A África no Serro Frio – Vissungos:
Uma
prática social em extinção

Lúcia Valéria do Nascimento (FEVALE/FAFIDIA)

 

1. INTRODUÇÃO

Sendo a língua o elemento mais importante da cultura de uma comunidade, quando ela morre, perde-se o saber específico daquela cultura. Assim, tem-se constituído um dos maiores desafios da Lingüística ciência que estuda as línguas, a linguagem humana tentar salvar as línguas que estão em extinção em várias partes do planeta.

É óbvio que temos de repensar seriamente nossas prioridades para que a lingüística não entre na história como a única ciência que assistiu despreocupadamente ao desaparecimento de 90% do campo a que se dedica. Michael Krauss, The World Language in Crisis (1992). In: GIBBS (2002)

Há várias tentativas de descobrir quais línguas podem ser salvas e quais devem ser documentadas antes de desaparecerem. Foram preocupações como essas que deram origem à investigação da qual resulta o presente trabalho.

Era voz comum que em algumas localidades próximas a Diamantina, MG, as pessoas se comunicavam em dialeto africano. Isto veio motivar a realização desta pesquisa, pela qual se constatou o quase desaparecimento do referido dialeto.

Este trabalho vem documentar e expor a situação dos remanescentes de língua africana na região de Diamantina, MG.

O processo de desaparecimento da língua africana nesta região está diretamente ligado à morte dos vissungos – cantos ritualísticos produzidos por negros descendentes de escravos – que por sua vez, existiram enquanto houve contexto para a realização das práticas sociais em que eram envolvidos.

Esta pesquisa visa trabalhar os vissungos do ponto de vista de prática social e morte de língua. Para tal foi feita uma análise social, antropológica, um paralelo desta análise com o estudo teórico sobre morte de língua e um estudo sobre as raízes lingüísticas dos vissungos. Não se pretendeu aqui, fazer uma análise dos vissungos do ponto de vista lingüístico-estrutural.

Nosso objetivo é, portanto, estudar a descrição do gênero vissungo e analisar o seu desaparecimento, na perspectiva da teoria sobre morte de língua.

Na produção científico-literária sobre o assunto, destaca-se a obra de Machado Filho O negro e o garimpo em Minas Gerais editada pela primeira vez em 1943, pelo valor histórico, riqueza de dados e precisão da documentação tanto na letra quanto na música, através dos pentagramas. Nesta obra são documentados os vissungos cantados na região de Quartel do Indaiá/São João da Chapada, MG, numa pesquisa realizada da década de 30.

Para suporte teórico, tomaremos como referência, principalmente, os trabalhos de Ingedore Koch (2002) sobre texto e contexto, os trabalhos de Dell Hymes (1977) sobre abordagem etnográfica na sociolingüística, estudando a interação da língua e vida social, e os trabalhos de Nancy Dorian (1999, 2001, [200-]) sobre a obsolescência da língua, trabalho de salvamento, últimos falantes e morte de língua.

Como os fenômenos sociolingüísticos não são fáceis de serem explicados em sua totalidade pelas teorias, o desenvolvimento desta pesquisa exigiu que fossem feitas várias viagens a campo para realização de entrevistas, observação da vida em comunidade e para fazer as gravações dos vissungos. Leituras sobre a história local, com o objetivo de esboçar um quadro sobre a identidade do cantador de vissungo, foram também de extrema importância.

 

2. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No projeto de dissertação Estudo Fonológico dos Vissungos de São João da Chapada, apresentado à POSLIN (FALE/UFMG) em março do ano de 2001, propusemos fazer um estudo comparativo entre os vissungos – cantos ritualísticos produzidos por negros descendentes de escravos – colhidos por Machado Filho e publicados em 1943 no livro O negro e o garimpo em Minas Gerais, na região de São João da Chapada/Quartel do Indaiá, e os vissungos coligidos pela pesquisadora nos anos de 2001/2002, dentro de uma perspectiva fonológica. Esse projeto previa a coleta de dados na mesma região onde Machado Filho fez sua investigação. Da comparação dos dados colhidos por Machado Filho (1985), e dos dados coletados pela pesquisadora, constatou-se que a proposta inicial de um estudo fonológico apresentada no projeto de dissertação não deveria ser realizada, visto os vissungos remanescentes naquela região serem em número muito reduzido e com uma acentuada alteração. Esta constatação conduziu a uma nova proposta: a urgência de registrar tais vissungos e um estudo mais detalhado sobre sua natureza e função.

Contudo, a hipótese inicial do projeto poderá ser objeto de estudos posteriores, caso se comprove a existência de um corpus que justifique uma análise fonológica comparativa dos vissungos. Entretanto, constatamos que apenas dois cantadores identificados em toda a localidade são os únicos a reter na memória os cantos, tornando-se necessário partir para o registro dos mesmos em sua forma atual e trabalhar sobre uma perspectiva da lingüística textual, aliada a uma necessidade de abordar os vissungos na perspectiva da morte de língua.

A presente justificativa tem como objetivo demonstrar a alteração da proposta inicial de uma análise fonológica para uma análise em lingüística textual. Essa alteração visa garantir o registro do corpus coletado em 2001/2002, analisar os vissungos como práticas sociais e as possíveis razões que levaram ao desaparecimento dessas mesmas práticas. Machado Filho coletou 65 vissungos na década de 30 e a pesquisadora encontrou, na mesma região, apenas 14 vissungos guardados na memória dos cantadores.

Sendo a pesquisa conduzida para o novo rumo, realizou-se uma segunda coleta de vissungos, partindo-se para o registro dos dados e, conseqüentemente, para uma análise dos seus usos e funções dentro das práticas ritualísticas. A nova coleta se deu no povoado de Ausente, próximo ao distrito de Milho Verde, pertencente ao município do Serro (MG). Também nesta localidade foram encontrados apenas dois cantadores, dos quais somente um se mostrou receptivo à pesquisa. Os vissungos encontrados em Ausente diferem em grande parte dos cantados em Quartel do Indaiá quanto às letras das músicas, mas não diferem quanto ao uso e às funções.

Os povoados de Ausente/Milho Verde e Quartel do Indaiá/São João da Chapada faziam parte da antiga Comarca do Serro-Frio, existente em Minas Gerais nos séculos XVII e XVIII. Dentro da Comarca Serro-Frio foi demarcado o Distrito Diamantino, que era maior que o Arraial do Tijuco. Quando este arraial se estabeleceu como produtor de ouro e, principalmente, de diamante, o distrito foi demarcado. O arraial era a sede do distrito, da demarcação.

Os vissungos, que estão quase extintos, devido a questões de ordem social e ao desaparecimento dos contextos que os amparavam, foram encontrados em Quartel do Indaiá – São João da Chapada (Diamantina) e Ausente – Milho Verde (Serro).

 Os vissungos que eram cantados durante práticas sociais, são de herança africana e foram incorporados ao cotidiano da escravaria, em que eram entoados para aliviar os momentos extremamente árduos da mineração e dos funerais. Essas práticas sociais se caracterizam pela sistematização dos cantos que, além de terem uma forma definida, eram praticados de uma maneira ritualística, com sua execução sempre de acordo com o evento a que se destinava. Os cantos encontrados hoje, apesar de serem diferentes nas duas localidades em estudo, remetem às mesmas práticas, a saber: cantos de trabalho, de multa e de enterro. Os cantos de trabalho são de conhecimento dos cantadores do Quartel do Indaiá. Eles se lembram de cantá-los durante os trabalhos de mineração quando era preciso carregar a roda para secar a água. Os cantos de multa eram entoados quando algum “freguês” (termo usado nas localidades mencionadas para se referir a qualquer pessoa que não pertencia ao grupo – provavelmente pessoa que vinha da freguesia) se aproximava e cruzava o terreno em que estavam trabalhando. Era uma espécie de cobrança de pedágio por deixar o freguês passar pelo local de trabalho dos escravos.

Os cantadores de Ausente não se recordam dos cantos de trabalho. Eles se lembram apenas de um canto de multa, que tem semelhança lexical com um dos cantos colhidos por Machado Filho e que os moradores do Quartel do Indaiá já não recordam mais. Apesar de relatarem a mesma realização ritualística, os cantos de multa encontrados nas duas localidades foram diferentes.

Já os cantos de enterro são totalmente diferentes nas duas localidades. Apesar da prática ritualística ser a mesma, ela foi melhor descrita pelo cantador de Ausente. De todas as três práticas, a que perdurou por mais tempo foi a prática do enterro, sendo registrada em 28 de Setembro de 2001, com a morte de “Bastião”, no Baú, próximo ao Milho Verde.

O povoado do Baú surgiu no meio do mato, no distrito de Milho Verde, município do Serro. Segundo o Sr. Devanir, um dos moradores do Baú, havia uma fazenda na localidade onde havia uma única casa de telha - a casa dos senhores - e que seus avós, que eram trabalhadores dos senhores, compraram depois da abolição da escravatura. Seu avô casou-se duas vezes, sendo ele fruto do segundo casamento. Parentes agora, primos. morreram os avós, os pais, os tios e tias. Até pouco tempo atrás, para se chegar ou sair da localidade, a ou em carro de boi. A estrada chegou antes, mas, por falta de tráfego de carros, acabou-se. Quando adoecia alguma pessoa, tinha que se fazer umcanapé de quatro” e colocá-la num carro de boi. Muitas pessoas faleciam pelo caminho. Até 1993, ainda morriam moradores do povoado por falta de atendimento médico, segundo ele, agora as coisas estão melhores: “Isso pra nós era brabo. Agora não. Agora nós anda de até duas hora de viagem, nós vamo e traz o carro.”

Neste panorama de isolamento, formou-se uma comunidade de descendentes de escravos, onde se preservou muito do dialeto africano[1] bem como sua cultura e práticas sociais.

Após essa descrição inicial dos vissungos, de seus usos e das comunidades onde eram realizados, passaremos a situá-los enquanto prática social, analisando seu domínio discursivo. Na elaboração do quadro teórico nos basearemos nos estudos de texto desenvolvidos por Koch (2002). Para os comentários sobre obsolescência de línguas, que conduz ao estudo sobre morte de língua, tomaremos como base os estudos de Dorian (1999, 2001, 2003*, 2004).

O presente trabalho visa responder a seguinte questão: O que mantém ou destrói uma face da cultura?

O levantamento e a análise dos dados de campo, embasados nas influências socioeconômicas e históricas das comunidades estudadas no decorrer desta pesquisa, permitiram esboçar uma hipótese para explicar o desaparecimento de uma parte da cultura – a língua – dos negros de Quartel do Indaiá e Ausente.

 

3. OS VISSUNGOS

3.1. Localização e contexto de uso dos Vissungos

Os vissungos são cantigas que os negros cantavam no trabalho de mineração de diamantes, “... para aligeirar, para tornar o trabalho mais suportável”, segundo Machado Filho em entrevista ao jornal Estado de Minas (1985). Ele dizia que, ainda menino, enquanto convivia com o trabalho de mineração, ouvia vissungos. E se orgulhava de ter sido o introdutor da palavra vissungo nos dicionários:

... é que fui eu quem introduziu esta palavra “vissungo” nos dicionários. está dicionarizada pela Enciclopédia do professor Antônio Houaiss. (...) E o Carlos Drummond registrou em um de seus poemas. Isto é uma grande alegria para mim.

Segundo Feliciano Cangue, aluno de mestrado da UFMG, falante nativo do dialeto umbundo, existe a palavra ocisungo [otSisuNgu] que significa ‘hino’ e que tem a forma plural como ovisungo [ovisuNgu] significando ‘cantos’, ‘músicas’, ‘hinos’. No dicionário recentemente lançado por Houaiss (2001) temos a seguinte definição

vissungo s.m. (sXX) etn mús MG canto responsorial de negros nas lavras de diamantes em Diamantina (MG) com palavras em português e línguas africanas F f. geral não pref.: viçungo ¤ etim umbd. ovisungu, pl. de ochisungu ‘canto’, registra Nei Lopes.

São cantos ritualísticos em línguas africanas que incorporam emoções de ordem social e religiosa.

Havia, dentre os vissungos, grupos temáticos, conforme a coleta de Machado Filho: Padre-Nossos, cantigas de multa, cantigas de rede e de caminho, gabando-se de qualidades, cantos da manhã, canto do meio-dia, pedindo licença para cantar, etc.

Atualmente os cantadores só reconhecem os vissungos de trabalho, de multa e de enterro.

Os vissungos eram cantados atrelados a práticas sociais. No trabalho, por exemplo, como eram em grande número, os escravos utilizavam a música para suavizar o esforço que faziam para levantar a roda d’água. Era também no ambiente de trabalho que os escravos multavam os fregueses. Com a abolição da escravatura, sem o trabalho grupal que anteriormente era exigido, essas práticas foram se dissipando. Hoje em dia é comum garimpar sozinho nestas localidades. Isto nos leva a compreender o esquecimento dos cantos de trabalho e de multa sofrido pelos nossos cantadores. Machado Filho (1985:66), faz referência a essas práticas:

Os negros no serviço cantavam o dia inteiro. Tinham cantos especiais para a manhã, o meio-dia e a tarde. Mesmo antes do sol nascer, pois em regra começava o serviço alta madrugada, dirigiam-se à lua, em uma cantiga de evidente teor religioso.

Registram as canções o momento em que o patrão, saindo de casa, se dirigia para a lavra. Note-se ainda que os trabalhadores não deixavam de rezar seu ‘Pade Nosso’, de que colhemos duas variantes.

(...) Vinda a abolição, os negros só queriam trabalhar com patrão que não proibisse os vissungos. No tempo da escravidão, não tinham direito de escolher senhor.

Já os cantos de enterro, se ligavam a outra prática social. Era necessário levar o defunto que morria nas localidades mencionadas para o cemitério dos respectivos distritos. Como não tinham acesso a meios de transporte, como carro de boi ou similar, eles levavam o defunto enrolado numa rede, amarrada em um pau, que era levada nos ombros por dois homens, e os acompanhantes, que revezavam o carregamento, iam cantando os vissungos ao longo do caminho. Hoje, com a pavimentação nestas localidades, com a chegada do carro (às vezes, funerário), não se faz mais necessária a realização desta prática social.

Segundo BOSI (1987: 336):

o grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso passado. (...) As lembranças grupais se apóiam umas às outras formando um sistema que subsiste enquanto puder sobreviver a memória grupal. Se por acaso esquecemos, não basta que os outros testemunhem o que vivemos. É preciso mais: é preciso estar sempre confrontando, comunicando e recebendo impressões para que nossas lembranças ganhem consistência.

Os vissungos não estão desaparecendo somente pela morte dos cantadores conforme atestava Machado Filho; as práticas sociais que incluíam esses cantos foram dizimadas e com elas a prática lingüística utilizada para suas realizações. Do ponto de vista sócio-histórico, a estrutura social mudou.

 

3.2. Os Vissungos enquanto textos

Uma vez situados os vissungos, tomemos como ponto de partida para as reflexões sobre os vissungos, enquanto textos, alguns conceitos básicos que se fazem necessários para os estudos sobre texto/discurso.

Em Koch (2002) temos um conceito de texto para cada concepção que se tem de língua e de sujeito:

Ø       Língua = representação do pensamento ® Sujeito = senhor absoluto de suas ações e de seu dizer ® Texto = produto lógico do pensamento do autor ® Leitor/ouvinte = passivo, capta essa representação mental juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor.

Ø       Língua = código, mero instrumento de comunicação ® Sujeito = (pre)determinado pelo sistema ® Texto = simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo Leitor/ouvinte = Passivo, precisa ter o conhecimento do código.

Ø       Língua = interacional (dialógica) ® Sujeito = ator/construtor social ® Texto = próprio lugar da interação ® Interlocutores[2] = sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto.

Segundo a autora, adotando-se esta última concepção – de língua, de sujeito, de texto – a compreensão deixa de ser entendida como simples ‘captação’ de uma representação mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma codificação de um emissor, para ser uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos. “O sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos (ou texto-co-enunciadores) e não algo que preexista a essa interação”.

Estas concepções vêm nos mostrar, de uma maneira bastante clara, as relações que são feitas entre os cantadores e o texto que cantam. Conforme foi dito anteriormente, os vissungos são cantados em língua africana, se é que assim podemos falar. Os cantadores do Quartel do Indaiá, como estão muito distanciados desta língua, não sabendo o significado das palavras, não articulando as palavras com proficiência, não alcançam mais o código e, portanto, têm substituído palavras africanas por palavras do português para lhes atribuir algum sentido. Podemos averiguar nos exemplos abaixo:

Em Machado Filho, (1985:73) o Vissungo I

Otê! Pade-Nosso cum Ave-Maria, securo camera qui t’Angananzambê, aiô...

Aiô!... T’Angananzambê, aiô!...

Aiô!... T’Angananzambê, aiô!...

Ê calunga qui tom’ ossemá,

Ê calunga qui tom’ Anzambi, aiô!...

 

Transformou-se em:

Ê Pade Nosso com Ave Maria segura o kane, Oi Dandaiola...

Ah ê...

Ô kanunga me chama gerê ê...ê[3]

Ô karan me chama gemá a...a...ê
Tê!

Tê...tê...tê...tê

Pade Nosso com Ave Maria segura o kane, Dandaia...

Dandaiê....ê

Ê...ê...

Ô kundero di ê num tem tempo

Oi vero o copo nuá tem tempo

Aiê!

Ô Kaíconde...ê...ê...ê

Ô kalúnga me toma bebê[4]

Ô kalúnga me toma sambá...á

Êi...

Pê...rê...rê...rê

O mico kumbarano num tem tempo

Ô pu kumbarano num tem tempo

Ô...ê...ê...êi

kumbarauê... ê...ê... ê... êi

kumbará...

kumbarauê... ei... ê

kumbarauê... ê... êi.

Há uma tentativa de buscar uma coerência no que estão cantando. Segundo Koch (2002), “também, a coerência deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na interlocução vêm a constituir, em virtude de uma construção dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos”. Essa busca incessante em atribuir sentido a tudo o que faz é uma característica do ser humano.

Esta reflexão sobre a produção de sentido, segundo Koch (2002) esclarece que o processamento textual, quer em termos de produção, quer de compreensão, depende, essencialmente, de uma interação – ainda que latente – entre produtor e interpretador. Assim compreendemos o recurso utilizado pelos cantadores do Quartel do Indaiá e passamos a ver os vissungos de uma maneira diferenciada, partindo do pressuposto de que não somos conhecedores do código e, portanto, a sua realização entre o meio sócio-cultural de sua proveniência e o meio urbano jamais poderá ser interpretada da mesma forma. Quando Sr.Crispim nos embevece com o canto dos vissungos, podemos admirar como um show, coberto de performances, mas infelizmente não alcançamos o sentido que os signos podem trazer. Daí a necessidade de reflexão sobre o contexto e suas concepções.

São várias as definições atribuídas ao termo contexto. Malinowski (1923) propôs os termos “contexto de situação” e “contexto de cultura”; Firth (1957) propôs “contexto social”; Halliday e Labov também trabalharam sobre a noção de contexto numa perspectiva sociológica e Hymes (1964) propôs o esquema SPEAKING que caracteriza o contexto da seguinte forma:

                S – Situação: cenário, lugar

                P – Participantes: falante, ouvinte

                E – Fins, propósitos, resultados

                A – Seqüência de atos: forma de mensagem/forma de conteúdo

                K – Código

                I – Instrumentais: canal/formas de fala

                N – Normas: normas de interação/normas de interpretação

                G – Gêneros.

Partindo da proposição de Hymes, podemos fazer uma análise mais detalhada dos vissungos onde, passo a passo, passaremos a conhecer sobre sua contextualização:

S – Os vissungos sempre tiveram como cenário o eixo social e cultural de descendentes de escravos, que viviam em aldeias mais isoladas.

P – Quem participa dos cantos, geralmente são os homens. Tanto no trabalho (nas catas de mineração), quanto nos enterros.

E – No trabalho, eram entoados para aliviar a carga. Os cantos de multa eram entoados com propósito de cobrar uma espécie de pedágio dos estranhos que passassem pelo seu local de trabalho. Nos enterros, eram entoados para encomendar a alma do defunto.

A – São cantos sempre tirados por uma pessoa que inicia e respondidos pelos demais cantadores do grupo. Quase sempre fazem uso de repetições e usam como recursos alguns sons - aproximadamente alveolar lateral flap - que são sons tipicamente africanos. A velocidade de fala difere nos vissungos de multa (mais rápidos) e nos vissungos de enterro (mais lentos).

K – O código usado, tanto pelos moradores de Quartel do Indaiá como pelo morador de Ausente é em língua africana. Mas, apesar de muitas palavras serem de origem kimbundu, não podemos afirmar que todas sejam, uma vez que nem todas foram encontradas no dicionário kimbundu-português de Assis Júnior[s. d.].

I – São sempre cantados. Nada é falado sem melodia. É uma espécie de diálogo, em que um sempre tira e os outros respondem. O único instrumento que se usa nos vissungos é a voz. No máximo, nas cantigas de multa, eles faziam som com os próprios instrumentos de trabalho.

N – Dança-se nas cantigas de multa, mas não se dança nas cantigas de enterro. Algumas interjeições são usadas sempre nos inícios dos cantos e na passagem de um canto para outro; tiradas pelo mestre e respondidas pelos demais.

G – Enquanto prática social, o vissungo é um gênero ligado a três domínios específicos, com pessoas específicas de uma determinada cultura, de uma determinada situação e geração de trabalho.

O contexto, como é hoje entendido no interior da lingüística textual, segundo Koch (2002: 25), abrange não só o co-texto, como a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolítico-cultural) e também o contexto sociocognitivo dos interlocutores que, na verdade, subsume os demais. “Há um consenso relativo sobre o fato de que, sob a noção de contexto, se oculta a hipótese de que nenhuma análise lingüística, de qualquer ordem que seja, pode ser feita sem levar em conta ou fazer intervir, em algum momento, elementos exteriores aos dados ou fatos lingüísticos analisados”.

Digamos que os vissungos têm o seu contexto interno e externo. No contexto interno seriam as condições acima citadas, ao passo que o externo seria a organização social, que permitiria a sua realização. Ambos se encontram diante de uma situação crucial: enquanto, dentro do contexto interno, assistimos aos últimos cantadores que, se não encontram o respondedor, não conseguem mais cantar; também, no contexto externo, vimos a ausência das condições sociais propícias às realizações das práticas.

Diante das afirmações acima avançamos para um outro aspecto na análise dos vissungos, que é o seu iminente desaparecimento. Os vissungos de trabalho e de multa desapareceram bem antes dos vissungos de enterro. O trabalho de mineração não acabou, mas a prática de mineração grupal, usando o negro como mão-de-obra, onde se juntavam pessoas à força para trabalhar, essa sim deixou de existir, desagregando um grupo que tinha suas práticas sociais específicas. Os vissungos de enterro ainda foram entoados no final do ano de 2001 com o falecimento de um morador de Baú.

Falar da quase iminente morte dos vissungos é também falar sobre morte de língua.

 

4. CONCLUSÃO

O objetivo principal que norteou a presente pesquisa foi descrever o gênero vissungo e analisar o seu desaparecimento, tendo em vista estudos sobre morte de língua. Para tanto, observamos as interações sociais dadas nos contextos de sua realização e analisamos as relações existentes entre o desaparecimento dos vissungos e as alterações nas práticas sociais, estabelecendo posterior comparação entre as realizações dos vissungos nos anos de 1930/1940 e nos anos de 2001/2002. Aspectos textuais, contextuais, sociais e culturais foram também considerados neste estudo.

Os vissungos, enquanto texto, podem ser o resultado de um colapso lingüístico, de várias línguas africanas – sobressaindo o kimbundo – mais a imperiosa fala dos senhores de lavra ou de terra. Os cantos, mais que cantos, eram uma forma de linguagem em que os escravos se comunicavam (situações que pudemos comprovar com os relatos sobre as práticas de multa e de enterro – quando chamavam o inimigo para o cemitério).

Segundo Hymes (1977: 45) os modos de fala são usados de uma maneira geral como um termo primitivo. Devem ser consideradas todas as manifestações e derivações da linguagem, incluindo escritas, canções, assobios, tambores, berrantes, etc.

No percurso, constatamos a partir dos dados de campo e de sua análise integrada às influências de ordem socioeconômica e histórica, que parte da cultura da população negra das comunidades de Quartel do Indaiá e Ausente, a saber, sua língua, encontra-se em franco processo de desaparecimento. As hipóteses levantadas para responder à pergunta sobre o que mantém ou destrói uma face da cultura, especificamente a língua, tiveram sua explicação a partir de fatores predominantemente sociais.

Uma das possibilidades de trabalhar a manutenção da cultura é através da arte. Ruth Monserrat no 11° COLE (Congresso de Leitura do Brasil), em 1999, em Campinas, em reflexão sobre a morte de línguas indígenas no Brasil contemporâneo, apontava para a arte como um espaço de preservação dessas línguas. Na ocasião, mencionou como exemplo CD’s de cantos rituais indígenas, divulgados junto ao público jovem, universitário, dos grandes centros urbanos brasileiros. A realização do espetáculo Macuco Canengue, bem como a produção do filme de Pedro Guimarães, a partir desta pesquisa, foram movimentos na direção dessa proposta de preservação da linguagem amplo sentido – dos povos que integram a cultura brasileira.

os fatores que contribuíram para a destruição da cultura podem ser especificados conforme a seguir:

Primeiramente, a presença da Igreja Evangélica na localidade coibindo as práticas religiosas, os rituais e as manifestações em dialeto; a falta de contextualização para o garimpo em massa onde os negros eram obrigados a trabalhar em grupo, vêm sendo impeditivas à sobrevivência da língua.

A melhoria dos serviços de infra-estrutura nas localidades, como a abertura de estradas públicas, permitindo a chegada do carro funerário; realidade que deixa pouca margem à prática dos vissungos de enterro.

O comportamento da sociedade hodierna, em que os filhos já não se assentam com os pais como se costumava fazer, permitindo que houvesse repasse da cultura (histórias, rituais, vissungos, crenças, etc.) aos descendentes.

Outro fator responsável pela extinção da língua é a falta de prestígio em cultivar sua cultura. Os filhos da população negra não vêem interesse algum em estar cultivando suas origens. Não se interessaram em aprender os vissungos, tampouco o dialeto. A língua padrão, ensinada como a única possível para ascensão social, faz com que os membros das comunidades de fala rejeitem a língua ancestral.

Dorian (1999) afirma que até mesmo onde a transmissão da língua continua prosperamente, o declínio e prestígio da língua ancestral podem conduzir a seu rápido desuso por pessoas mais jovens que têm acesso direto à língua de expansão.

Segundo Schlafman, de uma maneira geral, os homens preferem falar a língua que lhes permita se movimentar fora do seu grupo imediato, não aquela que os retém na aldeia natal. Se é um péssimo negócio para as línguas, pior ainda para as culturas ou religiões que só subsistiam graças à língua. Com cada dia menos uso, o saber pertencente aos velhos não está sendo repassado à próxima geração.

Sendo as práticas sociais realizadas em grupo, e tendo havido a supressão destas práticas, restam aos cantadores as reminiscências que trazem na memória. Para a realização desta pesquisa foi necessário trabalhar na construção social da memória; reunir os irmãos Pedro e Paulo foi preciso para possibilitar a criação de esquemas coerentes nas interpretações dos vissungos. A falta do respondedor, que dentro do contexto interno completa a seqüência de atos, impossibilita a realização dos cantos. Quando o cantador os evoca, não vem o reforço, o apoio contínuo dos outros cantadores. A participação grupal comum seria, portanto, decisiva.

Debruçar sobre o estudo dos vissungos e descobrir que já não são mais o legado de um povo rico em contribuições culturais e sim, vestígios ancestrais de uma comunidade que por falta de dinâmica evolutiva das práticas sociais prenuncia seu desaparecimento, nos coloca diante de uma realidade sobre a qual pouco pode ser feito.

Por fim, vale sugerir futuras pesquisas sobre os vissungos, que contemplem outros aspectos não compreendidos no atual trabalho. O principal deles é relativo à semântica e a fonologia entre as duas localidades pesquisadas, e dentro do próprio texto, visando um melhor aprofundamento sobre o texto dos vissungos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GIBBS, W. Wayt. Salve as línguas que estão morrendo. Scientific American Brasil, n. 3, p. 81-87, ago 2003.

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HYMES, Dell. Foundations in Sociolinguistics: an ethnographic approach. London: Tavistock Publications Limited, 1977. 248 p.

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MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro, Graal, 1982 apud FURTADO, Júnia Ferreira. O livro da capa verde: o regimento Diamantino de 1771 e a vida no distrito Diamantino no período da real extração. São Paulo: Annablume, 1996, 240 p.

PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. 244 p.


 

[1] O termo dialeto africano utilizado neste trabalho é apenas para se referir à linguagem dos vissungos como tudo o que não é cantado em português. Pode se tratar de variações dialetais de uma mesma língua ou ser línguas diferentes. Esta expressão está sendo usada como os próprios falantes comumente a usam.

* Textos ainda no prelo, cedidos pela autora para a realização desta pesquisa.

[2] Aqui, não mais leitor/ouvinte.

[3] Canto do Sr. Pedro.

[4] Canto do Sr. Paulo.