As formas em -nte
no português contemporâneo

Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira (UNEB/UCSAL)

Introdução

Dentre as formas verbo-nominais latinas, o particípio presente em -ns, -ntis era um adjetivo verbal, ou seja, exercia, ao mesmo tempo, função de verbo e de nome (adjetivo). No percurso para a língua portuguesa esses particípios conservaram a forma do acusativo singular -nte(m) e do plural -ntes, porém, foi enfatizando o seu valor nominal em detrimento do verbal, e recategorizando-se em adjetivos e substantivos.

Gramáticos e lingüistas, quando tratam do particípio presente no período arcaico citam alguns poucos exemplos de sua sobrevivência com valor verbal e, em tempos modernos, sequer o mencionam. No entanto, seja em textos literários, em textos escritos de diversas áreas do conhecimento, ou na fala cotidiana proliferam-se as formas em -nte. Dessas, algumas são empregadas como adjetivos, outras como verbo, outras, ainda, com limites imprecisos: nem claramente verbal, nem claramente nominal. Destarte, nessa comunicação pretendemos observar o uso das referidas formas com vistas a analisar e discutir a sua categoria gramatical, e, quem sabe, devolver-lhe, em alguns casos, o estatuto de “forma verbo-nominal”.

Histórico

As formas em -nte na língua portuguesa são oriundas do particípio presente latino, forma verbo-nominal de aspecto inconcluso, pertencente ao sistema do Infectum. O nome de participium lhe vem do fato de participar, ao mesmo tempo, da natureza do verbo e da natureza do nome. Como característica de verbo, conservam a respectiva regência e podem exercer relação de tempo e de voz. Segundo Väänänem (1968, p.224), o particípio presente assinala uma relação de concomitância, seja temporal, seja modal, e ocupa o lugar de oração circunstancial. Quanto à natureza do nome compreendem formações adjetivas, declinadas como tais, e modifica, deste modo, o substantivo. Em latim declina-se como um adjetivo de segunda classe, ou seja, pelo paradigma da terceira declinação e, durante o período clássico, empregava-se para exprimir todas as circunstâncias que acompanhavam a oração principal.

Desde o latim alguns particípios presentes tornam-se verdadeiros adjetivos, perdendo o seu valor verbal, a exemplo de prudens, -ntis e sapiens, -ntis, outros, ainda, se firmam como substantivos como dens, -ntis (de edo) infans, -ntis (de fari), serpens, -ntis (de serpo); oriens, -ntis (de orior) e oc-cidens, -ntis (de oc-cido). Em português se conservam esses e, ao lado de oriente e ocidente, aparecem, também, nascente e poente. Da mesma forma outros substantivos de idêntica formação como lente, escrevente, caminhante, ouvinte, pedinte, estudante, comandante, ajudante, descendente e, ainda, adjetivos como prudente, potente, ignorante,presente,ausente, pertinente, corrente, suficiente interessante, repugnante, negligente e uma infinidade de outros.

Coelho (1873, p. 194) afirma que no período arcaico do português, embora já acontecesse, também, a recategorização, esta forma participial ainda não estava perdida, como testemunham numerosos exemplos.

· Cegou entrante à lida.

· Os quaes tementes Nostro Señor.

· Chama a nós a Santa Escriptura de Deus dizente, [...]

· [...] entrante à casa.

· [...] sabente se seer sometudo à disciplina da regra.

Os autores das gramáticas históricas em geral, ao tratarem do particípio no português, reportam-se ao emprego do particípio presente como forma verbal no período arcaico, e à sua recategorização em outras classes de palavras no português contemporâneo.

Mattos e Silva (1993); Williams (1961) e Said Ali (1964), entre outros, quando tratam da reestruturação do sistema verbal da língua portuguesa, face à língua latina, remontam ao século XVI o emprego das formas em -nte como particípio, afirmando, ainda, Said Ali que este uso se deve mais a latinismos do que à linguagem espontânea e natural própria da época; portanto, podemos inferir que, desde o período arcaico, a grande maioria das formas em -nte se recategorizavam em adjetivos, substantivos, e outras classes gramaticais. O certo é que, no decorrer do tempo, o particípio presente (em -nte) tem incorporado mudanças, dentre elas destaca-se, sem dúvida, a sua recategorização em preposição, conjunção e advérbio, considerada por Neves (1999) como as instâncias prototípicas da gramaticalização, observando-se mudança categorial em sentido unidirecional.

Quanto à sua gramaticalização em preposição, Neves (1999, p.6) assegura que essas funcionam fora do sistema de transitividade, isto é, não introduzem complemento, mas estabelecem relação semântica. Coutinho (1982, p. 169) afirma que o número de preposições aumentou na língua portuguesa em decorrência do emprego de particípios presentes com este valor como: durante, mediante, salvante, tirante, não obstante, consoante, embargante. Nesse mesmo caso temos o advérbio bastante.

Hoje, os compêndios de gramática da língua portuguesa em geral, bem como os dicionários de lingüística, não fazem qualquer alusão às formas em -nte como particípios.

Português contemporâneo

O particípio presente latino é uma forma híbrida, de limites imprecisos e, por isso mesmo, vulnerável à gramaticalização; desse modo, no português contemporâneo, como aliás também nas demais épocas, encontramos o particípio presente recategorizado em substantivos, adjetivos, preposições, conjunções e advérbios.

O que é, deveras surpreendente, em tempos modernos, é a tendência inovadora de se criar substantivos ou adjetivos deverbais em -nte, proliferando-se o seu uso em camadas distintas da sociedade e em qualquer tipo de texto, na linguagem oral e escrita; assim é que nos deparamos com a criação de novos derivados característicos da linguagem da nova geração e, portanto, representativos de uma época como ficante (de ficar), pisante (de pisar= o sapato), rodante, sentante,movente, cursante e outros.

Soube que aos já cursantes não vai acontecer nada.

[...] a grade curricular cede lugar ao currículo movente.

Em suma, vemos nas formações em -nte, de um modo geral, a atuação de um processo morfológico do qual derivou adjetivos e substantivos.

Como decorrência do valor adjetivo do particípio latino, este freqüentemente substitui uma oração adjetiva relativa como podemos ver neste exemplo retirado do jornal A Tarde (Salvador/Ba), onde as duas situações ocorrem simultaneamente:

A platéia de perfil bem popular, é formada por pessoas que pagaram ingressos{...] É uma platéia pagante, mas é simplesmente figuração para o show, dirigido à tela da TV.

Surpreende ainda mais o fato de constatarmos muitas formais em -nte empregados com o antigo valor de particípio.

Sem esquecer as expressões consagradas pelo uso nas quais o particípio guarda sua função verbal etimológica como temente a Deus, aderente a, dependente de, mal soante e bem falante, o que observamos no português contemporâneo é a proliferação de construções com o adjetivo deverbal em -nte, seguido de complemento indireto, ou seja, guardando a transitividade que o caracteriza como forma verbal; assim nos deparamos com exemplos do tipo;

· “linhas passantes por esse ponto”

· (caixa) “inoperante para saque.”

· Confiantes na palavra do Senhor.

· Os fólios faltantes no arquivo.

· Só vamos pagar as horas faltantes para completar o curso.

· Informações constantes no boletim.

· [...] estruturas sanitárias reinantes nos locais de trabalho.

Gamarski (2002) tratando dos adjetivos deverbais em -nte, assim se expressa:

Entre os adjetivos estativos ocorrem, ainda, formações que são exclusivas dos adjetivos em -nte, não valorativas e não descritivas, são informações de interpretação eminentemente verba.

E exemplifica:

[...] se deu de uma maneira direta, decorrente de uma atitude.

[...] em relação aos elementos novos existentes no mediastino.

[...] pessoas integrantes daquela sociedade.

[...] as disciplinas correspondentes ao setor.

Observamos que esses exemplos citados por Gamarski são comuns na fala e na escrita contemporâneas.

Essas formações são regulares, mas não funcionam como atributos ou especificações do substantivo como os demais adjetivos: funcionam sistematicamente como predicadores aos quais está vinculada um argumento interno indireto herdado do verbo derivante; tem uma constituição temporal interna. É um verdadeiro verbo-adjetivo ou adjetivo-verbo, portanto, uma forma nitidamente verbo-nominal conforme a etimologia.

Oliveira (2002) registra exemplos de Vinicius de Moraes e Cecilia Meirelles, explicando-as assim:

[...] em alguns casos, o uso da forma de particípio presente parece não apresentar limites nítidos de sentido, deixando pairar a dúvida quanto à sua função adjetiva, já que, embora relacionado com um substantivo, reporta á idéia de uma oração adverbial ou, ainda, e principalmente a de gerúndio, nesses casos parece persistit os valores de verbo e adjetivo:

Deixa que a vida te possua ardente

O alma supremamente desgraçada. (Moraes, 1967, p. 84)

Em cima o rio vinha espumejante

Apertado entre as pedras pardacentas, [...]

a água caindo [...]

mas caindo, caindo na voragem

e toda se estilhaçando espumecente. (Moraes, 1967, p. 91)

Coloca-os em suas cadeiras de rodas, devolve-os a guardiães espectantes.

Registra, ainda outros nos quais a recuperação do particípio presente como forma de caráter verbal é notória e indiscutível.

Ei-lo deitado no presépio, recolhido no regaço virginal, pregando na montanha, passando a noite em oração, ou pendente da cruz [...] (Pintarelli, 1999)

O animal apavorado

Fremia as ancas molhadas

Do negro orvalho pendente

De negras, negras ramadas. (Moraes, 1967)

Nesses exemplos a forma “pendente” pode ser substituída por “pendendo de” ou “pendurando em”; observa-se ainda que, no contexto em que se inserem, estão numa seqüência de outras formas verbais, ficando patente o seu caráter verbal em detrimento do adjetivo.

O mesmo ocorre nesses exemplos de Cecília Meirelles (1968):

Leve é o pássaro

E sua sombra voante

Mais leve

Estarei um tempo divino

Como árvore em quieta semente

Dobrada na noite e dormente.

Quem tivesse um amor, e, entre o mar e as estrelas

Partisse por nuvens, dormente e acordado

Levitando apenas, pelo amor levado,

Considerações finais

A partir desse curto trabalho de pesquisa, podemos observar que:

1) Na língua portuguesa contemporânea, não só encontramos um grande número de formas participiais em -nte que já existiam no latim e persistiram no português arcaico, mas o sufixo conserva ainda a sua vitalidade sendo empregado para produzir novos derivados.

2) O que se pode perceber é que o dominio lexical referente a formas em -nte na llíngua portuguesa contemporânea, mostra-se bastante profícuo, tanto na linguagem oral como na escrita, em textos literários, científicos e informativos.

3) Além de formar novos adjetivos e substantivos, retorna o uso das formas em -nte com a sua função etimológica de particípio presente, nem verdadeiramente nome, nem verdadeiramente verbo, comprovado com exemplos da literatura do século XX e outros colhidos naturalmente do cotidiano, tanto na linguagem oral quanto na escrita.

4) Destarte, acreditamos que um estudo mais aprofundado com corpora específicos poderá não rejeitar a gramaticalização do particípio presente que deveras acontece, mas, também, devolver-lhe em muitos casos o estatuto de forma verbo-nominal, segundo os moldes da língua latina.

Referências bibliográficas

ALI, Manuel Said. Gramática histórica da língua portuguesa. 3a ed. aum./rev./ São Paulo: Melhoramentos. [notas e índices por Maximiliano de Carvalho e Silva], 1964.

COELHO, Francisco Adolfo. Sobre a língua portuguesa. Porto: [s/ed.], 1873.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. 7a ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1982.

GAMARSKI, Lea. “Efeitos da morfologia sobre a estrutura argumental: adjetivos deverbais em -nte”. In: Ingedore G. Villaça Koch & (org.). Gramática do português falado. São Paulo: EDUNICAMP, 2002.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Português arcaico: morfologia e sintaxe. São Paulo: Contexto, 1993.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

OLIVEIRA, Jaciara Ornélia Nogueira de. Nominalização do particípio presente e sua sobrevivência como forma verbal em tempos modernos. São Paulo: GEL, 2002.

VÄÄNÄNEM, Zeiko. Introdución al latin vulgar. Madrid: Gredos. [versión espanõla de Manuel Carrión], 1968.