memorial borrado
as
lembranças
do porvir
carnavalesco
Maria de Lourdes de Melo Pinto
(UERJ, UNESA e UFRJ)
“Outro
dia,
eu
me
lembro” de
que
fiquei
em
palpos
de
aranha
com
uma
pergunta
de
um
colega
norueguês a
quem
estava servindo de
guia
nas escaldantes
areias
do
Rio
40oC:
Afinal,
o
que
é o
Carnaval?
A
poucos
dias
da
festa
e
sabedor
de
meu
conhecimento
livresco
sobre
assuntos
diversos,
meu
colega
decidiu
por
bem
inquirir-me
sobre
uma das
principais
festas
do
meu
país,
acreditando
que
todos
nós,
brasileiros,
sejamos
doutos
no
tema.
Não
houve o
que
fazer,
disfarcei, fui
superficial,
expliquei
que
não
era
afeita
aos
festejos
momísticos,
mas
o
rapaz
não
se conformou
com
os
comentários
generalistas... se
eu
era
uma professora e
ele
estava querendo
aprender
sobre
a
cultura
de
meu
país,
em
sua
lógica
sofista,
eu
deveria
lhe
ser
grata
e
satisfazer
sua
curiosidade.
Pronto,
lá
estava
eu
muito
mais
interessada
em
“ficar
coarando ao
sol”
–
como
diria
minha
avó –, vindo a
ser
obrigada
a informar-me
sobre
assunto
que
nada
me
chamava a
atenção:
eu
sempre
fui daqueles
que
buscavam o
ar-condicionado
dos
cinemas
– a
preços
convidativos
–, o
banho
de
mar
ou
mesmo
a
cama
em
detrimento
de
bailes
e
folguedos,
tendo
em
vista
o
cansaço
acumulado ao
longo
do
ano
letivo
anterior.
De
toda
forma,
frente
à
maçada
imposta:
desculpei-me
pela
ignorância;
enchi-me de
brios
nacionalistas e prometi
ter
a
resposta
no
próximo
encontro.
Voltei a
casa
disposta
a
dar
cabo
de
minha
pesquisa
com
a
maior
brevidade
para
não
comprometer
minhas
férias
com
veleidades
diletânticas.
Chegada
à
minha
casa,
iniciei o
trabalho
que
me
tomaria no
máximo
uma
tarde...
Pobre
coitada,
depois
do
segundo
dia
de
levantamentos,
comecei a
praguejar
a
palavra
empenhada,
mas
como
fora
educada a
levar
a
termo
os
projetos
iniciados,
prossegui.
Mesmo
assim,
o
pensamento
não
conseguia manter-se
atento,
fugindo a
questionar
como
alguém
com
a
formação
intelectual
tão
privilegiada
poderia
perder
tanto
tempo
com
assunto
de
tal
natureza
popularesco. Vanitas...
A
Academia
não
me
havia despertado o
interesse
pelas
tradições
e
conceituações
para
assunto
de
tão
pouca
monta.
Eu
me
considerava uma
intelectual
e
portanto
deveria ater-me as
teorias
e
tendências
desse
nosso
contexto
pós-moderno e,
não,
ficar
por
aí,
fazendo
investigações
ritualísticas
ou
grotescas.
Ainda
assim,
havia a
questão
a
ser
respondida e
não
seria
lícito
abandoná-la
por
um
simples
“Ai...que
preguiça”
macunaímico. Foram longas as
horas
de
preparação,
mas
a
pesquisa
não
apontava
para
o
devido
enredo
a
ser
desenvolvido
e as
máscaras
começavam a
cair:
seria
eu
uma
intelectual?
Decidi-me
por
uma
observação
de
campo:
marquei o
próximo
encontro
para
a
Passarela
do
Samba.
Debaixo do
sol
escaldante,
lá fomos
nós,
eu e
meu
amigo, à
Passarela do
Samba. Na
minha
santa
ignorância de
freqüentadora de
bibliotecas,
não pensei
em
comprar
ingressos
com
antecedência
e, ao
lado de
um
gringo, acabei
pagando
mais do
que
poderia
ou deveria.
Ultrapassado o
primeiro
obstáculo,
surgiram
outros
tantos: a
arquibancada é
de
cimento,
não havíamos
levado
nada
para
amortecer a
espera de
quatro
horas;
apesar de
termos
chegado
cedo, fomos
espremidos
pelos
habitueés
que
em
confrarias
organizadas e
extremamente
barulhentas dominaram a
cena. Acabamos
ficando
presos
entre
facções
rivais
em
posição
proibitiva
para ao
menos
ir ao
banheiro
ou
comprar o
que fosse
necessário ao
sustento
durante as
horas de
desfile,
pois, logicamente,
não havíamos
levado
qualquer
farnel. A
madrugada
prometia,
mas
em Roma...
Restava-nos
conversar a
esmo
ou
observar os
tipos
presentes;
decidi-me
pela
segunda
opção
por
um
tempo. Havia
aqueles
que se
preparavam
para o
rito
com
bebidas e
comidas
em profusão;
aqueles
que
já iniciavam
pequenas
confusões; os
que brincavam,
jogando
jatos de
água
nos
passantes, o
que
sob
aquele
sol
era de
grande
valia; os
fantasiados
com os
costumes
mais
disparatados;
enfim,
toda a
sorte de
tipos. Aquela
observação
acabou fazendo
com
que
meu
pensamento
fugisse daquela
balbúrdia e fosse se
confundir a outras tantas.
Como
minha
cabeça estava
lotada de
informações
sobre os
festejos
carnavalescos,
não foi
difícil
traçar
paralelos
entre
aqueles
passantes
contemporâneos
e os
convivas de
outros
tempos.
Acabei
me
transportando
sem
querer a
tempos
ancestrais,
unindo
festins a
explicações
mitológicas,
tragédias e
cultos,
fertilidade e
germinações,
Ísis e Osíris. É
provável
que os
gregos,
em
suas
andanças,
tenham assimilado algumas
manifestações
derivadas das
tradições
egípcias. Na Grécia e na Roma antigas, as
festas
passaram a
transparecer o
culto aos
prazeres e
vivenciar uma alteração da
ordem dos
valores.
As
bacanais,
lupercais e saturnais implicavam “a
existência de
rituais
libertadores
das
atitudes
reprimidas e abrigavam a
extroversão, a
permissividade, prevalecendo ‘o
tempo dos
vícios’”.
As primeiras
manifestações
do
carnaval
apontavam
práticas
que
não estão
tão
distantes de
nós
nos
ritos
contemporâneos:
fartura de
comida,
bebedeira,
dança,
música e
liberação
sexual. A
intervenção do
deus Dionísio
possibilitava a
inconseqüência;
com
sua
força
verde,
perturbava
alegremente a
ordem
estabelecida. “Evoé, Baco! Evoé,
Momo!”
No
entanto,
apesar dessas
fontes
primevas, os
estudiosos da
festa
posteriores ao
advento do
Cristianismo
não podem
isentar-se de
estabelecer a
relação
entre
este e aquela.
Reelaborados os
antigos
ritos, os
cristãos
souberam deles se utilizarem
como
mais uma
forma de
imposição de
seus
princípios.
Não podendo
controlar Baco, erigia-se
Adônis
que
era
ciclicamente corporificado
para,
depois de
um
curto
espaço de
tempo,
voltar a
morrer e
prosseguir a
periodicidade
anterior. O
mito
era
muito
bem
construído,
porém
durante
muitos
anos houve a
mimetização da
cerimônia
pelos
camponeses
que coroavam e
sacrificavam
vários
jovens
como se
Adônis o
fossem.
Entre a
aceitação
oficial da
Igreja e o
abrandamento das
práticas de
sacrifício
passaram-se
muitos
anos.
Mesmo
com o
patrocínio do
papa Paulo II,
no
século XV,
muita
água
iria
rolar
até o
carnaval
deixar de
abrigar
práticas
tão violentas
quanto a
buffonerie
medieval, “(...) uma
espécie de
batalha de
confetes,
ovos,
urina e
farinha”
e
assumir
sua
acepção
mais
conhecida de
adeus à
carne (carnavale).
Por nossas
plagas, houve
semelhante
expressão
catártica
sob o
nome de
entrudo:
“(...)
estranho
hábito de
divertir-se jogando
água
ou várias
substâncias
nas
pessoas.”
Até
meados do
século XIX, o
entrudo foi
tomado
como uma das
manifestações
mais
características
de
Momo na
Terra Brasillis.
Além da
molhaça
ser
tomada
como uma
prática de
jogo,
ela
também assumia
seu
caráter de
anulação do
signo
básico de
diferenciação
social
pela
exploração do
simulacro. A
permissão
para a
ridicularização
do
outro
era
elemento
fundamental de
desforra (individual
e
coletiva)
em uma
sociedade moldada
com
base nas
relações
escravistas de
dominação.
Apesar de
não serem
permitidas
ousadias de
negros
para
com os
senhores de
sociedade,
ainda
assim havia
uma
inversão de
papéis
digna de
nota: os
brancos
pintavam-se de
negros e os
negros se
embranqueciam, usufruindo
ainda
que
momentaneamente de
funções
invertidas.
Se
até o
próprio
imperador
entrudava,
como os
intelectuais
poderiam se
opor ao
jogo? A
despeito da
recomendação
imperial, o
carnaval
esteve
por
aqui à
mercê dos
bacharéis
que se
arvoraram
direitos
civilizatórios. Ancorados
pela
tríade:
família,
tradição e
propriedade, a
intelectualidade
da
época protestava inflamada
pelo
fim do
entrudo,
veiculando
pelos
jornais o
perigo e a
perniciosidade momísticas. “A
máscara
não serve
só
para os
foliões:
muitas
vezes
também presta
o
seu
auxílio ao
facínora,
que aproveita
a
época do
carnaval
para
exercer uma
vingança.”
No
entanto,
apesar de
todos os
contras e,
não
obstante,
vozes de
peso
como a de Raul
Pompéia a quererem
prodigalizar a
morte do
entrudo,
ele
veio a
gozar de
longa e
pândega
existência,
pois
era
realimentado
ano
após
ano
pela
própria
Família a
quem os
doutos diziam
estar defendendo. Os
preparativos
para a
brincadeira
começavam,
semanas
antes do
carnaval,
com a
produção de
limões de
cera
fabricados pelas
mãos de sinhás
e sinhazinhas
para os
dias de
folia.
Quantos
não foram os
limões-de-cheio
comprimidos
sobre
colos
ou
braços
femininos
retorquidos
nos
peitos de
seus eleitos?
O
entrudo
era
realmente
perigoso,
pois
além da
indefinição de
fronteiras
étnicas,
ainda se
configurava
pela
possibilidade de
liberação
sexual da
mulher.
A
repressão foi
de
tal
monta
que
antes do
fim da
década de
oitenta do
século XIX, o
interesse
pela
brincadeira
começava a
esmorecer e surgiam
novos
recursos à
folia: o
bal masqués, as
batalhas de
flores e
confetes e os
préstitos
instituídos pelas recém fundadas
sociedades
carnavalescas.
Entretanto,
antes de
deter-me
mais
demoradamente neste
ponto,
minha
memória
que
não aprendeu a
ser cronológica (pelo
menos Bergson
me entenderia)
recupera outras
tendências
contemporâneas ao
entrudo: os
cucumbis, o
Zé
Pereira, a
guerra às
cartolas e o
corso. Os
cucumbis eram a
presença
africana
mais
viva à
época, uma
dança
dramática
com
desenvolvimento
de
enredo.
Apesar da
utilização de
canções
em
línguas
africanas, a
saudação
era
feita
em
português.
Infelizmente
não se possuem
numerosos
registros
dessas
manifestações,
pois
com o
passar dos
anos o
preconceito acabou
por
eliminar o
movimento;
viam-no
como
um
grupo de
negros,
fantasiados de
índios.
As outras
expressões
momísticas relacionadas tiveram
vida
mais
próspera. O
Zé
Pereira
ainda
hoje é
figura de
importância no
Carnaval do
Nordeste. A
brincadeira de
bumbos
introduzida no
Rio de
Janeiro,
em 1852,
por
um
sapateiro
português, José
Nogueira de
Azevedo
Paredes, soube
resistir
pela
capacidade de
adaptação e
negociação
com os
folguedos
subseqüentes.
A
origem
remonta a
ridicularização
carnavalizada das
classes
superiores,
daí o
volume
senhorial das
barrigas
utilizadas e a
pilhéria
direta
ou as
alusões
pessoais
em
dizeres
afixados aos
chapéus. Essa
forma de
préstito
começa a
declinar a
partir de 1904
por
perseguição do
chefe de
polícia.
Foliando
pela
cidade,
principalmente
pela
rua do
Ouvidor, sou
surpreendida
com
um
grupo de
jovens
postados à
esquina
cuja
única
missão
era
impedir a
passagem das
cartolas à
festa.
Era a
Guerra às
cartolas
convocada
contra o
inimigo
que ousasse
comparecer aos
festejos
portando
cartolas.
Essas
figuras (os
cartolas)
só viriam a
encontrar
sossego
nos
tempos da
abertura da
grande
avenida,
podendo
assim se
enfatiotar
para o
corso,
passeio de
grupos de
foliões
em
carro pelas
ruas do
Centro da
Cidade.
Não
obstante a
característica
primeira do
carnaval
como
espaço
suspensivo das
relações
sociais, os
bacharéis de
nossa
terra
não poupavam
esforços
para
europeizar as
práticas
aqui
disseminadas.
Não
era de
bom
tom
que o
estrangeiro
fosse
desavisadamente
encharcado
por
algum
folião
mais
afoito. Descobriram
por
fim,
após várias
tentativas
contrárias,
que
não poderiam
abolir o
carnaval do
calendário e
decidiram
tomar
providências
mais
conformadas: Carlos Laet,
um dos
raros
defensores da
tradição do
entrudo,
diverte-se
em 1884 ao
apontar a
impotência
policial e,
indiretamente,
de
seus
pares
nos
jornais ao
sugerir a
legalização do
jogo:
Quem sabe? O
povo é
tão
caprichoso...
Quando a
bisnaga
deixasse de
ser o
fruto
proibido,
talvez tivesse
menos
atrativos. Os
limões-de-cheiro, recomendados pelas
comissões
vacínico-sanitárias,
nunca
mais haviam de
ser
empregados.
Afora as ironias ou até os sarcasmos de alguns
articulistas da época, os bacharéis resolveram se unir e buscar estratégias
contra as práticas da terrinha: fundaram as Sociedades Carnavalescas ainda na
década de cinqüenta do século XIX. Confrarias que investiam no refinamento dos
textos publicados e na ostentação dos préstitos como formas de convencimento e
civilização. Não lograram muito êxito por décadas, tornando-se famosos e caindo
nas graças do povo apenas em idos de oitenta do século XIX, com a repercussão
das performances de três notáveis agremiações: Tenentes do Diabo, Democráticos e
Fenianos, que souberam unir o combate ao entrudo às questões públicas mais
evidentes no período: a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República,
temas, no entanto, que vieram a contribuir para a própria derrocada posterior
desse formato, mas isso é outra história...
A
estrutura das
Sociedades
merece uma
descrição
mais
detida
para entender-se a
engrenagem
que
movimentava essa
máquina.
Como tornou-se
uma
atividade
permanente
em
que se
circulavam vultosas
somas
durante
todo o
ano, as
Sociedades
passaram a
ser
atraentes a
imigrantes e
comerciantes
endinheirados
que
necessitavam de
legitimação
social e
reconhecimento
público (curiosa
a
semelhança
com os
herdeiros do
Barão de
Drumond...). Havia uma
produção de
jornais
distribuídos ao
público
nos
dias de
folia,
além do
desfile
em
si,
rico
teatro de
carros
alegóricos,
cavaleiros,
fantasias
luxuosas,
banda de
música e
carros de
críticas (ou
idéias).
Estranhamente
o
recurso
forjado
pela
elite
para
civilizar as
massas
nos
dias de
folia
acabou-se tornando
mais
um
pretexto
para
brigas na
rua do
Ouvidor:
defensores de
determinado
grupo
estapeavam-se
com
representantes de
outros.
Convém,
entretanto,
apontar
que a
multiplicação
dos
préstitos,
apesar das
tensões
geradas, contribuiu
para
mobilizar
feições do
comércio
que
ainda
não haviam
sido motivadas:
artigos
específicos
para o
período,
aluguel de
janelas e
sacadas na
rua do
Ouvidor,
surgimento de
músicas
especificamente carnavalescas,
frutos da
empresa desses
senhores
encartolados.
Contudo,
desaparecidas as
grandes
causas,
passaram a
utilizar o
luxo e as
mulheres (dos
bordéis)
como
elementos de
forte
apelo
popular, o
que funcionou
por
algum
tempo e
depois
veio a
entrar
em
declínio
também. A
abertura da
grande
avenida e
suas
proporções
nababescas acabaram
por
colocar a
última
pá de
cal
sobre as
Sociedades
carnavalescas oitocentistas.
A
curiosidade
que se impõe a
seguir é o
poder de reinvenção do
Carnaval,
pois defraudadas as
Sociedades,
anunciam-se os
novos
formatos
burlescos: os
ranchos e os
cordões. Ao
naufragar a
metrópole, a
salvação
chega pelas
vias da
periferia,
como
nos atesta a
letra da
música
carioca
Se o
morro
não
desce, de Herivelto Martins e Darci de
Oliveira:
Se a
turma
lá
do
morro
Fizer
greve
e
não
descer
A
cidade
vai
ficar
triste
Carnaval
vai
morrer.
Toda
a
cidade
É
um
grito
de
socorro.
Se a
escola
não
descer
Carnaval
vai
ser
no
morro
O
tamborim
Já
está de
prontidão
Estão de
guarda
A
cuíca
e o
violão
Estão
querendo
saber
Qual
é a
ordem
Que tem que
prevalecer
Se as
escolas
Não tiverem
liberdade
Carnaval
vai ser no morro
Ninguém vai
pra cidade
A ignorância da classe intelectualizada sobre as
distinções entre as diversas formas de manifestação nas ruas foi também um
agravante acelerador da derrocada que se prenunciava. Eles não acreditaram na
periferia e pagaram muito caro a desfeita (isso parece-me tão dolorosamente
contemporâneo...). A elite havia conseguido influenciar as áreas mais pobres com
suas experimentações, mas foi perdendo o norte e a autoconfiança de seus
desfiles que se estilhaçou.
Ao largo, espelhados nas grandes Sociedades, as
classes mais desfavorecidas começam paulatinamente a se organizar, tendo como
válvula propulsora os festejos dionisíacos. O que aparentemente se apresenta
como paradoxo – Dionísio como elemento agregador e organizacional – passa a se
fortalecer com a contínua resistência dos excluídos. Desde a segunda metade do
século XIX, houve uma intermitente diáspora baiana. Eram negros alforriados,
fugitivos ou indultados pela Guerra do Paraguai que seguiam em várias direções.
Com maior incidência é verdade, para o Rio de Janeiro, que já possuía estruturas
de subsistência organizadas para esses grupos. As tias, quituteiras das festas
da cidade, recebiam e encaminhavam os recém-chegados ao convívio do grupo. Houve
durante muitos anos uma íntima relação entre a reintegração social, as
expressões musicais e religiosas na cidade. A casa da mãe e do pai de santo era
um espaço gregário que buscava ocupar a lacuna dolorosa da repatriação; os
filhos de santo, em verdade, era aqueles que doídos dos anos de abandono e
vilipêndios encontravam uma nova família que os acalentava. Inicia-se aqui a
criação da Pequena África, sob organização originária de Ossum e Dadá e Miguel
Pequeno e Amélia Kitundi. A prática de recepcionar o estranho tornou-se
freqüente como testemunha o depoimento de Carmem Teixeira da Conceição:
Tinha lá na Pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era
uma casa de baianos e africanos (...), da casa deles se via o navio, aí já tinha
o sinal de que vinha chegando gente de lá (...). Era uma bandeira branca, sinal
de Oxalá, avisando da chegada de gente.
Eram reis, pastoras,
cozinheiras, capoeiristas, marceneiros, gente simples que ouvia falar sobre a
possibilidade de amparo e migrava para a cidade de São Sebastião. Os canaviais,
os cafezais e as minas do Brasil encaminharam cerca de dois milhões de negros e
mestiços até as praias do Rio de Janeiro: indiscutível a herança desta parcela
da população na formação do imaginário cultural da metrópole. O grupo mais
numeroso, o que viria a ser conhecido como Pequena África, instalava-se na
Saúde, próxima ao cais do porto, local em que proliferavam as “cabeças de
porco”, moradias populares que permitiam aos recém chegados manterem-se ao redor
dos trabalhos, como a estiva, por exemplo. Até o período do Governo Pereira
Passos e seu processo de modernização urbanística, claro.
Há alegria e folguedos, comida e boa recepção, mas
não podemos esquecer a figura do malandro, personagem aparentado ao pícaro de
outros tempos que freqüenta a zona limítrofe entre legalidade e ilegalidade. Não
se considerava representante da marginália, mas parecia saber que com seus modos
impecáveis, seu terno vistoso e seu chapéu de palhinha seria imortalizado em
versos e alcançaria a condição de fantasia. Não queremos minimizar as
dificuldades enfrentadas pelas classes populares desse período, principalmente
pela comunidade negra, mas já que o Carnaval me permite deixar “a dor em casa me
esperando”,
só voltarei na Quarta-feira... Assim era para o Rei de ouros, porque não poderia
ser para mim? Talvez porque não tivesse o carisma de Hilário Jovino Ferreira,
liderança negra carnavalesca e religiosa na Pequena África, dividindo,
conflituosamente, o poder dos orixás e dos batuques com Tia Ciata. Esta, do Rosa
Branca; aquele, do Rei de Ouros. Passava-se a um tempo de cordões e ranchos, a
periferia que tomava o seu lugar na História.
Os ranchos e cordões começaram a dominar o cenário
burlesco da capital e a criar desavenças profundas entre seus participantes. A
cisão entre Hilário e Ciata ultrapassava a questão carnavalesca, mas acabava
repercutindo também nessa área em disputas acirradas, principalmente quando a
gazeta de Notícias começa em 1906 a premiar os estandartes mais luxuosos.
Convém, no entanto, traçar a distinção entre ranchos e cordões para não incorrer
nos mesmos erros dos intelectuais de outros tempos que acreditavam ser tudo uma
só manifestação.
Os ranchos seguiam mais de perto o formato
proposto pelas antigas sociedades carnavalescas, com seus poucos recursos
criavam alegorias sobre carroças e
harmonizavam seu canto, apresentando percussão
leve (pandeiros, castanholas) e [apresentavam] um volume instrumental
considerável, que incluía cordas e sopro; [havia] presença de mestres de canto
ou de harmonia; [fixavam] destaque para a presença feminina, - as saloias ou
pastoras, que dominavam a afinação do desfile; (...) [e por fim] os enredos
fixos integravam o conjunto dos componentes [grifos nossos].
Cabe ainda lembrar que a
música de choro, associada às gafieiras e não aos terreiros de candomblé, era
também um diferencial entre ranchos e cordões. Esses, no entanto, seguiam a pé,
em desfile que descortinava fantasias as mais variadas. A
percussão acompanhada de cantoria [apresentava] um
ou dois dançarinos vestidos de índios [que] entoavam a copla; o coro em uníssono
repetia o estribilho (ou chula) e [eram] por vezes acompanhados de cavaquinho e
violão; (...) possuíam mestre-de-pancadaria, a quem cabia afinar o ritmo da
percussão [grifos nossos]
O espírito deles pode ser
resumido na seguinte quadrinha:
Eu vou
beber, eu vou me embriagar,
eu vou sair
de índio para a polícia me pegar.
A polícia
não quer que eu sambe aqui,
eu sambo
ali, eu sambo acolá
Frente as manifestações populares e percebendo que
havia perdido terreno, a intelectualidade decide retomar a máquina educacional
carnavalesca e sobe o morro. Conhecidos são os contatos entre Coelho Neto e o
grupo Ameno Resedá, Villa-Lobos e a Mangueira, mas pouco se fala do papel que os
ranchos passam a assumir neste novo contexto nacionalista: tradutor da cultura
letrada às massas populares. Não é de se admirar que carnavais depois e
patriotismos a parte, o criolo ficou doido e saiu a misturar
Independência com Proclamação da República. De toda sorte, a semente para os
futuros desfiles dos grêmios recreativos Escolas de Samba fora lançada e a
institucionalização da festa começara.
Antes, entretanto, de começar
a viajar pelas rádios e lembrar de pôr o “retrato do velho outra vez no mesmo
lugar”, meu amigo me acordou da minha viagem onírica. Ei, onde você está? Volte!
Volte! Estou chamando a um tempo e você aí em transe. Desculpei-me pela
grosseria e percebi quanto tinha ficado cansada e impressionada por aquela
pesquisa. Voltamos a conversar amenidades, começou o desfile que terminou no dia
seguinte, seguimos o bloco dos garis e eu não respondi mais nada sobre festas e
ritos. Após deixá-lo no aeroporto, dias depois, percebi que não consegui
respondê-lo por desconhecer minha condição inicial de estrangeira naquele
processo todo. Não sei se posso ou quero responder “O que é carnaval?”, mas
descobri que aprendi muito sobre mim, procurando por ele:
Agora vou
mudar minha conduta
Eu vou à
luta,
Pois eu
quero me aprumar.(...)
Pra poder
me reabilitar
Noel Rosa