memorial borrado
as
lembranças do porvir carnavalesco

Maria de Lourdes de Melo Pinto (UERJ, UNESA e UFRJ)

 

Outro dia, eu me lembro” de que fiquei em palpos de aranha com uma pergunta de um colega norueguês a quem estava servindo de guia nas escaldantes areias do Rio 40oC: Afinal, o que é o Carnaval? A poucos dias da festa e sabedor de meu conhecimento livresco sobre assuntos diversos, meu colega decidiu por bem inquirir-me sobre uma das principais festas do meu país, acreditando que todos nós, brasileiros, sejamos doutos no tema.

Não houve o que fazer, disfarcei, fui superficial, expliquei que não era afeita aos festejos momísticos, mas o rapaz não se conformou com os comentários generalistas... se eu era uma professora e ele estava querendo aprender sobre a cultura de meu país, em sua lógica sofista, eu deveria lhe ser grata e satisfazer sua curiosidade. Pronto, estava eu muito mais interessada emficar coarando ao sol” – como diria minha avó –, vindo a ser obrigada a informar-me sobre assunto que nada me chamava a atenção: eu sempre fui daqueles que buscavam o ar-condicionado dos cinemas – a preços convidativos –, o banho de mar ou mesmo a cama em detrimento de bailes e folguedos, tendo em vista o cansaço acumulado ao longo do ano letivo anterior.

De toda forma, frente à maçada imposta: desculpei-me pela ignorância; enchi-me de brios nacionalistas e prometi ter a resposta no próximo encontro. Voltei a casa disposta a dar cabo de minha pesquisa com a maior brevidade para não comprometer minhas férias com veleidades diletânticas. Chegada à minha casa, iniciei o trabalho que me tomaria no máximo uma tarde... Pobre coitada, depois do segundo dia de levantamentos, comecei a praguejar a palavra empenhada, mas como fora educada a levar a termo os projetos iniciados, prossegui. Mesmo assim, o pensamento não conseguia manter-se atento, fugindo a questionar como alguém com a formação intelectual tão privilegiada poderia perder tanto tempo com assunto de tal natureza popularesco. Vanitas...

A Academia não me havia despertado o interesse pelas tradições e conceituações para assunto de tão pouca monta. Eu me considerava uma intelectual e portanto deveria ater-me as teorias e tendências desse nosso contexto pós-moderno e, não, ficar por , fazendo investigações ritualísticas ou grotescas. Ainda assim, havia a questão a ser respondida e não seria lícito abandoná-la por um simples “Ai...que preguiça” macunaímico. Foram longas as horas de preparação, mas a pesquisa não apontava para o devido enredo a ser desenvolvido e as máscaras começavam a cair: seria eu uma intelectual? Decidi-me por uma observação de campo: marquei o próximo encontro para a Passarela do Samba.

Debaixo do sol escaldante, fomos nós, eu e meu amigo, à Passarela do Samba. Na minha santa ignorância de freqüentadora de bibliotecas, não pensei em comprar ingressos com antecedência e, ao lado de um gringo, acabei pagando mais do que poderia ou deveria. Ultrapassado o primeiro obstáculo, surgiram outros tantos: a arquibancada é de cimento, não havíamos levado nada para amortecer a espera de quatro horas; apesar de termos chegado cedo, fomos espremidos pelos habitueés que em confrarias organizadas e extremamente barulhentas dominaram a cena. Acabamos ficando presos entre facções rivais em posição proibitiva para ao menos ir ao banheiro ou comprar o que fosse necessário ao sustento durante as horas de desfile, pois, logicamente, não havíamos levado qualquer farnel. A madrugada prometia, mas em Roma...

Restava-nos conversar a esmo ou observar os tipos presentes; decidi-me pela segunda opção por um tempo. Havia aqueles que se preparavam para o rito com bebidas e comidas em profusão; aqueles que iniciavam pequenas confusões; os que brincavam, jogando jatos de água nos passantes, o que sob aquele sol era de grande valia; os fantasiados com os costumes mais disparatados; enfim, toda a sorte de tipos. Aquela observação acabou fazendo com que meu pensamento fugisse daquela balbúrdia e fosse se confundir a outras tantas. Como minha cabeça estava lotada de informações sobre os festejos carnavalescos, não foi difícil traçar paralelos entre aqueles passantes contemporâneos e os convivas de outros tempos.

Acabei me transportando sem querer a tempos ancestrais, unindo festins a explicações mitológicas, tragédias e cultos, fertilidade e germinações, Ísis e Osíris. É provável que os gregos, em suas andanças, tenham assimilado algumas manifestações derivadas das tradições egípcias. Na Grécia e na Roma antigas, as festas passaram a transparecer o culto aos prazeres e vivenciar uma alteração da ordem dos valores.

As bacanais, lupercais e saturnais implicavam “a existência de rituais libertadores das atitudes reprimidas e abrigavam a extroversão, a permissividade, prevalecendo ‘o tempo dos
vícios
[1]”. As primeiras manifestações do carnaval apontavam práticas que não estão tão distantes de nós nos ritos contemporâneos: fartura de comida, bebedeira, dança, música e liberação sexual. A intervenção do deus Dionísio possibilitava a inconseqüência; com sua força verde, perturbava alegremente a ordem estabelecida. “Evoé, Baco! Evoé, Momo!”[2]

No entanto, apesar dessas fontes primevas, os estudiosos da festa posteriores ao advento do Cristianismo não podem isentar-se de estabelecer a relação entre este e aquela. Reelaborados os antigos ritos, os cristãos souberam deles se utilizarem como mais uma forma de imposição de seus princípios. Não podendo controlar Baco, erigia-se Adônis que era ciclicamente corporificado para, depois de um curto espaço de tempo, voltar a morrer e prosseguir a periodicidade anterior. O mito era muito bem construído, porém durante muitos anos houve a mimetização da cerimônia pelos camponeses que coroavam e sacrificavam vários jovens como se Adônis o fossem. Entre a aceitação oficial da Igreja e o abrandamento das práticas de sacrifício passaram-se muitos anos.

Mesmo com o patrocínio do papa Paulo II, no século XV, muita água iria rolar até o carnaval deixar de abrigar práticas tão violentas quanto a buffonerie medieval, “(...) uma espécie de batalha de confetes, ovos, urina e farinha[3] e assumir sua acepção mais conhecida de adeus à carne (carnavale). Por nossas plagas, houve semelhante expressão catártica sob o nome de entrudo: “(...) estranho hábito de divertir-se jogando água ou várias substâncias nas pessoas.”[4]

Até meados do século XIX, o entrudo foi tomado como uma das manifestações mais características de Momo na Terra Brasillis. Além da molhaça ser tomada como uma prática de jogo, ela também assumia seu caráter de anulação do signo básico de diferenciação social pela exploração do simulacro. A permissão para a ridicularização do outro era elemento fundamental de desforra (individual e coletiva) em uma sociedade moldada com base nas relações escravistas de dominação. Apesar de não serem permitidas ousadias de negros para com os senhores de sociedade, ainda assim havia uma inversão de papéis digna de nota: os brancos pintavam-se de negros e os negros se embranqueciam, usufruindo ainda que momentaneamente de funções invertidas.

Se até o próprio imperador entrudava, como os intelectuais poderiam se opor ao jogo? A despeito da recomendação imperial, o carnaval esteve por aqui à mercê dos bacharéis que se arvoraram direitos civilizatórios. Ancorados pela tríade: família, tradição e propriedade, a intelectualidade da época protestava inflamada pelo fim do entrudo, veiculando pelos jornais o perigo e a perniciosidade momísticas. “A máscara não serve para os foliões: muitas vezes também presta o seu auxílio ao facínora, que aproveita a época do carnaval para exercer uma vingança.”[5]

No entanto, apesar de todos os contras e, não obstante, vozes de peso como a de Raul Pompéia a quererem prodigalizar a morte do entrudo, ele veio a gozar de longa e pândega existência, pois era realimentado ano após ano pela própria Família a quem os doutos diziam estar defendendo. Os preparativos para a brincadeira começavam, semanas antes do carnaval, com a produção de limões de cera fabricados pelas mãos de sinhás e sinhazinhas para os dias de folia. Quantos não foram os limões-de-cheio comprimidos sobre colos ou braços femininos retorquidos nos peitos de seus eleitos? O entrudo era realmente perigoso, pois além da indefinição de fronteiras étnicas, ainda se configurava pela possibilidade de liberação sexual da mulher.

A repressão foi de tal monta que antes do fim da década de oitenta do século XIX, o interesse pela brincadeira começava a esmorecer e surgiam novos recursos à folia: o bal masqués, as batalhas de flores e confetes e os préstitos instituídos pelas recém fundadas sociedades carnavalescas. Entretanto, antes de deter-me mais demoradamente neste ponto, minha memória que não aprendeu a ser cronológica (pelo menos Bergson me entenderia) recupera outras tendências contemporâneas ao entrudo: os cucumbis, o Pereira, a guerra às cartolas e o corso. Os cucumbis eram a presença africana mais viva à época, uma dança dramática com desenvolvimento de enredo. Apesar da utilização de canções em línguas africanas, a saudação era feita em português. Infelizmente não se possuem numerosos registros dessas manifestações, pois com o passar dos anos o preconceito acabou por eliminar o movimento; viam-no como um grupo de negros, fantasiados de índios.

As outras expressões momísticas relacionadas tiveram vida mais próspera. O Pereira ainda hoje é figura de importância no Carnaval do Nordeste. A brincadeira de bumbos introduzida no Rio de Janeiro, em 1852, por um sapateiro português, José Nogueira de Azevedo Paredes, soube resistir pela capacidade de adaptação e negociação com os folguedos subseqüentes. A origem remonta a ridicularização carnavalizada das classes superiores, daí o volume senhorial das barrigas utilizadas e a pilhéria direta ou as alusões pessoais em dizeres afixados aos chapéus. Essa forma de préstito começa a declinar a partir de 1904 por perseguição do chefe de polícia.

Foliando pela cidade, principalmente pela rua do Ouvidor, sou surpreendida com um grupo de jovens postados à esquina cuja única missão era impedir a passagem das cartolas à festa. Era a Guerra às cartolas convocada contra o inimigo que ousasse comparecer aos festejos portando cartolas. Essas figuras (os cartolas) viriam a encontrar sossego nos tempos da abertura da grande avenida, podendo assim se enfatiotar para o corso, passeio de grupos de foliões em carro pelas ruas do Centro da Cidade.

Não obstante a característica primeira do carnaval como espaço suspensivo das relações sociais, os bacharéis de nossa terra não poupavam esforços para europeizar as práticas aqui disseminadas. Não era de bom tom que o estrangeiro fosse desavisadamente encharcado por algum folião mais afoito. Descobriram por fim, após várias tentativas contrárias, que não poderiam abolir o carnaval do calendário e decidiram tomar providências mais conformadas: Carlos Laet, um dos raros defensores da tradição do entrudo, diverte-se em 1884 ao apontar a impotência policial e, indiretamente, de seus pares nos jornais ao sugerir a legalização do jogo:

Quem sabe? O povo é tão caprichoso... Quando a bisnaga deixasse de ser o fruto proibido, talvez tivesse menos atrativos. Os limões-de-cheiro, recomendados pelas comissões vacínico-sanitárias, nunca mais haviam de ser empregados.[6]

Afora as ironias ou até os sarcasmos de alguns articulistas da época, os bacharéis resolveram se unir e buscar estratégias contra as práticas da terrinha: fundaram as Sociedades Carnavalescas ainda na década de cinqüenta do século XIX. Confrarias que  investiam no refinamento dos textos publicados e na ostentação dos préstitos como formas de convencimento e civilização. Não lograram muito êxito por décadas, tornando-se famosos e caindo nas graças do povo apenas em idos de oitenta do século XIX, com a repercussão das performances de três notáveis agremiações: Tenentes do Diabo, Democráticos e Fenianos, que souberam unir o combate ao entrudo às questões públicas mais evidentes no período: a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, temas, no entanto, que vieram a contribuir para a própria derrocada posterior desse formato, mas isso é outra história...

A estrutura das Sociedades merece uma descrição mais detida para entender-se a engrenagem que movimentava essa máquina. Como tornou-se uma atividade permanente em que se circulavam vultosas somas durante todo o ano, as Sociedades passaram a ser atraentes a imigrantes e comerciantes endinheirados que necessitavam de legitimação social e reconhecimento público (curiosa a semelhança com os herdeiros do Barão de Drumond...). Havia uma produção de jornais distribuídos ao público nos dias de folia, além do desfile em si, rico teatro de carros alegóricos, cavaleiros, fantasias luxuosas, banda de música e carros de críticas (ou idéias).[7]

Estranhamente o recurso forjado pela elite para civilizar as massas nos dias de folia acabou-se tornando mais um pretexto para brigas na rua do Ouvidor: defensores de determinado grupo estapeavam-se com representantes de outros. Convém, entretanto, apontar que a multiplicação dos préstitos, apesar das tensões geradas, contribuiu para mobilizar feições do comércio que ainda não haviam sido motivadas: artigos específicos para o período, aluguel de janelas e sacadas na rua do Ouvidor, surgimento de músicas especificamente carnavalescas, frutos da empresa desses senhores encartolados. Contudo, desaparecidas as grandes causas, passaram a utilizar o luxo e as mulheres (dos bordéis) como elementos de forte apelo popular, o que funcionou por algum tempo e depois veio a entrar em declínio também. A abertura da grande avenida e suas proporções nababescas acabaram por colocar a última de cal sobre as Sociedades carnavalescas oitocentistas.

A curiosidade que se impõe a seguir é o poder de reinvenção do Carnaval, pois defraudadas as Sociedades, anunciam-se os novos formatos burlescos: os ranchos e os cordões. Ao naufragar a metrópole, a salvação chega pelas vias da periferia, como nos atesta a letra da música carioca Se o morro não desce, de Herivelto Martins e Darci de Oliveira:

Se a turma do morro

Fizer greve e não descer

A cidade vai ficar triste

Carnaval vai morrer.

Toda a cidade

É um grito de socorro.

Se a escola não descer

Carnaval vai ser no morro

O tamborim

está de prontidão

Estão de guarda

A cuíca e o violão

Estão querendo saber

Qual é a ordem

Que tem que prevalecer

Se as escolas

Não tiverem liberdade

Carnaval vai ser no morro

Ninguém vai pra cidade[8]

A ignorância da classe intelectualizada sobre as distinções entre as diversas formas de manifestação nas ruas foi também um agravante acelerador da derrocada que se prenunciava. Eles não acreditaram na periferia e pagaram muito caro a desfeita (isso parece-me tão dolorosamente contemporâneo...). A elite havia conseguido influenciar as áreas mais pobres com suas experimentações, mas foi perdendo o norte e a autoconfiança de seus desfiles que se estilhaçou.

Ao largo, espelhados nas grandes Sociedades, as classes mais desfavorecidas começam paulatinamente a se organizar, tendo como válvula propulsora os festejos dionisíacos. O que aparentemente se apresenta como paradoxo – Dionísio como elemento agregador e organizacional – passa a se fortalecer com a contínua resistência dos excluídos. Desde a segunda metade do século XIX, houve uma intermitente diáspora baiana. Eram negros alforriados, fugitivos ou indultados pela Guerra do Paraguai que seguiam em várias direções. Com maior incidência é verdade, para o Rio de Janeiro, que já possuía estruturas de subsistência organizadas para esses grupos. As tias, quituteiras das festas da cidade, recebiam e encaminhavam os recém-chegados ao convívio do grupo. Houve durante muitos anos uma íntima relação entre a reintegração social, as expressões musicais e religiosas na cidade. A casa da mãe e do pai de santo era um espaço gregário que buscava ocupar a lacuna dolorosa da repatriação; os filhos de santo, em verdade, era aqueles que doídos dos anos de abandono e vilipêndios encontravam uma nova família que os acalentava. Inicia-se aqui a criação da Pequena África, sob organização originária de Ossum e Dadá e Miguel Pequeno e Amélia Kitundi. A prática de recepcionar o estranho tornou-se freqüente como testemunha o depoimento de Carmem Teixeira da Conceição:

Tinha lá na Pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era uma casa de baianos e africanos (...), da casa deles se via o navio, aí já tinha o sinal de que vinha chegando gente de lá (...). Era uma bandeira branca, sinal de Oxalá, avisando da chegada de gente.[9]

Eram reis, pastoras, cozinheiras, capoeiristas, marceneiros, gente simples que ouvia falar sobre a possibilidade de amparo e migrava para a cidade de São Sebastião. Os canaviais, os cafezais e as minas do Brasil encaminharam cerca de dois milhões de negros e mestiços até as praias do Rio de Janeiro: indiscutível a herança desta parcela da população na formação do imaginário cultural da metrópole. O grupo mais numeroso, o que viria a ser conhecido como Pequena África, instalava-se na Saúde, próxima ao cais do porto, local em que proliferavam as “cabeças de porco”, moradias populares que permitiam aos recém chegados manterem-se ao redor dos trabalhos, como a estiva, por exemplo. Até o período do Governo Pereira Passos e seu processo de modernização urbanística, claro.

Há alegria e folguedos, comida e boa recepção, mas não podemos esquecer a figura do malandro, personagem aparentado ao pícaro de outros tempos que freqüenta a zona limítrofe entre legalidade e ilegalidade. Não se considerava representante da marginália, mas parecia saber que com seus modos impecáveis, seu terno vistoso e seu chapéu de palhinha seria imortalizado em versos e alcançaria a condição de fantasia. Não queremos minimizar as dificuldades enfrentadas pelas classes populares desse período, principalmente pela comunidade negra, mas já que o Carnaval me permite deixar “a dor em casa me esperando”[10], só voltarei na Quarta-feira... Assim era para o Rei de ouros, porque não poderia ser para mim? Talvez porque não tivesse o carisma de Hilário Jovino Ferreira, liderança negra carnavalesca e religiosa na Pequena África, dividindo, conflituosamente, o poder dos orixás e dos batuques com Tia Ciata. Esta, do Rosa Branca; aquele, do Rei de Ouros. Passava-se a um tempo de cordões e ranchos, a periferia que tomava o seu lugar na História.

Os ranchos e cordões começaram a dominar o cenário burlesco da capital e a criar desavenças profundas entre seus participantes. A cisão entre Hilário e Ciata ultrapassava a questão carnavalesca, mas acabava repercutindo também nessa área em disputas acirradas, principalmente quando a gazeta de Notícias começa em 1906 a premiar os estandartes mais luxuosos. Convém, no entanto, traçar a distinção entre ranchos e cordões para não incorrer nos mesmos erros dos intelectuais de outros tempos que acreditavam ser tudo uma só manifestação.

Os ranchos seguiam mais de perto o formato proposto pelas antigas sociedades carnavalescas, com seus poucos recursos criavam alegorias sobre carroças e

harmonizavam seu canto, apresentando percussão leve (pandeiros, castanholas) e [apresentavam] um volume instrumental considerável, que incluía cordas e sopro; [havia] presença de mestres de canto ou de harmonia; [fixavam] destaque para a presença feminina, - as saloias ou pastoras, que dominavam a afinação do desfile; (...) [e por fim] os enredos fixos integravam o conjunto dos componentes [grifos nossos].[11]

Cabe ainda lembrar que a música de choro, associada às gafieiras e não aos terreiros de candomblé, era também um diferencial entre ranchos e cordões. Esses, no entanto, seguiam a pé, em desfile que descortinava fantasias as mais variadas. A

percussão acompanhada de cantoria [apresentava] um ou dois dançarinos vestidos de índios [que] entoavam a copla; o coro em uníssono repetia o estribilho (ou chula) e [eram] por vezes acompanhados de cavaquinho e violão; (...) possuíam mestre-de-pancadaria, a quem cabia afinar o ritmo da percussão [grifos nossos] [12]

O espírito deles pode ser resumido na seguinte quadrinha:

Eu vou beber, eu vou me embriagar,

eu vou sair de índio para a polícia me pegar.

A polícia não quer que eu sambe aqui,

eu sambo ali, eu sambo acolá.[13]

Frente as manifestações populares e percebendo que havia perdido terreno, a intelectualidade decide retomar a máquina educacional carnavalesca e sobe o morro. Conhecidos são os contatos entre Coelho Neto e o grupo Ameno Resedá, Villa-Lobos e a Mangueira, mas pouco se fala do papel que os ranchos passam a assumir neste novo contexto nacionalista: tradutor da cultura letrada às massas populares. Não é de se admirar que carnavais depois e patriotismos a parte, o criolo ficou doido e saiu a misturar Independência com Proclamação da República. De toda sorte, a semente para os futuros desfiles dos grêmios recreativos Escolas de Samba fora lançada e a institucionalização da festa começara.

Antes, entretanto, de começar a viajar pelas rádios e lembrar de pôr o “retrato do velho outra vez no mesmo lugar”, meu amigo me acordou da minha viagem onírica. Ei, onde você está? Volte! Volte! Estou chamando a um tempo e você aí em transe. Desculpei-me pela grosseria e percebi quanto tinha ficado cansada e impressionada por aquela pesquisa. Voltamos a conversar amenidades, começou o desfile que terminou no dia seguinte, seguimos o bloco dos garis e eu não respondi mais nada sobre festas e ritos. Após deixá-lo no aeroporto, dias depois, percebi que não consegui respondê-lo por desconhecer minha condição inicial de estrangeira naquele processo todo. Não sei se posso ou quero responder “O que é carnaval?”, mas descobri que aprendi muito sobre mim, procurando por ele:

Agora vou mudar minha conduta

Eu vou à luta,

Pois eu quero me aprumar.(...)

Pra poder me reabilitar.[14]

Noel Rosa

 


 

[1] SEBE: 1986, p. 11.

[2] Bandeira apud SEBE: 1986, p. 14.

[3] SEBE: 1986, p. 25.

[4] CUNHA: 2001, p. 24.

[5] Idem, p. 31.

[6] Laet apud PEREIRA: 1994, p. 48.

[7] espaços reservados a negros alforriados com recursos da própria agremiação

[8] Apud SEBE: 1986, p. 81.

[9] CUNHA: 2001, p. 210.

[10] Chico Buarque de Holanda apud SEBE: 1986, p. 88.

[11] CUNHA: 2001, p. 152

[12] Idem, ibidem.

[13] Idem, p. 205.

[14] Noel Rosa apud DIDIER e MAXIMO: 1990, p. 116.