Notas sobre o paralelismo sintático em Latim
Mára Rodrigues Vieira (UFRJ)
O estudo do paralelismo sintático, tema desta Comunicação, desenvolve-se a partir da leitura de um texto latino - as Cartas de Plínio o Jovem, obra literária que o tornou imortal.
A regularidade formal, pela disposição simétrica dos termos, segundo a sua função sintática, é um procedimento de estilo que o escritor amplamente utiliza. O uso reiterado desse modo de expressão propicia o rápido reconhecimento das estruturas morfossintáticas e facilita o processo de tradução.
Algumas anotações acerca da simetria dos termos na organização da frase serão feitas com base na exemplificação que segue:
1. nulla spe, nullo timore sollicitor, nullis rumoribus inquietor (I, 9, 5)
(por nenhuma esperança, por nenhum temor sou atormentado, por nenhuns rumores sou agitado)
Seqüência assindética de três membros na expressão de agente da passiva, em ablativo, dos verbos sollicitor e inquietor. A variação de gênero e número verifica-se pelas diversas formas do pronome, em concordância com o substantivo.
2. Nam pronuntiat acriter, sapienter, apte, decenter etiam (V, 19, 3)
(Na verdade, enuncia com energia, sensatez, conveniência e até elegância)
Série de advérbios como referência circunstancial à frase. Há variação formal entre apte com sufixo -e, e os demais advérbios, com sufixo -ter.
3. ad hoc ingenium excelsum, subtile, dulce, facile, eruditum, in causis agendis (II, 13, 7 )
(além disso, é admirável o seu dom nobre, sutil, suave, dócil, erudito, ao advogar uma causa)
Série de adjetivos que, na função de adjunto adnominal, qualificam o substantivo - ingenium - e com ele concordam em gênero (neutro), número (singular) e caso (nominativo).
Há variação formal entre os adjetivos excelsum e eruditum - da segunda declinação -, de um lado, e subtile, dulce, facile - da terceira declinação -, de outro lado.
O confronto entre as duas últimas frases mostra que a semelhança de forma entre apte (advérbio) e subtile, dulce, facile (adjetivos) não traz qualquer dificuldade para o reconhecimento de suas funções.
4. Non rationem, sed stomachum tibi narro (IX, 17, 3)
(Não exponho a ti uma regra, mas um gosto)
5. Non uehiclo, sed/.../ equo gestor (IX, 36, 5)
(Não sou levado por um carro, mas por um cavalo)
6. Non oculos animo, sed animum oculis sequor (IX, 36, 2)
(Não afeto os olhos com a alma, mas a alma com os olhos)
Os termos em paralelo, em cada uma das três frases acima, desempenham a mesma função sintática.
Na primeira frase, rationem e stomachum servem de objeto a narro, em acusativo.
Na segunda frase, uehiculo e equo servem de agente da passiva a gestor, em ablativo.
Na terceira frase, oculos e animum servem de objeto a sequor, em acusativo; animo e oculis, de adjunto adverbial a sequor, em ablativo, pela troca de função dos termos.
rationem uehiculo oculos animo
stomachum equo animum oculis
7. Vides quot periculis, quot contumeliis, quot ludibriis simus obnoxii (III, 14, 5)
(Vês a quantos perigos, a quantas afrontas, a quantas zombarias estamos expostos)
8. Imaginor qui concursus, quae admiratio te, qui clamor, quod etiam silentium maneat
(Imagino que diligência, que admiração, que clamor, também que silêncio te espera)
9. Habes quid timeam, quid optem, quid etiam in posterum destinem; tu quid egeris, quid agas, quid uelis agere scribe (I, 22, 12)
(Sabes o que temo, o que desejo, também o que destino para o futuro; escreve tu o que fizeste, o que fazes, o que farás)
A interrogação indireta em seqüência assindética, como complementação verbal, vem introduzida por pronome - adjetivo, nas duas primeiras frases; substantivo, na última.
Na primeira frase, o pronome adjetivo, de forma invariável - quot -integra o complemento de obnoxii, junto aos substantivos periculis, contumeliis, ludibriis, em dativo.
Na segunda frase, o pronome adjetivo, de forma variável quanto ao gênero e ao número - qui, quae, qui, quod - integra o sujeito de maneat, junto aos substantivos concursus, admiratio, clamor, silentium¸com os quais concorda, em nominativo.
Na terceira frase, o pronome substantivo quid integra duas séries distintas de interrogação indireta, como complemento verbal: na primeira série - quid timeam, quid optem, quid destinem - não há variação de tempo, todos os verbos estão no presente; na segunda série - quid egeris, quid agas, quid uelis agere - há variação de tempo: pretérito perfeito, presente e futuro, respectivamente.
10. Viuebat /.../ et vivere uolebat sustentante maxime uxore. (VIII, 18, 10)
(Vivia e queria viver sendo confortado sobretudo por sua mulher)
11. tanto maiorem apud doctos habere gratiam debet, quanto minorem apud indoctos habet. (II, 19,8)
(Tanto maior interesse deve ter junto aos cultos, quanto menor tem junto aos incultos)
Do confronto entre as duas frases, observam-se, de um lado, as formas flexionadas uiuebat (da 1ª) e habet (da 2ª); de outro lado, as formas de infinitivo uiuere (de 1a) e habere (da 2a), acompanhadas de uolebat e debet, respectivamente, com a indicação de pessoa, tempo e modo.
12. Non /.../ uelim durior fieri. (VIII, 16, 3)
(Não quereria tornar-me tão severo.)
13. non modo magister tuus, sed ne discipulus quidem debeam dici? (VIII, 7, 2)
(que eu não deva ser chamado de teu mestre, nem mesmo de teu discípulo?)
Em ambas as frases, o emprego do predicativo do sujeito, em um mesmo caso, nominativo - durior, na primeira; magister tuus e discipulus, na segunda -, mostra a identidade funcional entre uelim e debeam, auxiliares na locução verbal - uelim fieri; debeam dici -, cujo sujeito é o pronome ego (elíptico).
14. uolui tantum te uoluptatis absentem /.../ capere, quantum praesens percipere potuisses (III, 18, 11)
(quis que tu, ausente, tivesses tanta alegria, quanta terias podido, presente, alcançar)
Na frase acima, o predicativo do sujeito vem expresso em casos diferentes: absentem, em acusativo, concorda com o pronome te, sujeito de capere, na oração reduzida de infinitivo, complemento de uolui; praesens, em nominativo, concorda com o pronome tu, sujeito que se infere de percipere potuisses, uma locução verbal.
15. A quibus libenter requisiuerim cur concedant /.../ historiam debere recitari, quae non ostentationi, sed fidei ueritatique componitur, cur tragoediam, quae non auditorium, sed scaenam et actores, cur lyrica, quae non lectorem, sed chorum et lyram poscunt (VII, 17, 3)
(De boa vontade eu lhe pediria, porque concordam que uma história, que é escrita, não por ostentação, mas por sinceridade e justiça, deve ser lida em público, porque (concordam que) uma tragédia, que reclama não uma sala de leitura, mas cena e atores, (deve ser lida em público), porque (concordam que) poemas líricos, que reclamam não um leitor, mas coro e lira (devem ser lidos em público).
Em seqüência assindética de três membros, cada qual com duas subordinadas e uma coordenada, a inteligência supre, sem qualquer dificuldade, os termos elípticos das orações causais, sobretudo na língua latina, em que a palavra traz indicada, pela desinência casual, sua função sintática: os substantivos tragoediam e lyrica, em acusativo, como historiam, servem de sujeito à locução infinitiva debere recitari.
O paralelismo sintático, um dos recursos estilísticos de que se vale Plínio o Jovem em suas Cartas, constitui valioso material lingüístico para o estudo da morfossintaxe latina.
Bibliografia
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MAROUZEU, J. Traité de stylistique latine. Paris, Les Belles Lettres, 1954.
PERROCHA, Paul. Recherches sur la valeur et l’emploi de l’infinitif subordonné en latin. Paris, Les Belles Lettres, 1932.
PLINE LE JEUNE. Lettres. Paris. Les Belles Lettres, 1955.
MONTEIL, Pierre. Élements de phonétique et de morphologie du latin. Dijon, Nathan, 1973.