OS
INTELECTUAIS
E A
TRADIÇÃO
SOB
SUSPEITA
NAS PRIMEIRAS
DÉCADAS
DO
SÉCULO
XX
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo
(UERJ)
Como atua o
intelectual
brasileiro, no
início do
século XX,
cujo
perfil parece
distante ao
intelectual
contemporâneo e
muito
diverso do
intelectual
modernista e
suas
barricadas de
rebeldia?
Para
apresentar uma
reflexão
sobre
esse
aspecto aproximamos
escritores
que,
por
um
lado,
interiorizam o despedaçamento dos
valores
culturais, provocado
pela
avassaladora modernização, e,
por
outro,
recorrem à
linguagem de
escritor - à
própria
literatura,
portanto -
para
refletir
sobre os
dilemas
culturais e os
impasses da
função do
intelectual.
Certos de
que a
palavra do
escritor,
especialmente
na
cultura
brasileira,
alcança uma
materialidade
mais
densa,
preocuparam-se
em
refletir
como
interpretar uma
cultura
latina,
mestiça,
tropical
em
diálogo
com a
tradição
européia e descobrem,
em
tempos
efervescentes
de
ordem e
progresso,
ares
sombrios nas
imagens
anunciadas
para o
futuro,
duvidam da onipotência do
homem e põem,
sob
suspeita, a
linguagem.
Tão
diversos
em
seus
estilos e
dispersos
em
seus
locais de
produção -
Lima Barreto,
Augusto dos
Anjos,
Euclides da
Cunha,
Monteiro Lobato, Pedro Kilkerry - atuam critica e
criativamente,
revelando a
sensação de
modernidade
quase
fantasmagórica,
porque
bizarra, num
país
como o Brasil,
como diria
Augusto do
Anjos
em “Poema
Negro”.
A
passagem dos
séculos
me
assombra.
Para
onde irá
correndo a
minha
sombra
Nesse
cavalo de
eletricidade?!
Caminho, e a
mim pergunto,
na
vertigem:
-Quem sou?
Para
onde vou?Qual
minha
origem?
E parece-me ,um
sonho a
realidade.
1 .
LIMA
BARRETO E A
CORRESPONDÊNCIA:
IMPASSES
DA MODERNIDADE
OU
“PESADELOS
DE RASKÓLNIKOFF”.
Reunida,
por Francisco
de Assis Barbosa,
em
dois
volumes, a
Correspondência
(ativa
e
passiva) de
Lima Barreto,
publicada
pela
Editora
Brasiliense,
em 1956,
possui uma
seqüência
cronológica de 1892-1922,
isto é, a
trajetória do
ainda
estudante
secundarista
ao
romancista,
em
seus
últimos
dias de
vida. Às
cartas
publicadas é
preciso
acrescentar as
minutas e
manuscritos,
existentes na
Seção de
Manuscritos da
Biblioteca
Nacional.
Se as
cartas guardam
um
roteiro do
escritor -
ainda
criança
em
missivas ao
pai, as
camaradagens de
infância e
também as
primeiras
observações
sobre a
política e o
país, o
drama da
loucura
paterna, o
sonho logrado
de
ser
doutor, a
experiência
como
amanuense da
Secretaria da
Guerra - permitem,
em
contrapartida,
o
fio
condutor
para a
elaboração de
um
painel
sobre o
início do
século e os
conflitos
entre
modernidade e modernização na
cultura
brasileira.
Como
tecer e
analisar essa
rede
complexa,
em
que se
sustentam as
contradições
culturais,
através de
cartas?
A
carta é
um
texto
cuja
estética se
caracteriza
pela
descontinuidade
e
fragmentação,
mantendo-se na
linha
tênue
entre a
configuração
objetiva e
precisa -
por
datas e
locais
freqüentemente
registrados - e a
exposição desse
momento
histórico
sujeito às
imprecisões e
fragilidades
da
experiência
individual.
Representam as
cartas,
portanto,
diversos
olhares e
interpretações
dos
protagonistas
(ou
intelectuais)
sobre as
atuações
culturais,
sua
eficácia,
abrangência,
impasses e
limites,
expressos
em
confissões,
entusiasmos,
projetos,
sonhos,
teorias,
discussões
erguendo
um palco onde
desfilam
seus
signatários.
Na
Correspondência
de
Lima Barreto
temas
como o
nacionalismo,
teorias
científico-sociais, a
crítica, o
artista e o
mercado estão
presentes e
indicam o
debate
em
torno das
reestruturações
culturais, norteadas
por
questões
tais
como: - é
possível a
experiência da
ordem
em
meio a
um
conjunto
formado de
partes
tão
díspares
entre
si ? -
como
viver,
enfim, a
heterogeneidade multitemporal da
cultura,
conseqüência
de uma
história na
qual a
modernização
não pôde
levar a
termo a
substituição
do tradicional e do
antigo ? Nesta
perspectiva,
entre o
passado
colonial e o
presente de
velocidade e
progresso, o
tempo
destinado à
periferia, na
racionalidade
moderna, é o
do
futuro. O
Brasil define-se
como o “país
do
futuro”
ou
como ironiza
Monteiro Lobato
em
carta a
Lima Barreto,
de 31-05-1920: “... a
verdade verdadeira é
que
não somos
ainda
nem
sequer
presente -
mero
futurozinho,
apenas”.
O
escritor
Lima Barreto
assume,
como
intelectual, a
responsabilidade
de
discutir
sobre as
relações
entre
cultura e
literatura, registrando
em
carta, de
1918, ao
confrade
mineiro
Almeida Magalhães
suas várias
frentes de
atuação: “...
todo
me voltei
para a
Literatura,
para a
História e
para as
questões
econômicas e
sociais,
sobretudo
agora
para
estas.”
Nas
cartas,
também, lembra
aos
interlocutores
que é
preciso “discutir
qualquer
questão
que
nos
interesse
como
nação,
como
indivíduos e
particularmente
como
brasileiros”.
O
intelectual
brasileiro transita numa
zona de ambíguas
inter-relações
culturais,
por
considerar-se
um
intérprete da
modernidade
para a
massa
inculta do
país. O
lugar da
periferia,
frente à
tradição
Ocidental, é
angustiante,
tenso,
porém,
fonte de
vantagens
culturais,
porque torna
possível o
conhecimento e
usufruto dos
bens
intelectuais
do
centro. Nessa
perspectiva,
tomar
para
si a
reflexão dos
dilemas
gerados
pelos
processos de
homogeneização,
em
conflito
com os
anseios de
crítica e
diferenciação
local,
significa
estar no
centro de
um
difícil
impasse.
Um dos
exemplos desse
impasse está
no
confronto do
intelectual
com a
expansão
urbana, uma
das
formas de
fixar-se o
cenário
moderno.
O
jovem
Lima Barreto
parece seduzido
pela
sereia da
ordem
que anuncia a
modernização
como
forma de
organizar as
descontinuidades
da
vida
urbana: almeja
participar de
um
projeto do
desvio do
rio Paraíba
para a
baía da Guanabara,
pois
só
assim a
cidade,
como acontecia
às
capitais
européias, ficaria à
margem de
um
rio. As
dificuldades
econômicas,
por
que passava o
escritor,
podem,
talvez,
explicar o
desejo de
participar da
comissão de
tal
projeto,
como
expressa
em
carta ao
amigo Otávio
Inglês de Sousa,
que estagiava
nos
Estados
Unidos.
O
Rio,
como
mais
ou
menos deves
adivinhar, continua na
senda do
progresso,e
velozmente ! O
governo,
conhecendo
que é uma
falta
grave à
nossa
cidade, a
falta de
um
rio
que a
corte,
como acontece
em Paris,
Londres,
com as
primeiras
capitais
européias,
enfim,
cujo
efeito
estético
ninguém
discute, pretende
desviar o
curso do
Paraíba
para a
nossa
baía. Os
estudos
ainda
não estão
feitos;
mas a
comissão
já está
indicada e
já se
fala nas
indenizações.
Escusado é dizer-te
que ambiciono
um
lugar na
sobredita
comissão.
A avaliação desses
intelectuais
é,
portanto,
complexa
porque,
traduziam a
diferença e o
singular na
busca de uma
identidade
para
apresentar à
cultura
Ocidental, ao
mesmo
tempo
em que eram
entusiastas
colaboradores da modernização, o
que parecia
aproximá-los de
seus
contemporâneos
europeus. No
entanto, no
caso
específico de
Lima Barreto,
sua
percepção
crítica
acerca da
dramatização
ideológica das
relações
sociais será
afinada
para
superar as
armadilhas da
homogeneização.
Suas
cartas
expressam,
gradativamente,
a
suspeita
em
relação aos
projetos de
ordenação
linear da
história e
essa
suspeita
tornar-se-á
constante
em
seus
textos
ficcionais.
Um
exemplo
interessante aparece na
correspondência
com Monteiro
Lobato,
onde se
destaca o
reconhecimento
da
não
significância dos exacerbados
sentimentos
nacionalistas
ou
patrióticos,
especialmente
num
contexto
em
que a
hibridez
possui
um
longo
trajeto.
O
que acho é
que rescendes
muito a
patriotismo e
pretendes
criar de assentada muitas
coisas nestes
Brasis. Pode
ser... Uma
coisa,
porém,
eu
te observo: é
que uma
terra
tão
antiga
como a
nossa (sabes
bem a
que
parte
me refiro),
onde
não há
vestígios de
civilizações
passadas,
por
mais
rudimentares
que sejam;
onde o
achado de
um
fóssil é
mais precioso
do
que o
diamante,
parece
estar fadada a
não
criar nada de
seu.
A
ambigüidade e a tensão
caracterizam o lugar do
intelectual e
a
trajetória do
autor de
Policarpo
Quaresma
não
poderia
ser
diferente. Se,
por
um
lado, o
jovem
escritor
em 1906 aprova
o
desvio do
curso de
um
rio
para a modernização da
cidade,
por
outro, realiza
críticas
que se
caracterizam
como uma
visão
anticolonial,
contrária às
assimetrias
generalizadoras
entre as
formas
culturais européias e a dos
países
periféricos.
Em
carta ao
sociólogo
francês
Célestin Bouglé (1870-1940),
discípulo de
Durkheim e
professor de
Sociologia na
Sorbonne,
Lima Barreto
contesta “os
juízos
falsos
com
que o
mundo
civilizado envolve os
homens de
cor”.
Ao
ler
seu
belo
livro,
observei
que o
senhor está a
par das
coisas da
Índia e
pouco sabe
sobre os
mulatos do
Brasil. Nas
letras
brasileiras,
já
florescentes, os
mulatos
ocuparam
lugar de
destaque. O
maior
poeta
nacional
Gonçalves
Dias, era
mulato; o
mais
erudito dos
nossos
músicos,
espécie de
Palestrina, José Maurício, era
mulato; os
grandes
nomes
atuais da
nossa
literatura - Olavo Bilac, Machado de Assis e
Coelho Neto -
são
mulatos.
Ao
expor
sua
crítica às
distorções
mecânicas e
precipitadas,
que analisam
da
mesma
forma a
Índia e o
Brasil, o
escritor dá o
tom de
seu
perfil de
intelectual:
crítico das
generalizações
e
fanatismos,
defensor da
heterogeneidade e da hibridação
como
características
inerentes à
nossa
formação
social.
Realiza, de
fato,
um percurso de
“Policarpo”às
avessas -
reconhece
que a
cultura
ganha, e
não perde,
em
comunicação e
conhecimento
quando
não atrelada
exclusivamente
a
seu
território.
Entre os
dilemas
agravados
pela
modernização, encontram-se os
temas
relativos à
influência
norte-americana
sobre a
cultura
brasileira.
Discutia-se,
em
torno disso, o
modo
como as
elites lidavam
com a
intersecção de
diferentes
temporalidades históricas
para
elaborar a
integração a
um
projeto
global.
Dito de
outra
forma, refletiam os
escritores
sobre
como
tornar
compatível a
experiência
internacional
de
intelectual
com as
tarefas
que
lhes
apresentava a
sociedade
brasileira
em
desenvolvimento.
A
Correspondência
registra o
diálogo
entre
Oliveira
Lima e
Lima Barreto,
nessa
direção.
A
minha
tenção
era
perguntar-lhe, ao
senhor,
mais
esclarecido e
inteligente do
que
eu,
mais
culto e
mais
viajado do
que
eu, conhecendo
bem a evolução das
idéias e a
sua
transformação
em
sentimentos, a
ditar
atos
quase
automáticos -
se
eu,
homem de
cor,
mulato, etc., posso e devo
concorrer
de alguma forma para
reforçar a
influência
ou o
predomínio, no Brasil, dos
Estados
Unidos; e também, se
não é
minha
obrigação de modesto
homem da
pena
combater de todas as
maneiras essa
influência
A
resposta de
Oliveira
Lima
esclarece-nos o
teor da
discussão:
em
nome de uma
equivocada
democracia
racial
como
saída
para as desigualdades
sociais no
Brasil, defende uma
concepção de
pan-americanismo
que anuncia
uma
igualdade
fundada numa
concepção
vertical e
bipolar de
poder, contestada
por
Lima Barreto
que aponta a
obliqüidade
inerente aos
dilemas
culturais.
As
cartas,
também,
polemizam
acerca de
um
complexo
sentido de ‘pátria’,
a
partir de
comentários
sobre a
conferência do
diretor e
jornalista do
Rio-Jornal, Georgino Avelino, pronunciada na
Biblioteca
Nacional
com o
título “A
Necessidade
das
Pátrias”,
em 02 de
setembro de
1916. Ao
questionar o
teor da
conferência,
Lima Barreto
historiciza e apresenta os frágeis
alicerces
que sustentam
a
noção de ‘pátria’.
A
idéia de
Pátria é
puramente
religiosa;
tu sabes
como
ela nasceu na
Grécia e
em Roma e
porque se
ligou ao
solo.
Lê o
teu Fustel de
Coulanges e
tu verás como
eu tenho
razão.
Com o
tempo,
apagou-se de
todo a
memória da
origem desse
sentimento
(...) O
meio
não justifica
a
pátria. (...)
As nossas
atuais
pátrias não
têm
outra
base
senão na
política
que,
desde a
Renascença,
tem determinado e
regulado
toda a
nossa
atividade.
Lima Barreto
não se
deixa
envolver pelas
armadilhas
nacionalistas,
tão
em
voga à
sua
época,
que assistiu à
fortificação de
um
sentimento
nacionalista,
para
controle
social,
em
nome da
ilusão de ‘pátria’,
defendida
em
narrativas nas
quais fala-se
do
tempo
histórico numa
linguagem de
irreversibilidade,
em
séries
cronológicas e
lineares,
que sintetizam
progresso e
evolução. A
resposta do
escritor,
entretanto,
instaura a
dúvida no
lugar das
propostas
afirmativas
sobre a
idéia de
tempo,
formador da
nação:
um
tempo
homogêneo
que abafa, num
estranho
esquecimento,
a
violência
envolvida
nos
escritos
justificativos de
civilização.
A complexidade desse
papel do
intelectual
como
intérprete da
cultura,
em intersecção
com a
tradição
Ocidental,
pode
ser sintetizada no
desabafo do
escritor,
em
carta ao
amigo Antonio
Noronha
Santos,
que estava
em Paris,
com
data de 18 de
maio de 1905:
“Quando
penso
em Paris,
Antonio, tenho
pesadelos de
Raskólnikoff”.
Dividida,
mas
criativa,
angustiada e
crítica,
tensa,
enfim, -
como o
personagem de
Dostoiévsky - configura-se a
interlocução
do
intelectual
Lima Barreto
com os
dilemas
culturais,
significativos
à
sua
época, e
que,
ainda
nos afligem.
Se a Correspondência permite-nos
acompanhar, de
perto, o
debate
entre
intelectuais,
é na
ficção
que se
constrói,
intensa e
sutilmente,
uma
rede de
diálogo
entre
Lima Barreto e
seus
contemporâneos
quando
reconhecem
que
produzir
literatura
brasileira
implica
tratar da
nacionalidade
e procuram,
por
isso,
pensar
intensamente o
país,
mas num
compromisso às
avessas
com o
nacional.
Ao
ampliar a
reflexão
sobre a
linguagem, a
ciência, o
homem, os
seus
textos
encontram os
bastidores da
invenção do
Brasil: a inumanidade
inerente aos
conceitos de
verdade
única das
narrativas do
historicismo e do
ufanismo
cientificista. Na
mesma
medida,
quando se
recusam a,somente,
representar o
real e expõem
a
fragilidade da
representação,
tornam o
texto
literário
artisticamente
mais elaborado
e
coerente à
fragmentação
do
homem e
seu
cotidiano,
feito de
fracassos,
reformas e
promessas de
um
futuro
melhor.
A
tensão
desequilibradora contida nas
obras, corrói
a
tradição
literária e
cultural,
mas reinventa
a
literatura
porque
deixa,
sob
suspeita,
seu
material de
composição: a
linguagem.
2. PALAVRA, PAÍS, PAISAGEM DILEMAS DA LITERATURA
Um dos
signos
mais
fortes da
invenção do
Brasil pode
ser percebido na
construção da
paisagem .
Encontramos na
cultura
brasileira o
registro
por
meio da
memória
coletiva de
uma
rede de
códigos
culturais
para a
percepção da
paisagem, uma
tradição
construída
por
um
vasto
conjunto de
lembranças,
mitos e
lendas
que,
além de
acompanhar
extensos
períodos da
história
social,
também molda
instituições e
valores.
Sob
esse
aspecto,
paisagem
constitui
um
lugar de
apropriação
visual e
um
foco
para a
formação de
identidade, o
que supera a
concepção
estética de
gêneros
fixos (sublime,
pitoresco,
pastoral) da
literatura,
pintura
ou
fotografia e
lugares
considerados
objeto de
interpretação
visual e
meramente
contemplativa. Compreendida
como uma
cena
natural,
mediada
pela
cultura, a
paisagem
revela-se
um
meio de
troca no
qual confluem
uma
formação
histórica
particular, e
seus
valores,
em
relação à
tradição
ocidental e
suas
inter-relações.
Imagens
como a da
terra de
fertilidade
ímpar,
com
árvores de
copas
altíssimas, carregadas de
saborosos
frutos, numa
eterna
primavera ao
ritmo
alegre dos
cantares de
pássaros de
mil
cores
direcionaram os
primeiros
olhares
para o
Novo
Mundo.
Apesar de
atenuantes,
expressos
nos
documentos
escritos, os
colonizadores incorporaram o
sentido de
milagre à
natureza e,
debaixo do
equador, o
extraordinário
tornou-se a
regra.
A
convenção
romântica
também ensinou
ao
homem
brasileiro a
ver a
terra
rica,
exuberante,
dadivosa; uma
paisagem
que paralisa a
vida, na
construção do
país
homogêneo,
unívoco,
linear, na
palavra
ambígua da
ficção.
Arrancar a
imagem
balsâmica,
paradisíaca,
alienante da
paisagem
incrustada no
fluxo
contínuo da
tradição
constitui o
enorme
desafio
para
poetas e
romancistas,
do
início do
século.
Já é
bastante
conhecida a
incursão
pela
cultura
brasileira
feita
pelo
mais
famoso
personagem de
Lima Barreto,
o “Policarpo
Quaresma”,
que empreende
uma
viagem
em
direção à
riqueza e
exuberância da
terra simbolizada, no
romance, pelas
aventuras do
personagem num
sítio, ironicamente
chamado de “Sossego”,
local,
segundo o
narrador,
que “não
era
feio,
mas
não
era
belo.” “Quaresma”,
autodidata e
muito lido e
sabido
em cousas
brasileiras, às
imagens
paradisíacas de
referência à
terra acrescenta os
recursos
cientificistas de
interpretação
e
análise.
Integrou às sólidas
noções de
Botânica,
Mineralogia,
Geologia e
Zoologia o
aparato
técnico e
instrumental
necessários
para
comprovar a
prodigalidade
da
terra.
Será
necessária a
visita de Olga
- a
afilhada do
protagonista
de
Triste
Fim
de Policarpo Quaresma ao
sítio “Sossego”
–
com
sua
lucidez,
para
provocar uma
reflexão
crítica
primeiro
junto ao
leitor e,
depois,
iluminar as
noções do
padrinho
sobre
pitoresco,
terra,
homem e
trabalho no
campo,
auxiliando
sua
aquisição de
conhecimento
crítico. O
que
mais
impressionou Olga foi o “ar
abatido da
gente
pobre” e o
espetáculo
não
animador de
pobreza,
tristeza e
doença. No
lugar de
roceiros
alegres,
felizes e
saudáveis a
urbana
afilhada
encontrou sapês
sinistros,
casas soturnas
de
habitantes
sorumbáticos,
acusados de
preguiçosos
ou
indolentes.
O
mais
interessante é o
recurso do
autor
para
tratar do
tema,
sem
panfletarismo
ou
didatismo,
questiona -
através da
personagem
feminina Olga
- instaura a
dúvida, faz
interlocução
com o
leitor,
transferindo-lhe a
pergunta: “Seria a
terra?
Que seria?”
ou,
ainda, “Por
que
esse
acaparamento,
esses
latifúndios
inúteis e
improdutivos?”.
Esses
mesmos
questionamentos da
personagem
propiciam uma
interlocução
com os
escritores
contemporâneos
a
Lima Barreto.
A
imagem do
homem do
campo forjada
pelo
cientificismo
projetou a
miséria e a
doença
sobre o
indivíduo,
sem
relacioná-lo às
condições
sociais :
seu
abandono,
desqualificação e,
portanto, a
ausência de
perspectivas
explicavam-se
por
fundamentos
biológicos e
raciais.
Logo, se o
romântico silencia o
homem no
cenário
paradisíaco, o
naturalismo
culpa-o pelas
ruínas do
paraíso.
Apesar de
protestos de
intelectuais
como Manoel
Bonfim
que alertava “Só
é verdadeiramente
fértil, a
terra semeada
pelo
trabalho
inteligente”
, ao
resíduo
romântico de
interpretação
da
terra e do
homem foram
acrescidos os
dados
cientificistas. Justificava-se, dessa
forma, o alijamento de
enorme
contingente de
brasileiros,
ditos
desqualificados
tecnicamente, da
construção da
nação
progressista e
transfere-se
tal
poder aos
imigrantes.
A
síntese desse
processo pode
ser
vista na
bela
imagem
elaborada
por Monteiro
Lobato
em
Urupês,
que à
fantástica
natureza
insere
desânimo,
lassidão
infinita,
solidão,
dor,
após uma
inteligente e
criativa
seqüência de
episódios
irônicos
que esvaziam
os
fundamentos
naturalistas
sobre
terra e
homem.
No
meio da
natureza
brasílica,
tão
rica de
formas e
cores,
onde os ipês
floridos derramam
feitiços no
ambiente e a
infolhescência dos
cedros, às
primeiras
chuvas de
setembro, abre
a
dança dos
tangarás; onde
há
abelhas de
sol
esmeraldas
vivas,
cigarras,
sabiás,
luz,
cor,
perfume, vida
dionisíaca
em escachôo
permanente, o
caboclo é o
sombrio urupê de
pau
podre a
modorrar
silencioso no
recesso das
grotas. Só
ele
não
fala,
não
canta,
não ri,
não
ama.
Só
ele no
meio de tanta
vida,
não
vive...
[12]
Interessado
em uma
releitura da
paisagem e,
conseqüentemente,
do
homem Euclides
da
Cunha viaja
pelo
país
para
identificar a
imagem do
brasileiro, perdido num
paraíso há
muito
dissipado, e o
escritor
registra
que
em
seu percurso a
maior
ruína
encontrada foi o
próprio homem - marcado
por
profundos
sulcos de
abandono,
sob
asas de
paternalismo.
Este
sim
corroía-lhe as
forças,
tornando-o
dependente e
desqualificado.
Há, no
entanto, no
romance
Vida
e
Morte de M. J.
Gonzaga de Sá, de
Lima Barreto,
um
personagem
pouco
conhecido,
intitulado
pelo narrador de
“historiador
artista”,
referência
curiosa
para uma
época
que,
sob a
inspiração de Nietzsche,
questiona-se
sobre o
excesso de
história,
capaz de
paralisar a
faculdade
plástica da
vida.
Tanto os
aspectos
que definem o
personagem,
quanto a
sua
concepção de
história e
cultura,
movimentam-se do
individual ao
social, do
particular ao
geral, ligam a
memória
individual à
sociedade
em
imagens
simultâneas de
passado e
presente, integrando o
fluxo do
tempo num
conjunto de
experiência
acumulada.
Na
forma da
narrativa do
romance do
“historiador
artista
Gonzaga de Sá” é o
olhar, de narrador e
personagem,
quem
direciona, num
constante
vaivém
espacial e
temporal, os
temas
narrados; no
conteúdo da
narrativa
nega-se o
tratamento
global e
ordenado na
apresentação do
tema e
privilegia-se o
instante
em
pequenos
acontecimentos
cotidianos.
Serão,
portanto, os
passeios
para
contemplar a
paisagem
urbana e
comentar a
beleza da
natureza, as
longas
conversas à
mesa do
jantar, o
olhar
que acompanha
o
movimento das
nuvens, da
fumaça de
um
cigarro, das
botas de
um
soldado na
pompa de
um
desfile
militar, o
foco da
narrativa
guiada
por “Augusto
Machado”, o
narrador,
que se
desvia da
grandiosidade
dos
eventos
para os
insignificantes
detalhes do
cotidiano.
Assim, de uma
cena
banal de
observação de
um
jardim
desenvolve-se uma
profunda
reflexão
sobre
cultura,
arte,
literatura: esta,
promovendo ao
indivíduo a
consciência de
si
mesmo e da
realidade
que o
cerca.
A
esse
tempo,
passava, olhando
tudo
com
aquele
olhar que os
guias
uniformizaram,
um
bando de
ingleses, carregando ramos de arbustos - vis
folhas
que
um
jequitibá
não contempla!
Tive
ímpetos de
exclamar:
doidos! Pensam
que levam o
tumulto luxuriante da
mata nessa
folhagem de
jardim! Façam
como
eu: sofram
durante
quatro
séculos,
em
vidas
separadas, o
clima, o
eito,
para
que possam
sentir nas
baixas
células do
organismo a
beleza da senhora -
desordenada e
delirante
natureza do
trópico de
Capricórnio!... E vão-se,
que
isto é
meu!
Se,
por
um
lado, a
reflexão do
narrador
Augusto
Machado revela
o
conteúdo da
estereotipia cultural,
por
outro, supera
a
visão
maniqueísta
para o
estrangeiro
numa
clara
afirmação de
que a
cultura
brasileira
está
imersa no
movimento do
mundo, e
suas
influências,
demonstrando,
especialmente,
o
intercâmbio de
valores e
idéias,
através da
arte,
importante
para o
conhecimento e
autoconhecimento.
Mostra-nos o
texto
literário o
duplo
processo, na
ordem do
imaginário,
que
literatura e
história
constroem
juntas,
em
torna da
palavra
que
expressa a
idéia
que fazemos de
nós
mesmos, do
país, da
paisagem.
Logo
me recordei,
porém, dos
meus autores -
de Taine, de Renan, de M. Barrès, de France, de Swift, e Flaubert -
todos de
lá,
mais ou
menos da
terra daquela
gente!
Lembrei-me
gratamente de
que alguns deles
me deram a
sagrada
sabedoria de
me
conhecer a mim mesmo, de
poder
assistir ao
raro
espetáculo das
minhas
emoções e dos
meus
pensamentos.
Nessa perspectiva, tanto os poemas como a
narrativa desses autores, exigirão do leitor uma aprendizagem para lidar com a
insólita criação forjada no cosmopolitismo de sentidos e linguagens. Um poeta
como Augusto dos Anjos, a exemplo, pertence ao ideário da estética moderna que,
desde Baudelaire, compreende todo o mundo visível, apenas, como um reservatório
de imagens e de signos aos quais a imaginação deverá atribuir um lugar e um
valor relativos. Na mesma medida em que abre a sensibilidade para captar a
beleza extravagante do inorgânico, das vozes subterrâneas, de doentes,
prostitutas, bêbados, do homem na sua pequenez diante do cosmos, estabelece um
léxico violente e banal, concreto e compacto de expressões como cuspo, escarro,
tosse, bacia, escarradeira, ferro, esterquilínio, numa inserção, de termos
prosaicos, que dialoga com o melhor da tradição poética brasileira, aquela que,
com o romântico Álvares de Azevedo incorporou imagens do cotidiano na poesia,
através da irreverência e coloquialismo. É importante, para o poeta, a rejeição
à sintaxe e vocabulário convencionais, porque sugerem exaustão, sofrimento,
decrepitude (e isto é revelado ao leitor) para que a “idéia” “não esbarre no
mulambo da língua paralítica”.
A linguagem da tradição é a das sombras, alucinações ou de animais a “ganir
incompreendidos verbos” no duelo secreto “Entre a ânsia de um vocábulo completo
/ E uma expressão que não chegou à língua.”
Um
dos
traços
essenciais da
modernidade está na
concepção de
arte
vista
como
alternativa de
conhecimento e
libertação,
mas
expressa
pela
melancolia
não redime o
poeta e inquieta o
leitor. Essa “dor
estética”
que “consiste
essencialmente
na
alegria” é,
simultaneamente,
motivo de
crescimento
libertador e
dilaceração - do
artista e
leitor - explicando os
gemidos,
lamentos e
mágoas
nos
poemas de
Augusto dos
Anjos, num
processo
intenso de
consciência
crítica e
auto-referencialidade.
Diabo!
Não
ser
mais
tempo de
milagre!
Para
que esta
opressão desapareça
Vou
amarrar
um
pano na
cabeça,
Molhar a
minha
fronte
com
vinagre.
Mas
tudo é
ilusão de
minha
parte!
Quem sabe se
não é
porque
não saio
Desde
que 6a.
feira, 3 de
Maio,
Eu escrevi os
meus
Gemidos
de
Arte?!
Estabelece-se
com o
leitor o
acordo
tácito de
fascínio e
choque, numa
relação
paradoxal
com as
verdades
estabelecidas: a musicalidade encantatória dos
seus
versos, a
estruturação
em
decassílabos e a singularidade dos
termos
científicos
realizam uma
aproximação
com
aquilo
que o
público
intelectualizado
acreditava
ser
um
misto de
lirismo e
termos do
conhecimento
cientificista
dominante (o
haeckelianismo e
evolucionismo).
A
junção de
tais
aspectos atrai
o
leitor,
organiza-lhe o
quadro de
expectativas
antes de
introduzir o
dado
perturbador, deformante, anulando, ironicamente, o
sentido do
provável
ou do
esperado.
Para o
artista, é
essencial
renovar os
códigos
literários,
lingüísticos,
culturais falando,
todavia, de
dentro desses
próprios
códigos, a
corroer-lhes a
unidade
para
fazer
brotar uma
forma
crítica,
fragmentária,
instigante,
não
necessariamente transformadora,
nem
certamente
niilista.
Apenas o
paradoxo a
caracteriza !
Essa
contradição
aponta o
fascínio do
artista
pela
consciência
em
desenvolvimento,
no
âmbito
estético,
psicológico
ou
histórico e
permite
um
diálogo
com as
reflexões de
Mário de Andrade,
em
Prefácio
Interessantíssimo, no
sentido de
que “escrever
arte
moderna”
não implica
somente a apresentação de problemas figurativos,
mas
crucialmente
estéticos,
tais
como a
elaboração de
estruturas, o
uso da
linguagem e o
papel do
artista
como propõe a
ficção de
Lima Barreto
que realiza
uma sofisticada
reflexão
sobre a
natureza da
ficção na
literatura, na
cultura, na
história
humana.
No
entanto,
esse
mesmo
leitor,
percebe nas
obras de
Lima Barreto,
Augusto dos
Anjos,
M.Lobato, Euclides da
Cunha
um
diálogo
com a
tradição
literária,
romântica e naturalista,
para
discutir o
papel da
literatura, do
artista, e,
simultaneamente,
incutir
tensão
nos
sentidos de
brasilidade.
Quer no
conjunto de
temas
tais
como o
pobre, o
índio, o
negro, a
barbárie do
homem
civilizado, a
cultura
popular,
quer,
especialmente,
na
forma
literária
que, ao
dobrar-se
sobre
si
mesma, expõe
suas
fissuras, no
desejo de
manter
tudo
sob
suspeita!
Ao
lidar
com a
tradição,
em
Contrastes
e
Confrontos,
Euclides da
Cunha critica
nos
intelectuais o
‘exílio
subjetivo’
que
ainda procura
“nas velhas
páginas de
Saint-Hilaire...notícias
do Brasil” . Sugere,
ainda,
um
estado de
supressão
temporária da
historicidade, das
ocupações e
valores
estabelecidos
pela
memória, de
perfil
passivo,
para a
leitura do
homem, da
terra, do
país.
Apresenta, na
sua
argumentação,
o
exemplo da
escrita
sedimentada
por
camadas de
estereótipos -
levada a
termo
pela
Sociologia de
seu tempo -
que,
misturando Hegel
com Cervantes,
identifica o
brasileiro como “
povo
pródigo,
doudivanas,
que
anda na
história a
esperdiçar uma herança”.
O
escritor
produz uma
reflexão
sobre o
quanto a
desmedida da
história
prejudica o
vivo, o
presente, a possibilidade
do
novo. A radicalidade desta
tensão
história-presente efetiva-se na modernidade e é
inseparável da
desconstrução da
tradição.
Suas
reflexões
indicam
que se, de
um
lado, a
modernidade tem uma
relação
radicalmente
nova
com a
linguagem,
por
outro, acentua
a
tensão
entre
história e
presente e redimensiona a
memória, a
partir dos
impasses
entre
esquecer e
lembrar. O
que
esquecer e o
que
lembrar, no
âmbito da
tradição,
são as
questões
desses
intelectuais,
marcadas
por uma
lucidez
crítica
para trazê-las
sem o
ressentimento
histórico,
mas
com o
viés da
memória
criadora.
Lima Barreto e
seus
contemporâneos
reconhecem
ser
necessário
lembrar
que a
própria
Literatura é,
em
si,
histórica,
como
resultado de
um
longo
processo
que deve
ser rememorado e,
até,
comemorado. No
entanto,
precisam
esquecer
seus
valores
instituídos, estabelecendo uma
relação
profundamente
nova
com a
linguagem,
para
transmitir o
que a
tradição,
afinal,
não recorda,
mas a
modernidade traz à
cena – o
conteúdo
desumano
que reveste o
progresso, a
fragilidade de
suas certezas
e a dimensão da
dor,
silenciada pela ordem!
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