Língua Portuguesa e letras musicais: o uso da metáfora
André Valente
Quanto aos estudos sobre metáfora, cabe destacar que eram mais freqüentes na área de Literatura. Com a integração das disciplinas, surgiram conteúdos comuns aplicados a um corpus ampliado, do qual constituem aqui meu objeto de estudo as metáforas nas letras musicais. Valho-me de considerações de S. Ullmann, M. Cressot. E. Lopes, R. Jakobson, Lakoff/Johnson, Greimás/Courtés, W. de Castro e Aristóteles na constituição de suporte teórico.
A estrutura básica da metáfora é a comparação de um termo (A) a um outro termo (B) com base num elemento comum. Há variação terminológica na denominação desses termos:
E. Lopes S. Ullmann M. Cressot
Termo A comparado teor objeto evocado
Termo B comparante veículo objeto-referência
Na distinção entre metáfora e metonímia, costuma-se enfatizar o caráter subjetivo da primeira e o caráter objetivo da segunda. Enquanto a metáfora se caracteriza pela similaridade, a metonímia vem marcada pela contigüidade.
Para Roman Jakobson, são duas as figuras arquitrópicas. E ele as aborda com base nos eixos paradigmático e sintagmático, respectivamente eixos de seleção e combinação.
METÁFORA similaridade/semelhança PARADIGMA
METONÍMIA contigüidade/proximidade SINTAGMA
símile comparação explícita (com conectivo)
metáfora comparação implícita (sem conectivo)
metáfora impura com dois termos da comparação
metáfora pura com apenas um termo da comparação
Greimas e Courtés, a respeito da metáfora, afirmam que:
Do âmbito da retórica, a metáfora designava uma das figuras (chamadas Tropos) que modificam o sentido das palavras. Atualmente, esse termo é empregado em semântica lexical ou frasal para denominar o resultado da substituição - operada sobre um fundo de equivalência semântica -, num contexto dado, de um lexema por outro.
A metáfora pura é a mais requintada de todas. Para Walter de Castro, as metáforas por substituição são denominadas “puras” por alguns lingüistas e constituem o mais alto grau a que pode chegar o processo metafórico.
A distinção entre metáfora e comparação feita por Cressot contém o mesmo espírito da anterior. Para ele, não é a brevidade que mais profundamente as distingue. Destaca a transferência de sentido, a alteração semântica existente no processo metafórico e conclui:
A comparação é a mais analítica: pormenorizada, explica. A metáfora é mais sintética: assenta numa impressão que se esforça por transmitir globalmente. Comporta, necessariamente, uma certa dose de exagero e, por aí, constitui um instrumento particularmente adequado à expressividade e à impressividade (Cressot, 1947, p. 67).
Não obstante ser ponto quase pacífico que as figuras são, na essência, duas apenas, há quem privilegie a metáfora. Aristóteles já a considerava a rainha das figuras. Ulmann afirma que a metonímia não tem a mesma originalidade e a potência expressiva da metáfora. Diz-nos - e com ele concordo - que a imensa maioria das imagens é metafórica.
Nos últimos anos, o estudo de Lakoff e Johnson, “Metáforas da vida cotidiana”, vem sendo incorporado às leituras de textos metafóricos. Ressaltam os autores que “... a metáfora é usualmente vista como uma característica restrita à linguagem, uma questão mais de palavras do que de pensamento ou ação”. Lakoff e Johnson discordam de tal visão e, após diversas pesquisas, trilhando o caminho aberto por Michael Reddy, concluem que:
Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos mas também agimos é fundamentalmente metafórico por natureza (p. 45).
Lakoff e Johnson trabalham, então, com metáforas conceituais como “Discussão é guerra”, “Tempo é dinheiro”, entre outras. Poder-se-iam acrescentar metáforas do cotidiano que envolvem temas como “violência” e “medo”. Às vezes, o próprio termo “metáfora” aparece na imprensa ligado a tais termos. No artigo de João Trajano Sento-Sé, “A metáfora da guerra” (O Globo, 12/4/03), o autor discorda das autoridades políticas que defendem a tese de que o Rio de Janeiro e outros grandes centros vivem uma situação de guerra. Argumenta o autor que, diferentemente dos povos europeus, pouco sabemos sobre a guerra.
Na matéria “Metáfora do medo” (Jornal do Brasil, 13/6/03), o repórter Rodrigo Fonseca entrevista Ang Lee, diretor de “Hulk”, que considera o personagem s ímbolo dos Estados Unidos que “precisam domar sua força interior”, uma vez que podem esmagar qualquer coisa.
Só dói quando eu rio
Moacyr Luz e Aldir Blanc
Só fico à vontade
na minha cidade.
Volto sempre a ela,
feito criminosa...
Doce e dolorosa,
a minha história escorre aqui.
Há quem não se importe
mas a Zona Norte
é feito cigana
lendo a minha sorte:
sempre que nos vemos
ela diz quanto eu sofri.
E Copacabana,
a linda meretriz-princesa.
Loura Mãe de Santo
com sua gargantilha acesa...
ela me ensinou pureza e pecado,
a respiração do mar revoltado...
Rio de Janeiro, favelas no coração.
Na letra de “Só dói quando eu rio”, merece destaque inicial o uso do símile com a utilização de “feito” com valor comparativo nos versos 4 (feito criminosa) e 9 (é feito cigana). A seguir, a metáfora se impõe em construções densamente poéticas.
a) No verso 16, “com sua gargantilha acesa”, Aldir Blanc remete-nos à praia de Copacabana iluminada à noite; o aspecto geográfico lembra-nos uma gargantilha;
b) No verso 14, “a linda meretriz-princesa”, ocorre uma metáfora antitética que é retomada, coesivamente, no verso 17 (“Ela me ensinou pureza e pecado”). Pode-se dizer que “meretriz” está para “pecado” assim como “princesa” está para “pureza”. A metáfora antitética, como se fosse uma regra-de-três, corresponde a um quiasmo:
meretriz princesa
pureza pecado
c) Além dos símiles e das metáforas, chama a atenção o jogo intertextual do título da canção com a máxima dos grandes humoristas, que fazem o chamado humor filosófico, cuja máxima é “só dói quando eu rio”. Destaca-se, ainda, o caráter polissêmico e homonímico do título, que permite associação com a “dor” da cidade do Rio de Janeiro, consubstanciada na trágica metáfora do verso 19 (“Rio de Janeiro, favelas no coração”), reveladora do miserável cotidiano carioca.
d) O uso do símile com “feito”, recurso pouco destacado nos compêndios gramaticais, fora utilizado pelo mesmo Aldir em “O bêbado e o equilibrista”, no verso “Caía a tarde feito um Viaduto”. Aparece, também, em “Tatuagem”, de C. Buarque e R. Guerra, no verso “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem” e em “Sei lá, Mangueira”, de P. da Viola e H. B. de Carvalho, nos versos “Em Mangueira a poesia / feito um mar se alastrou”. A Música Popular Brasileira é excelente manancial para os estudos de Língua Portuguesa.
Nos trabalhos e nas aulas de Língua Portuguesa, a metáfora pode ser, então, abordada tanto lingüística como conceitualmente. Do nosso corpus musical, destacam-se, no 1º caso, os versos da canção “Duas contas”, de Garoto:
Teus olhos são duas contas pequeninas
Qual duas pedras preciosas
Que brilham mais que o luar
São eles guias do meu caminho escuro.
Há metáforas impuras nos versos 1 e 4 e símiles nos versos 2 e 3.
No 2º caso, a canção “Vai passar”, de Francis Hime e Chico Buarque, é uma metáfora para a transição do governo militar da ditadura para o governo civil, em 1985, como comprovam os versos “Vai passar nesta avenida um samba popular” (...) “Página infeliz da nossa história” (...) “Meu Deus, vem olhar/ vem ver de perto uma cidade a cantar/ a evolução da liberdade/ até o dia clarear”.
Assim o estudo de metáforas - lingüísticas ou conceituais - é mais uma ferramenta de que dispõe professores de Português para o trabalho de leitura e produção de textos, quer literários, quer não literários.
Mordaça
Tudo que mais nos uniu
Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e
passiva
O mesmo alento que nos conduziu
debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa
É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no mundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar
A canção de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro é uma metáfora do amordaçamento da sociedade brasileira na ditadura militar. A letra aponta-nos uma saída pela emoção, tão bem retratada no verso de valor simbólico: “O importante é que a nossa emoção sobreviva”.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1969.
CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S. A., 1978.
CRESSOT, Marcel. O estilo e suas técnicas. Lisboa: Edições 70, 1947.
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979.
FONSECA, Fernanda Irene & FONSECA, Joaquim. Pragmática e ensino do português. Coimbra: Almedina, 1977.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969.
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: educ/ Mercado das Letras, 2002.
LOPES, Edward. Metáfora: da retórica à semiótica. São Paulo: Atual, 1987.
ULLMANN, Stephen. Semântica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
VALENTE, André C. A linguagem nossa de cada dia. Petrópolis: Vozes, 1997.
____(org.). Aulas de português: perspectivas inovadoras. Petrópolis: Vozes, 1999.
____. “Texto pra que te quero”. IN: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua Portuguesa uma visão em mosaico. São Paulo: educ, 2002.