A PRESENÇA DA CULTURA
NAS
AULAS DE LÍNGUA ESPANHOLA

Rita de Cássia Miranda Diogo (UERJ)

 

Os alunos da UNATI constituem uma clientela específica, cujas características devem ser consideradas ao planejarmos nossas aulas. Entre outras considerações, o professor deve valorizar a iniciativa do idoso, que, diante da atitude mais cômoda e menos arriscada de permanecer no ambiente doméstico, teve a coragem de lançar-se aos inúmeros desafios que representa o convívio em sociedade, especialmente se pensamos em seu estado atual de violência e desrespeito ao outro. Por outro lado, não devemos esquecer que este fato empresta uma nova dimensão ao trabalho de nossos estagiários, que ao proporcionar-lhes a oportunidade de aprender uma língua estrangeira, lhes permite entrar em contato com uma cultura diferente, assumindo desta forma a importante função de agentes facilitadores da inserção deste aluno num contexto social mais amplo.

Os idosos representam hoje a faixa da população que mais cresce em nosso país, levando nossa sociedade a pensar com mais responsabilidade a questão do envelhecer. Assim, a Terceira Idade vêm suscitando debates que abarcam os mais diferentes âmbitos, do psicológico ao biológico, nos mais variados meios, seja no acadêmico ou na esfera da comunicação de massa: nos jornais, revistas, televisão, o desafio da longevidade com qualidade de vida tem estado na pauta do dia. No entanto, todos coincidem em afirmar que para envelhecer bem, além de cultivar hábitos alimentares saudáveis, é necessário manter em atividade o corpo e a mente. Acreditamos que é exatamente quanto a este último aspecto, que o projeto de Ensino de Língua Estrangeira na UNATI se reveste de grande importância.

Ao aprender uma língua estrangeira, nosso aluno tem a oportunidade de, entre outros benefícios, estimular o uso do raciocínio, da memória, da criatividade, de transferir conhecimentos lingüísticos e culturais adquiridos a partir das experiências com a língua materna, bem como de socializar-se, integrando-se com o mundo que o cerca. Uma integração que, em relação ao ensino de língua estrangeira, pode dar-se em dois âmbitos principais: o primeiro se refere às relações interpessoais em sala de aula, especialmente através de atividades lúdicas, nas quais nossos alunos aprendem divertindo-se; o segundo, ao contato que passam a estabelecer com uma nova cultura, cujos valores e crenças nem sempre coincidem com os seus. Será exatamente em torno deste último âmbito que gostaríamos de deter nossa comunicação.

A presença da cultura nas aulas de língua estrangeira assume um papel relevante, na medida em que ao conhecer outros modos de vida, outras formas de nomear e de representar o mundo, passamos a relativizar a própria cultura, nos dando conta de que existem outras possibilidades de viver e de pensar além das que acreditamos e vivemos. Num mundo de intensas relações interculturais, regido pelos grandes meios de comunicação de massa, além da Internet e das televisões a cabo, esta abertura para a cultura alheia torna-se imprescindível, pois, caso contrário, estaremos nos arriscando a viver alienados e excluídos desta nova sociedade.

Como vemos, nosso idoso encontra-se diante de mais um desafio, tão importante, diríamos, quanto aprender uma língua estrangeira, e para o qual nossos bolsistas e voluntários devem trabalhar como agentes facilitadores, oferecendo-lhes diversas oportunidades de contato com a cultura estrangeira, seja através da música, literatura, cinema ou dança.

Por outro lado, quanto à aprendizagem da língua espanhola, devemos estar atentos para apresentar as culturas hispânicas não como um bloco único, mas sim em revelá-las em sua pluralidade. Como todas as culturas, as hispânicas são também um processo em constante construção, destruição e reconstrução, que propriamente algo fechado e passível de definições e conceitos. Relativizando-as, abrimos nossas mentes para receber as diversas visões de mundo que existem, não entre diferentes culturas, como dentro de uma mesma cultura, rompendo com qualquer vestígio de etnocentrismo, ao mesmo tempo que aprendemos a conviver com as diferenças. Ou seja, a perspectiva cultural nos ajuda a compreender melhor fatos que, a partir de nossa cultura muitas vezes nos parece inadmissíveis.

Como exemplo podemos citar o caso das touradas (em espanhol, corrida de toros), que em geral, a nós brasileiros, nos causa verdadeiro horror. No entanto, ao vê-la como um símbolo e ao empenhar-nos em decifrá-lo, damos início a uma empresa sedutora, que ao contrário de ameaçar a sobrevivência de nossa cultura, ou ainda, de nosso entendimento do mundo, nossos valores e códigos, pode enriquecê-la com novos signos, idéias, perspectivas. Além disso, esta experiência se converte numa oportunidade de auto-conhecimento, que somente “sou” em relação ao “outro”, cujas semelhanças e diferenças sempre falam algo de mim. Entrar em contato com outras culturas é, acima de tudo, um trabalho de comparação, análise, generalização, mas também de especificação, que nos situa num espaço plural entre o “eu” e o “outro”, o “meu” e o “teu”, o “aqui” e o “ali”, num processo de contínuo intercâmbio, sem a necessidade de escolher um dos extremos.

Em nossas aulas de língua estrangeira, podemos começar discutindo o conceito de “cultura”. Aproveitando a bagagem de experiências dos alunos, escrevemos no quadro negro suas opiniões, pedindo em seguida que as confrontem com o que os dicionários nos dizem. Veremos, pois, que existem duas acepções que parecem estar presentes na maioria deles, são elas: 1. a que se refere à origem agrária do termo e 2. a que o relaciona com erudição, educação, refinamento.

Gostaria de me deter na primeira baseando-me num texto de Octavio Paz[1], no qual o autor desenvolve a origem agrária da palavracultura” e suas repercussões. Segundo o escritor mexicano, esta acepção de cultivar a terra, lavrá-la, nos remete à idéia de cultivar o espírito, um povo, para que bons frutos, revelando-se o seu caráter produtivo. Dando continuidade a suas reflexões, Paz conclui pela seguinte definição: “... (cultura) é o conjunto de coisas, instituições, idéias e imagens que usa uma sociedade determinada, porque as inventou ou porque as herdou ou porque as adotou de outras culturas. Uma cultura é acima de tudo um conjunto de coisas: arados, colheres, fuzis, microfones, carros, barcos, campos de cultivo, jardins.”[2]

Outro aspecto importante de sua análise e que a nós, professores de espanhol, nos interessa mais de perto, é a relação que existe entre cultura e língua. Ou seja, a cultura é também um conjunto de instituições, e ao instituir-se, ao estabelecer sua estrutura social, a sociedade se denomina, distinguindo-se das demais. Segundo Paz, é desta forma que a cultura ingressa no “universo dos nomes”, no “mundo dos signos” e se revela como uma linguagem. Assim sendo, podemos concluir a partir dos estudos deste autor, que um dos caminhos mais eficazes para conhecer uma cultura é aprender a sua respectiva língua, traduzindo seus nomes, suas imagens, seus símbolos. Por outro lado, devemos acrescentar que, para aqueles que se dedicam a dominar uma língua estrangeira, conhecer a sua cultura é algo imprescindível, na medida em que a primeira é um produto cultural e como tal, em constante interação com os demais produtos culturais de um determinado povo, ao lado dos quais se constrói e reconstrói. Para concluir, digamos que podemos ter acesso a uma cultura sem necessariamente conhecermos sua língua, ou a tradução perderia uma de suas mais importantes funções, enquanto que aprender uma língua estrangeira sem conhecer a sua cultura é como aprendê-la de forma incompleta, diria mesmo acrítica, mantendo um olhar ingênuo sobre ela.

Por outro lado, podemos dizer que o trabalho a partir da perspectiva cultural é também uma utopia, ainda que seja uma utopia possível, especialmente se levarmos em consideração as dificuldades que os professores enfrentam em nosso país. O primeiro obstáculo com o qual nos defrontamos é o acesso à informação, apesar de vivermos uma era de desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação. Aludindo agora aos escritos de Canclini[3], a integração econômica que assistimos entre os diferentes continentes, mais especificamente entre os países da América do Sul, não encontra correspondência na esfera cultural. Nesse sentido, o autor propõe o estabelecimento de uma política de mercados comuns latino-americanos de livros, revistas, televisão e vídeo, com programas que facilitem a informação e o conhecimento recíproco através das indústrias culturais. Além disso, temos que considerar o caráter plural das culturas hispânicas de um modo autêntico, evitando os estereótipos inerentes aos veículos de comunicação de massa e valorizando as contribuições dos diferentes grupos étnicos, que na América Hispânica, longe de poderem ser qualificados de “minorias”, constituem a maioria da população: índios, negros, mestiços.

Apesar de todas as dificuldades, o importante é que o trabalho cultural nas aulas de LE seja uma busca conjunta entre professores e alunos, lutando por encontrar nas semelhanças, e mais ainda nas diferenças, seu próprio rosto ou as diferentes caras da cultura nativa e da alheia. Para tanto, podemos tentar formar um arquivo de “Culturas Hispánicas”, pedindo aos estudantes que contribuam com informações de diferentes fontes: jornais, enciclopédias, revistas, páginas da Internet, fotos, vídeo, etc., criando atividades, de preferência em grupos, nas quais estes materiais possam ser utilizados, seja através de jogos, na apresentação de trabalhos ou simplesmente como uma opção entre as tarefas de aula.

No que se refere ao trabalho na UNATI, nossos alunos têm muito a contribuir neste aspecto, pois são pessoas maduras, que trazem uma importante bagagem de experiência, ou seja, de conhecimento de mundo, que cabe ao professor, bolsista e estagiário, explorar. Talvez não tenham o conhecimento específico sobre as culturas hispânicas, mas certamente conhecem bem o que está por detrás de toda cultura: o ser humano, seus medos e desejos, conquistas e frustrações, realizações e decepções. Afinal, não estaria aí o elemento comum a toda cultura? E aí cabe outra pergunta: será então que ao decifrar o homem, estaríamos encontrando a chave para o conhecimento cultural? Por todas as correntes filosóficas, psicanalíticas e científicas que o interesse pelo homem já engendrou, essa talvez seja uma tarefa inalcançável para nós, simples humanos. Tal fato, por sua vez, transforma o conhecimento cultural num empenho infinito, que deve estar em permanente construção, atualização, pois caso contrário, corremos o risco de cair em estereótipos e preconceitos, cristalizando imagens e símbolos, cuja natureza é o movimento e a transformação.


 

BIBLIOGRAFIA

CANCLINI GARCÍA, Néstor. A integração num contexto pluriétnico e pluricultural. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, (122-123) :43-58, jul.-dez. 1995.

FUENTES, Carlos. El espejo enterrado. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.

PAZ, Octavio. Televisión: cultura y diversidad.  In: Hombres en su siglo y otros ensayos. Barcelona: Biblioteca de bolsillo, 1990.


 

[1] PAZ, O. (1990).

[2] Ibid, p. 69. A tradução é nossa.

[3] GARCÍA CANCLINI, N. (1995) p. 43-58.