LÉSBIA: A INSPIRAÇÃO ROMÂNTICA DE CATULO

Ivone da Silva Rebello

CATULO: SUA VIDA, SUA OBRA

Caio Valério Catulo nasceu em Verona (Veronam ueniat... - venha a Verona; c. 35,3), uma cidadezinha da Gália Cisalpina e, provavelmente, morreu em Roma. A cronologia de sua vida 84 - 54 é a mais provável. Devia pertencer a uma rica família da nobreza provincial, talvez oriunda da gens Valeria romana, pois seu pai possuía uma uilla na península de Sírmio (cf. c. 31), e tinha relações de amizade e de hospitalidade com Júlio César. O próprio poeta, ao mudar-se para Roma, residia numa uilla situada entre Tívoli e Sabina (cf. c. 68, 34 - 35: hoc fit, quod Romae uiuimus; illa domus, /illa mihi sedes, illic mea carpitur aetas; - em Roma vivo: aí é minha casa, aí , minha morada, aí desfruto a vida e cf. c. 44: O funde noster seu Sabine seu Tiburs, - O sítio meu , Sabino ou Tiburtino). Com relação à sua cidade natal, o poeta fala dela com certa tristeza:

Quare, quod scribis Veronae turpe Catullo

esse quod hic quisquis de meliore nota

frigida deserto tepefactat membra cubili,

id, mi Alli, non est turpe, magis miserum est.

(c. 68, 27 - 30)

quando então dizes, Álio, "é tolice, Catulo,

ficares em Verona, que um Romano

já esquenta o frio dos pés no leito que deixaste",

isto não é tolice, mas tristeza.

Em Roma, Catulo se ligou a um círculo de poetas de ideais estéticos comuns. Cícero, no entanto, não se simpatizava com esta escola literária e a chamava de poetae noui, dando a esta expressão um certo matiz pejorativo. Catulo, respondendo a este insulto, escreve os poemas 44 e 49, agradecendo a Cícero o fato de ter lhe deixado o lugar livre para amar Lésbia, suposta amante do orador.

Disertissime Romuli nepotum,

quot sunt quotque fuere, Marce Tulli,

quotque post aliis erunt in annis,

gratias tibi maximas Catullus

agit pessimus omnium poeta,

tanto pessimus omnium poeta

quanto tu optimus omnium patronus.

(49, 1 - 7)

Ó tu mais loquaz dos filhos de Rômulo,

de quantos são e quantos foram, Cícero,

e de quantos hão de ser no futuro,

um muito obrigado te diz Catulo-

o pior dentre todos os poetas-

tanto pior de todos os poetas

quanto tu o melhor dos defensores.

O poeta, em sua obra, mostra a urbanidade da época ciceroniana em franca transformação no plano moral, político e artístico e desejava que os seus poemas durassem por mais de um século (c. 1, 10: plus uno maneat peremne saeclo - que viva, ó deusa virgem, mais de um século).

Os momentos políticos apresentados no Liber são a marca do cruzamento entre a cidade ideal, desejada pelo poeta, e a outra cidade do poder real, da riqueza, da guerra, das conquistas e conflitos.

Para Catulo, a verdadeira cidade devia assentar-se na sodalitas dos amigos, com suas leis, amizades e inimizades.

O poeta, no entanto, coloca diante de si uma mulher pública, envolvida com a política da época, chamada por ele de Lésbia, conforme os cânones da poesia alexandrina.

Lésbia será o centro do universo poético preconizado pelo poeta, o qual também pertenciam os seus amigos.

A paixão imedida de Catulo levou-o a uma vida agitada, dissoluta, envolvida por tantas paixões e contrastes, terminando por arruinar-lhe a saúde e lhe trazendo a morte quando contava com apenas 30 anos.

QUEM FOI LÉSBIA?

Lésbia (Clódia) foi mulher de Quintus Metellus Celer, filha de Appius Claudius Pulcher. Lésbia era um falsum nomen, segundo Ovídio.

Sic sua lasciuo cantata est saepe Catullo

Femina cui falsum Lesbia nomen erat.

(Tristes II, 427-428)

Assim foi freqüentemente celebrada em versos pelo lascivo Catulo

A mulher cujo pseudônimo era Lésbia.

Não foi difícil tirar tal conclusão, tendo em vista a admiração do poeta pela poetisa de Lesbos - Safo. Além disso, Apuleio (séc. I d.C.) diz que Lésbia é Clódia, pois os poetas elegíacos escolhiam um pseudônimo que tivesse o número de letras igual ao do nome verdadeiro, conforme os cânones da poesia alexandrina (Lesbia/Clodia).

Eodem igitur opera accusent C.Catullum

Quod Lesbiam pro Clodia nominarit.

(Apologia 10)

A Lésbia dos poemas catulianos, pesava-lhe a suspeita de ter causado a morte de seu marido e que, após se tornar viúva, se amantizara com Caelus Rufus (cf. c. 77), pondo de lado Catulo, amante que tivera durante a vida com o marido.

Rufe, mihi frustra ac nequiquam credite amice,

(v.1)

Rufo!, que à toa e em vão pensei ser meu amigo

O romance estabelecido entre o poeta e Clódia é a fonte de inspiração de toda a arte catuliana.

Segundo estudos críticos, talvez a relação amorosa do poeta tenha começado por volta de 61-60, em Verona, época em que o marido de Clódia era governador da Gália Cisalpina.

O primeiro encontro do poeta com essa patrícia, muito mais velha do que ele, deu-se no banquete de Lucullus, personagem do poema 4, no ano 63.

O poema 68 fala-nos de alguns encontros furtivos proporcionados na casa de um amigo comum, situação freqüente nas classes superiores.

isque domum nobis isque dedit dominam,

atque ubi communes exerceremus amores.

(v.68-69)

me deu morada e deu-me à sua dona,

e lá comuns nós praticávamos amores.

Ainda, neste mesmo poema (v.135-136), Catulo constata a sua impossibilidade de ter uma Lésbia virtuosa (Quae tamenetsi uno non est contenta Catullo, / rara uerecundae furta feremus erae - Embora ela não se contente só com Catulo,/ as raras infidelidades de uma senhora discreta suportaremos) e tenta suportar a sua dor com a própria autoestima (cf. c. 76, 25-26: ipse ualere opto est taetrum hunc deponere morbum/ O dei, reddite mi hoc pro pietate mea - Quero estar bem, deixar esta dor ruim. Deuses!/ Isto me dai por minha piedade).

Como todos os poetas líricos, Catulo identifica-se perfeitamente com a tríade amor, mulher e poesia. A formosura de sua amada foi a todo momento celebrada, a ponto de comparar Cibele e Quíntia com Lésbia, pois o encanto físico foi determinante no seu amor (cf. c.51).

...et enum uenuste

magno Caecilio incohata mater.

(c.35, 17-18)

...bela está

Cibele em versos de Cecílio, grande

Quintia formosa est multis, mihi candida, longa,

recta est. Haec ego sic singula confiteor

(c.86, 1-2)

Para muitos Quíntia é bela, para mim é

clara, esguia, bem feita; isto eu aceito.

No entanto, a beleza de tais mulheres não são comparáveis à beleza de sua Lésbia.

Lesbia formosa est, quae cum pulcerrima tota est,

tum omnibus una omnis subripuit ueneres

(c.86, 5-6)

Lésbia sim é linda: toda belíssima,

só ela a todas roubou toda a graça.

O AMOR EM ROMA

Em Roma, os antigos romanos consideravam o amor como uma loucura ou um delírio passageiro. A paixão amorosa era uma doença. Isto porque a paixão alienava a vontade própria e tornava o ser apaixonado dependente de outra pessoa. Sob o domínio da paixão, o homem perde seu poder, escraviza-se e aliena-se.

Confiava-se à mulher (matrona) a responsabilidade da fecundidade, pois a mesma encarnava os ideais de segurança, estabilidade, permanência e perpetuação da raça, além de gozar na domus uma veneração tal qual à dedicada publicamente a Vênus.

As Matronalia, celebração das mulheres casadas, e a Bona Dea remetem-nos aos ritos de fecundidade da Roma antiga. Estamos diante de uma sociedade viril, em que o caráter religioso da fecundidade está baseado na união mulher e homem. O amor conjugal é visto essencialmente numa perspectiva do "amor fecundo", ou seja, o homem ao desposar uma mulher vai naturalmente torná-la mãe. Daí haver uma preocupação, por parte do homem romano, de proteger as suas esposas das paixões ou outras forças maléficas que pudessem comprometer a estabilidade amorosa.

O amor, como sentimento fundado no desejo carnal, foi uma situação social menosprezada pelos costumes romanos.

A relação conjugal estava baseada na fides do matrimonium, ou seja, na lealdade da mulher ao marido, já que este podia lançar mão das cortesãs, instrumentos do prazer, cuja feminilidade, em princípio, fora profanada.

A partir dos meados do século II a.C., com a influência do helenismo e a evolução dos costumes sociais romanos, vinculados ao enfraquecimento da patria potestas, a relação afetiva entre homem e mulher foi se libertando dos tabus e imposições tradicionais, levando a mulher a uma emancipação progressiva na vida social.

No entanto, a conquista da dignidade da mulher conduziu os romanos ao reconhecimento consciente do verdadeiro amor conjugal e ao depuramento do verdadeiro sentido do amor como fonte de vida espiritual, graças à ascese cristã.

Assim, no tempo de Adriano (117-138 d.C.), as núpcias não eram mais realizadas pelo constrangimento, ou seja, com a intenção de aproximar as gens, ou como nos finais da república, por interesses políticos ou econômicos, mas sim, com o consentimento dos noivos. Nesse contexto, o amor paternal ganha novas dimensões, pois até Cícero já apontara a família como a comunidade natural mais apropriada para proporcionar a benevolência recíproca e a caridade (cf. De Officis I, 17, 54).

A partir dos finais da República, a proliferação do divórcio antecipa a problemática do casamento e do amor conjugal.

Dentro desse contexto social, Catulo é o verdadeiro protótipo do jovem aristocrata provinciano, que chega à urbe e se enamora por uma mulher pertencente a outrem. E, o nascimento desta paixão faz com que o poeta se torne um "escravo" da amante que irá nortear e dar vida a toda sua obra.

Catulo foi um dos poetas latinos que mais cultivou a amizade, ao lado do amor, sendo estes temas de inspiração artística, desenvolvidos conforme a tradição grega: amizades vivas, porém acidentadas por rivalidades e traições.

Dos 116 poemas do Liber, 68 referem-se a amizades e inimizades de personagens do relacionamento do poeta. Um dos seus confidentes foi Cornifício, ao qual Catulo lhe expressa a dor que perpassa a sua alma devido às infidelidades de sua amada Lésbia e chega a lhe pedir uma palavra de consolo. Já Alfeno Varo é um dos seus falsos amigos, pois lhe rouba a amada.

Malest, Cornifici, tuo Catullo,

malest, me hercule, est laboriose,

et magis magis in dies et horas,

quem tu, quod minimum facillimumque est,

qua solatus est allocutione?

Irascor tibi. Sic meos amores?

Paulum quid lubet allocutionis,

maestius lacrimis Somonideis.

(c.38)

Vai mal, Cornifício, o teu Catulo,

vai mal e - por Hércules -, padece demais, muito

mais, a cada dia, a cada hora.

E tu - se era nuga, se era nada -

que consolo deste, que palavras?

Sinto ódio. Assim, és meus amores?

Só poucas palavras, certas, mais

tristes que o lamento de Simônides.

Varus me meus ad suos amores

uisum duxerat e foro otiosum.

(c.10, 1-2)

Varo, para que eu visse seus amores,

de meu ócio no fórum me levou.

As inimizades de Catulo tiveram motivações diversas: quer por ter sido vencido na competição amorosa, quer por rivalidade poética, quer pelo menosprezo com que os seus contemporâneos olharam a sua produção literária.

Palavras como amicus, amicitia e sodalis vão ocorrer freqüentemente nos versos de Catulo. Em seus poemas:

sente saudades e propõe encontros ao poeta Cecílio;

Poetae tenero, meo sodali

uelim Caecilio, papyre, dicas

Veronam ueniat, Noui relinquens

Comi moenia Lariumque litus;

nam quasdam uolo cogitationes

amici occipiat sui meique.

(c.35, 1-6)

A Cecílio - poeta de ternuras,

meu companheiro - peço, ó papel, digas

venha a Verona, atrás deixando os muros

da Nova Como e o litoral do Lário,

pois algumas idéias de um amigo

meu e dele também desejo que ouça.

.reconhece e agradece os serviços prestados por Mânlio e Álio;

Non possum reticere, deae, qua me Allius in re

uuerit aut quantis iuuerit officius,

(c.68, 41-42)

Não posso calar, deusas, como Álio ajudou-me,

ou com quantos favores me ajudou.

diz que é perigoso mostrar-se humano.

Desine de quoquam quicquam bene uelle mereri

aut aliquem fieri posse putare puim.

Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne

prodest, immo etiam taedet obestque magis,

ut mihi, quem nemo grauuius nec acerbius urget

quam modo qui me unum atque unicum amicum habuit.

(c.73)

Desiste de esperar de alguém alguma coisa

ou crer que alguém será reconhecido.

É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o

bem, não!, dá tédio, mais: faz mal qual fez

comigo, a quem ninguém mais grave e fundo fere

que quem só eu de amigo teve o único.

Segundo o ideal romano, deslealdade e traição são os terríveis estigmas da amizade e do amor.

O CONCEITO DE AMOR EM CATULO

Catulo não foi o único poeta a transgredir o código moral do casamento. A sua afeição e o seu sentimento amoroso por Lésbia começaram pelo olhar (cf. c.51), pois a imagem da mulher amada constitui-se na força avassaladora que o toca profundamente e arrebata os seus sentidos.

...nam simul te,

Lesbia, aspexi, nihil est super mi

(c.51, 6-7)

...pois uma vez

que te vi, Lésbia, nada em mim sobrou

No poema 5, temos a evolução do pensamento do poeta no que diz respeito a sua vivência no amor, àquela equivalente à do amor livre. Notamos, porém, que a sua visão de mundo era completamente diferente da amada. Daí seus constantes desentendimentos com Lésbia.

Lésbia prometeu a Catulo um amorem iucundum perpetuumque - amor delicioso e perpétuo. No entanto, o poeta não se contenta e suplica aos deuses para que as palavras de Lésbia sejam sinceras ao ponto de elevar este amor a um aeternum foedus amicitiae - um pacto recíproco de afeição.

Viuamos, mea Lesbia, atque amemus,

rumoresque senum seueriorum

omnes unius aestimamus assis.

(c.5, 1-3)

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,

e aos rumores dos velhos mais severos,

a todos, voz nem vez vamos dar.

Iocundum, mea uita, mihi proponis amorem

hunc nostrum inter nos perpetuumque fore.

Dei magni, facite ut uere promittere possit,

atque id sincere dicat et ex animo,

ut liceat nobis tota perducere uita

aeternum hoc sanctae foedus amicitiae.

(c.109, 1-6)

Minha vida!, me dizes que este nosso amor

será feliz aos dois, será eterno.

Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,

que sincera e de coração o diga

e que nos seja dado, a vida inteira, sempre

este pacto viver de amor sagrado.

Em alguns de seus poemas (3, 5, 7, 36, 43, 83, 86, 92 e 107), Catulo deixa transparecer a sua felicidade ao lado de Lésbia. No entanto, com o passar do tempo, o poeta percebe que o sentido do amor para sua amada é diferente do seu.

No poema 87, o poeta mostra que o seu amor é verdadeiro, permanente e leal, afirmando que nenhuma mulher foi tão sinceramente amada como a sua Lésbia.

Nulla potest mulier tantum se dicere amatam

uere, quantum a me Lesbia amata mea es.

Nulla fides nullo fuit umquam foedere tanta,

quanta in amore tuo ex parte reperta mea est.

(v.1-4)

Mulher alguma pode se dizer bastante

amada quanto amada é por mim Lésbia.

Em pacto algum jamais houve tanta confiança

quanto a que em mim se viu em teu amor.

No entanto, o conflito emocional e poético torna-se mais acentuado quando as infidelidades de Lésbia são ainda mais notórias.

Nota-se, através dos poemas 72 e 109, que os dois amantes caminham em sentidos opostos do amor, a ponto de Lésbia afirmar que Catulo só ama a si mesmo. Lésbia, porém, deixa transparecer o seu amor material, o mais convencional da esfera física. E o poeta afirma que:

Dilexi tum te non tantum ut uulgus amicam,

sed pater ut gnatos diligit et generos.

(c.72, 3-4)

Então te quis, não como o povo quer amantes

Mas como um pai os filhos quer e os genros.

Ut liceat nobis tota perducere uita

aeternum hoco sanctae foedus amicitiae.

(c.109, 5-6)

e que nos seja dado, a vida inteira, sempre

este pacto viver de amor sagrado.

Tais poemas constituem um dos exemplos mais claros do amor sem intenção sensual.

Ainda no poema 72 (v.7-8), o poeta faz uma análise dos seus próprios sentimentos - Qui potis est? - Como é possível? Há um sobressalto emocional. E, no poema 76, o poeta afirma que

Difficile est longum subito deponere amorem

Difficile est, uerum hoc aua lubet efficias.

(v.13-14)

Difícil é deixar súbito um longo amor.

É difícil, mas tenta como podes.

Já no poema 85, o amor é expresso no paradoxo odi e amo. E, no segundo verso, com a palavra excrucior ( palavra que significa "submeter ao castigo da cruz", pena reservada apenas para os escravos e, por isso, considerada infame), o poeta apresenta um desespero, um tormento acompanhado de sentimentos de culpa por ter alimentado ao longo dos anos um amor vão.

Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.

Nescio, sed fieri sentio et excrucior.

(v.1-2)

Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?"

Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.

Para Catulo, a felicidade do amor se realiza quando os seres "amam e são amados com igual ardor".

Mutuis animis amant, amantur.

(c.45, 20)

com mútuas almas amam-se um ao outro.

Segundo Catulo, através do matrimonium, o homem e a mulher devem ser o exemplo de fraternidade universal. E, em seu poema 62, exorta a que se valorize o casamento, pois o casamento feliz, fundado no amor, é exigente.

Et tu nei pugna cum tali coniuge, uirgo.

Non aequom est pugnare, pater cui tradidit ipse,

(c.62, 59-60)

E com marido assim não lutes, noiva, é injusto

lutares contra aquele a quem te deu teu pai,

Lésbia nega-se ao casamento porque renuncia ao verdadeiro amor conjugal. E isto leva Catulo a uma situação de tortura em relação ao comportamento da amada que foge do aperfeiçoamento amoroso.

Miser Catulle, desinas ineptire,

et quod uides perisse perditum ducas.

............................................................

Nunc iam illa non uolt; tu quoque, inpotens, noli,

nec quae fugit sectare, nec miser uiue,

sed obstinata mente perfer, obdura.

Vale, puella. Iam Catullus obdurat,

...........................................................

Scelesta, uae te; quae tibi manet uita!

...........................................................

At tu, Catulle, destinatus obdura.

(8, 1-2; 9-12; 15; 19)

Infeliz Catulo, deixa de loucura,

e o que pereceu considera perdido.

.......................................................

Agora ela não quer: tu, louco, não queiras

nem busques quem foge nem vivas aflito,

porém duramente suporta, resiste.

Vai, menina, adeus, Catulo já resiste,

..........................................................

Ai de ti, maldita, que vida te resta?

..........................................................

Mas tu, Catulo, resoluto, resiste.

Finalmente, no poema 68, Catulo lamenta a sua infelicidade pela perda de dois seres amados: Lésbia e o irmão.

Multa satis lusi; non est dea nescia nostri,

quae dulcem curis miscet amaritiem;

............................................................

... O misero frater adempte mihi,

tu mea tu moriens fregisti commoda, frater,

tecum una tota est nostra sepulta domus,

omnia tecum una perierunt gaudia nostra,

quae tuus in uita dulcis alebat amor.

(c.68, 17-18; 20-24)

muito me diverti com versos, nem me esquece

a deusa que ata doce e amaro a amor:

................................................................

(eu, mísero), ah irmão!, de mim roubado,

tu, irmão, ao morrer, partiste minha calma,

contigo nossa casa está enterrada,

contigo foi-se embora, vã, nossa alegria

que em vida teu gentil amor nutria.

O Liber catuliano apresenta o percurso moral de Lésbia, denunciando a degenerescência de um mundo de valores consagrados pela tradição clássica. Isto porque Clódia, viúva de Metelo, poderia tornar-se a casar. Mas a decadência da nobilis Claudia/Clodia é tanto política quanto moral e a relação de Catulo com Lésbia se enquadra também no clima de depravação moral que pairava na urbe romana.

A poesia de Catulo é uma manifestação da Roma ancestral que se opõe ao homem do seu tempo, imerso na libertinagem, na cobiça e no crime.

Lésbia, mulher amada pelo poeta e musa dos seus poemas, esbarra com o ideal da relação amorosa desejada por Catulo e, ainda, com aquela que prega o amor matrimonialis.

Muitos acontecimentos como: o amor ingrato, a morte do irmão, o abandono dos amigos, levaram o poeta a uma progressiva reflexão.

Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne

prodest, immo etiam taedet obestque magis,

(c.73, 3-4)

É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o

bem, não!, dá tédio, mais: faz mal qual fez

comigo,...

A Lésbia da poesia catuliana é a personificação da Clódia Metelo, protótipo as mulheres dos fins da República, desejosa de prazer, sendo mais importante a busca do amor carnal que conduz à depravação dos costumes do que o dever prescrito pela moral institucional do casamento.

Frontem tabernae sopionibus scribam.

Puella nam mei, quae meo sinu fugit,

amata tantum quantum amabitur nulla,

pro qua mihi sunt magna bella pugnata,

consedit istic. Hanc boni beatique

omnes amatis, et quidem, quod indignum est,

(c.37, 10-15)

nessa taberna vou grafar grafitos

pois a menina, que a meu peito foge,

amada quanto ninguém mais será

por quem tão grandes guerras já pugnei,

senta-se aí. E ela, ledos, lestos,

todos amais, é certo, e o que é indigno,

No entanto, o poeta tenta reabilitar a dignidade do matrimonium e da família, comprometidos pela perversão moral e pelo menosprezo à fides e à pietas.

Catulo, portanto, é um aprendiz do amor, que vai refletindo sobre a sua condição de amante traído, de sua relação frustrada (cf. c.8 e 58) e tenta superar tal situação, clamando aos deuses para aliviarem a sua alma torturada.

O dei, si uestrum est misereri, aut si quibus unquam

extremam iam ipsa in morte tulistis opem,

me miserum aspicite et, si uitam puriter egi,

eripite hanc pestem perniciemque mihi,

..........................................................................

ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum.

O dei, reddite mi hoc pro pietate mea.

(c.76, 17-20; 25-26)

Ó deuses, se é de vós ter pena ou se já a alguém

último auxílio destes na sua morte,

olhai-me triste e se uma vida levei pura,

arrancai-me esta peste e perdição

...........................................................

Quero estar bem, deixar esta dor ruim. Deuses!

Isto me daí por minha piedade.

Podemos considerar os poemas 51 e 52 como uma espécie de epitáfio à vida sentimental do poeta. A lição que o poeta nos passa é que o otium lhe foi prejudicial, pois ele deixou a carreira política para dedicar-se ao amor e, agora, está longe do amor de Lésbia e vê Nônio sentado na cadeira curul e Vatínio perjurado pelo consulado.

Otium, Catulle, tibi molestum est.

(c.51, 13)

O ócio, Catulo, te faz tanto mal.

Quid est, Catulle? Quid moraris emori?

Sella in curulei struma Nonius sedet,

per consulatum perierat Vatinius;

qui est, Catulle? Quid moraris emori?

(c.52, 1-4)

Eh, Catulo, por que demoras em morrer?

Nônio, escrófula, ocupa o assento curul,

Vatínio jura, por um falso consulado:

por que Catulo tu demoras em morrer?

Finalmente, perdido tudo, resta-lhe esperar apenas pela morte enquanto Lésbia se diverte com os seus amantes (cf. c.11).

Cum suis uiuat ualeatque moechis,

quos simul complexa tenet trecentos

nullum amans uere, sed identidem omnium

ilia rumpens;

nec meum respectet, ut ante, amorem,

qui illius culpa cecidit uelut prati

ultimi flos, praetereunte postquam

tactus aratro est.

(v.17-24)

Vá viver e gozar com seus amantes,

que, juntos, uns trezentos ela agarra

nenhum de fato amando mas os membros

rompendo em todos

e não se volte mais ao meu amor

que caiu por sua culpa como a flor

do último prado, em que, passando, o arado

então tocou.

CONCLUSÃO

Esta análise nos faz concluir que o Liber de Catulo se organiza em torno da temática central do amor.

Nos poemas amorosos de Catulo, podemos distinguir dois ciclos: um ciclo em que o poeta fala dos felizes momentos amorosos, e um outro relativo à cisão, reflexões do poeta e rompimento final, após o seu desencanto pela mulher amada.

Catulo foi o poeta latino que, com mais sinceridade e verdade, expressou o sentimento amoroso, através de uma linguagem extremamente metafórica. Suas composições receberam grande influência de Arquíloco e Safo.

Lésbia foi a inspiração dos poemas catulianos. Famosa por seus deleites amorosos, Lésbia, pseudônimo de Clódia, mulher do cônsul Metelus Celer, do ano 60, despertou no poeta uma paixão ardente que o fez sofrer muito, levando-o até mesmo a travar uma guerra sentimental. E, o próprio poeta, em seus poemas afirma que Difficile est longum subito deponere amore (c.76,13) - é difícil abandonar subitamente um longo amor e ...quam Catullus uanm/ plus quam se atque suos amauit omnes (c.58, 2-3) - aquela, única que Catulo amou mais que a si e todos os seus. Além de declarar a sua paixão pela musa sedutora, o poeta também ataca os amantes da amada e a vida dissoluta que caíra.

Catulo quis praticamente assentar a sua relação com Lésbia, no entanto, a pietas, a fides, o hospitis officium, o sanctum foedus e o bene uelle foram todos traídos.

Da leitura do Liber catuliano, podemos inferir que o poeta aspirava o amor do matrimonium, um amor que considera o outro um complemento positivo do seu próprio ser. No entanto, tanto Catulo quanto Lésbia não se descobrem verdadeiramente: amam e são amados de maneira diferente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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