dativo anafórico alternativas ao clítico. Assim, um trabalho em sala de aula com textos de jornais, de revistas e de outros informativos num continuum de formalidade pode conduzir a uma descrição responsável do que efetivamente vem ocorrendo na língua, podendo contemplar inclusive o que realmente viria a ser a norma culta brasileira.

 

BIBLIOGRAFIA

BERLINCK, Rosane de Andrade. “The Portuguese dative.” In: W. Belle & W. Langendonck. (eds.) The dative: Descriptive studies, vol. 1. Amsterdam/ Phidadelphia John Benjamins Publishing Company, 1996.

FREIRE, Gilson Costa. Os clíticos de terceira pessoa e as estratégias para sua substituição na fala culta brasileira e lusitana. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

GALVES, Charlotte. (1993) “O enfraquecimento da concordância no português brasileiro.” In: Mary A. Kato & Ian Roberts. (orgs.) Português brasileiro — uma viagem diacrônica. Campinas, Ed. UNICAMP.

______. (1998) “Gramática do português brasileiro.” Línguas e instrumentos lingüísticos, n.º 1, Campinas, Pontes.

GOMES, Christina Abreu. (1999) Embedded processes in dative alternation: a comparative study about three contemporary varieties of Portuguese. NWAV(E) 28, Toronto, Canadá, mimeo.

ROCHA LIMA, C. H. da. (1998) Gramática normativa da língua portuguesa. 36ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio.


 

[1] A variante focalizada sempre aparece em negrito e em itálico, com o antecedente sublinhado.