CONSIDERAÇÕES SOBRE OS MANUAIS DE ESTILO
DOS JORNAIS: A CONCORDÂNCIA
Sérgio Paulo (UERJ)
Há algum tempo temos nos dedicado à análise dos manuais de redação e estilo dos jornais, especialmente de O Globo, da Folha de São Paulo e de O Estado de São Paulo. Nosso interesse tem duas justificativas básicas.
A primeira diz respeito à influência que os manuais de redação e estilo destes jornais podem ter nos usuários da língua, uma vez que estão disponíveis para a compra em virtualmente qualquer livraria. Além deste fator, contam com os próprios jornais como veículo de propaganda: de um lado pela publicidade realizada em lançamentos de novas edições; de outro, pela dedução que um comprador é levado a fazer: se o jornal escreve muito, deve escrever bem, assim o manual de estilo do jornal também deve ser um bom guia para se ensinar a escrever corretamente.
A segunda justificativa para nosso interesse nos manuais diz respeito ao crescente uso dos jornais como fonte de pesquisa da língua portuguesa contemporânea. Muitos pesquisadores (especialmente os graduandos) muitas vezes não se dão conta de que os manuais de redação e estilo são um mecanismo de limitação e vigilância sobre os jornalistas, não contribuindo para uma espontaneidade da escrita. Em alguns casos, a vigilância dos manuais estabelece apenas uma possibilidade de uso de determinada estrutura, quando as gramáticas tradicionais estabelecem duas ou, em algumas situações, até mesmo três. Um destes casos, é a concordância, que nós nos propomos a analisar aqui.
Veremos, a seguir, o que os referidos manuais têm a dizer sobre a concordância.
O Manual da Redação da Folha de São Paulo (com sua edição de 2001 revisada por Pasquale Cipro Neto), em seu Anexo Gramatical, traz duas tabelas sobre concordância verbal. A tabela é dividida em quatro colunas, mais ou menos do seguinte modo:
Caso | Usa-se no singular | Usa-se no plural | Facultativo |
Na maior parte dos casos considerados, há uma consonância com as gramáticas tradicionais. No entanto, consideremos duas situações em que há discordância.
O primeiro diz respeito aos coletivos. O manual diz:
Usa-se no singular: não especificados: um bando invadiu a casa.
Facultativo: especificados por termo no plural: um bando de cães invadiu/invadiram a sala (prefira o singular) (p. 125; grifo dele).
Acerca deste assunto, o seguinte é o que a gramática do professor Bechara diz:
Quando o sujeito simples é constituído de nome ou pronome que se aplica a uma coleção ou grupo, pode o verbo ir para o plural. A língua moderna impõe apenas a condição estética, uma vez que soa geralmente desagradável ao ouvido construção do tipo: O povo trabalham ou A gente vamos. (p. 555; grifos dele)
Temos de reconhecer que uma construção como O povo trabalham ou Um bando invadiram a casa soa realmente mal aos ouvidos. No entanto a recomendação do Manual da Folha para uso apenas no singular não corresponde à realidade das potencialidades da língua, embora possamos reconhecer tal recomendação uma por se tratar o manual de um regulador da linguagem jornalística.
Mas lembremo-nos de que o manual de estilo da Folha de São Paulo está nas livrarias, disponível a quem acredite que ali serão sanadas suas dúvidas sobre língua portuguesa. Note o que se lê na Introdução da versão 2001 daquele manual:
Esta edição procurou também atender ao interesse dos leitores que utilizam o manual como fonte de consulta. Assim, ela traz uma série de anexos (gramatical, jurídico, médico e outros) cujo objetivo é oferecer ao público uma obra de referência (...) (p. 7)
Ora, se o objetivo do manual é ser fonte de consulta para leitores em geral, não nos parece correto desconsiderar normas gramaticais estabelecidas há décadas por grande estudiosos da língua, por isso discordamos desta (e de outras) posição (posições) assumida (s) pelo manual.
O outro caso diz respeito à célebre construção “um dos que”. Eis o que o manual da Folha diz:
Caso: um dos que
Usa-se no plural: ele foi um dos que mais lutaram pela paz (p. 125)
Como se vê, para o Manual da Folha, só existe esta concordância. Mas vejamos o que a Bechara diz:
Em linguagem do tipo um dos ...que, o verbo da oração adjetiva pode ficar no singular (concordando com o seletivo um) ou no plural (concordando com o termo sujeito no plural), prática, aliás, mais freqüente, se o dito verbo se aplicar não só ao relativo mas ainda ao seletivo um (...) (p. 562; grifos dele)
Além do comentário de Bechara, acima, é o seguinte é a posição da gramática de Cintra e Cunha:
Quando o relativo que vem antecedido das expressões um dos, uma das (+ substantivo), o verbo de que ele é sujeito vai para a 3.a. pessoa do plural ou, mais raramente, para a 3.a. pessoa do singular. (p. 501; grifos dele)
Há algum tempo as gramáticas tradicionais vêm sendo atacadas de todos os lados. Às vezes até de modo duro. De fato, concordamos que há uma necessidade de revisão de conceitos e, especialmente, de sua metodologia. No entanto, quando comparamos a concordância proposta pelo Manual da Folha com as gramáticas tradicionais, nota-se claramente que o manual é mais restritivo que elas.
Passemos agora ao manual de O Globo.
No Manual de Redação e Estilo de O Globo, encontramos a concordância na página 91. (A edição utilizada para esta pesquisa foi a 22.a, publicada em 1995. Consultamos edições mais recentes e nada mudou.) São listados 11 casos, dentre os quais podemos fazer alguns comentários interessantes.
Quando o sujeito é que ou quem, o verbo concorda com o substantivo que está antes do pronome: “Fui eu que perdi”, “sou eu quem descrevo”. No caso do quem, o verbo também pode ir para a terceira pessoa do singular: “Fui eu quem pediu.” (p. 91; grifos dele)
Uma tentativa de explicar a concordância neste tipo de estrutura incide em um erro que está claro, mas que ainda não havia sido corrigido na 22.a edição do manual, utilizada nesta pesquisa, e nem nas edições posteriores. Note que o manual fala em concordar com “substantivo”, mas o termo a que o pronome relativo se refere nos dois exemplos dados é um pronome.
O caso seguinte.
Quando os sujeitos são ligados por com, o verbo vai para o plural se os sujeitos têm o mesmo peso; para o singular, concordando com o primeiro sujeito, se este tem preponderância na frase. No primeiro caso: “João com José foram à missa.” No segundo: “João, com a família, mudou-se de casa.” (p. 92; grifo dele)
A este respeito leiamos o que diz Bechara.
Se o sujeito no singular é seguido imediatamente de outro no singular ou no plural mediante a preposição com, ou locução equivalente, pode o verbo ficar no singular, ou ir ao plural para realçar a participação simultânea na ação (...) (p. 556; grifo dele)
Comparando o que diz Bechara com os exemplos dados pelo manual poderíamos ter as seguintes frases:
(a) João com José foram à missa.
(b) João com José foi à missa.
(c) João, com a família, mudou-se de casa.
(d) João, com a família, mudaram-se de casa.
Para este caso, as opções afastam-se um pouco da sintaxe e caminham em direção à semântica e à estilística, ficando a critério do produtor do texto selecionar a estrutura que mais lhe conviesse, ao estilo que deseja imprimir ao seu enunciado. No entanto, como os jornais buscam uma padronização em sua linguagem, a opção do manual é pela mera indicação de uma opção ou outra a ser adotada sempre que o redator se deparar com aquela estrutura.
Vale transcrever aqui o que Cunha e Cintra dizem acerca da mesma estrutura:
Quando os sujeitos vêm unidos pela partícula com, o verbo pode usar-se no plural ou em concordância com o primeiro sujeito, segundo a valorização expressiva que dermos ao elemento regido de com.
Assim, o verbo irá normalmente:
(a) para o plural, quando os sujeitos estão em pé de igualdade, e a partícula com os enlaça como se fosse a conjunção e: (...)
(b) para o número do primeiro sujeito, quando pretendemos realçá-lo em detrimento do segundo, reduzido à condição de adjunto adverbial de companhia: (...). (p. 514; grifo dele)
Note-se que para Cunha e Cintra o que predomina é a “valorização expressiva”, não havendo uma norma imutável. Bem diferente do Manual de Redação e Estilo utilizado no jornal O Globo.
Por fim, falemos um pouco sobre o Manual de Redação do Estado de São Paulo. A versão que utilizamos é a eletrônica, disponível na página do jornal, www.estado.estadao.com.br/redac, e em nada se difere da versão impressa.
O manual impresso é um volume robusto com centenas e centenas de regras sobre os mais variados assuntos. Infelizmente, assume uma postura extremamente normativa. De fato, há gramáticas que não contém a quantidade de normas estabelecidas por este manual.
Sob o verbete Concordância, o manual apresenta mais de 70 regras de concordância. Consultando as gramáticas de Bechara e Cunha e Cintra encontramos também dezenas de regras de concordância. No caso da de Bechara mais 80.
Mas temos de nos lembrar de que um dos objetivos das gramáticas é fazer a descrição da língua, sendo assim, a grande quantidade de casos de concordância encontrada nestes compêndios é justificada. Na gramática de Bechara, há citações de vários comentários de outros eminentes filólogos e algumas normas que são até mesmo anacrônicas, como essa: “Uma pouca de água”. Esta forma nos é apresentada como um exemplo de concordância correta. Correta sim, mas anacrônica.
Mas a questão é: Por que um manual de estilo teria tantos casos de concordância listados? Contraste seus mais de 70 casos com os 23 do Manual da Folha e os 11 do Manual de O Globo. Ora, somos levados a concluir que o Manual de O Estado de São Paulo tem sérias pretensões a ser usado como gramática, mas sem assumir os compromissos e dissabores delas. Vejamos um caso ilustrativo.
Formas de tratamento
O verbo concorda com a pessoa que recebe o tratamento: Vossa Excelência está errado (homem), Vossa Excelência está errada (mulher). / Sua Santidade chegou atrasado (o papa). / Vossa Alteza é magnânimo (rei), Vossa Alteza é magnânima (rainha).
Ora, será que frases como estas são escritas nas notícias e reportagens de jornal? Dificilmente. Será que os outros dois manuais analisados também são tão minuciosos com as formas de tratamento?
O Manual de O Globo dedica uma página ao uso das formas de tratamento, especificamente para as notícias e reportagens (p. 66).
O Manual da Folha dá uma lista de todas as formas de tratamento de acordo com o título (p. 130), mas não apresenta exemplos. E no verbete “Concordância” apresenta um único pronome de tratamento: Vossa e informa que usa-se no singular. Apenas isso.
Como se vê, muito mais do que os outros dois manuais de estilo, o Manual de O Estado de São Paulo se esforça para ter ares de gramática. Ora, pela sua formatação, a consulta às suas páginas é mais fácil do que às da gramática. Mas, ao contrário daquela, não tem a obrigação ou, pelo menos, o compromisso, de explicar como chegou àquelas explicações. A ele basta a dicotomia certo/errado.
Um outro caso que deixa bem clara esta pretensão do Manual do Estado é o seguinte: “Ua”. Não use. É preferível o cacófato (como em “uma mão”, por exemplo) a essa forma.”
O que isso tem a ver com linguagem jornalística? O que faz tal recomendação em um manual de estilo “para jornalistas”?
Retornando à questão da concordância, fizemos uma consulta ao verbete “Um dos ... que”.
Um dos ... que. 1 - O verbo normalmente vai para o plural: Ele é um dos deputados que mais lutam pelo contribuinte. Desdobre a frase: Dos deputados que mais lutam pelo contribuinte, ele é um. (...) 2 - O verbo fica no singular apenas quando a ação se refere a uma única pessoa: Foi um dos seus livros que li ontem à noite. (...). (grifos dele)
O que podemos dizer acerca do caso (1) é que o manual insinua uma outra concordância possível, mas não passa disso. Entre os exemplos listados nenhum se enquadra na “outra” opção.
O Manual de Estilo de O Estado de São Paulo tem diversos casos controversos, para cujas considerações demandaríamos mais espaço do que dispomos. Sugerimos que o leitor, através da Internet, visite o manual e faça suas próprias considerações.
Como últimas palavras, gostaríamos de dizer que os manuais de estilo dos jornais são úteis não apenas para jornalistas, mas também para pessoas que gostam de escrever. Especialmente interessante é o Manual da Folha, por trazer muitas informações, à semelhança de um almanaque. No entanto, quando se trata da língua portuguesa, deve-se usá-los com cautela, e nunca atribuir-lhes a última palavra sobre o que quer que seja, como se pôde exemplificar através da concordância.
BIBLIOGRAFIA
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. ver. ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FOLHA de São Paulo. Manual da Redação. 2ª ed. São Paulo: Publifolha, 2001.
------. Novo manual da redação. 9ª ed. São Paulo: Folha de São Paulo, 1992.
GARCIA, Luiz (org.). Manual de redação e estilo. 22ª ed. São Paulo: Globo, 1995.
MARTINS, Wilson. Novo manual da redação. Arquivo capturado na Internet, www.estado.com.br . Acessado em 10 ago 2003.
VASCONCELOS, Sérgio Paulo Gomes de. A linguagem jornalística em questão: os manuais de redação e estilo. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001. 155 f. Dissertação de Mestrado.