OS INTELECTUAIS E A TRADIÇÃO SOB SUSPEITA
NAS PRIMEIRAS
DÉCADAS DO SÉCULO XX

Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo (UERJ)

 

Como atua o intelectual brasileiro, no início do século XX, cujo perfil parece distante ao intelectual contemporâneo e muito diverso do intelectual modernista e suas barricadas de rebeldia?

Para apresentar uma reflexão sobre esse aspecto aproximamos escritores que, por um lado, interiorizam o despedaçamento dos valores culturais, provocado pela avassaladora modernização, e, por outro, recorrem à linguagem de escritor - à própria literatura, portanto - para refletir sobre os dilemas culturais e os impasses da função do intelectual.

Certos de que a palavra do escritor, especialmente na cultura brasileira, alcança uma materialidade mais densa, preocuparam-se em refletir como interpretar uma cultura latina, mestiça, tropical em diálogo com a tradição européia e descobrem, em tempos efervescentes de ordem e progresso, ares sombrios nas imagens anunciadas para o futuro, duvidam da onipotência do homem e põem, sob suspeita, a linguagem. Tão diversos em seus estilos e dispersos em seus locais de produção - Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Pedro Kilkerry - atuam critica e criativamente, revelando a sensação de modernidade quase fantasmagórica, porque bizarra, num país como o Brasil, como diria Augusto do Anjos emPoema Negro”.

A passagem dos séculos me assombra.

Para onde irá correndo a minha sombra

Nesse cavalo de eletricidade?!

Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:

-Quem sou? Para onde vou?Qual minha origem?

E parece-me ,um sonho a realidade.[1]

1 . LIMA BARRETO E A CORRESPONDÊNCIA: IMPASSES DA MODERNIDADE OUPESADELOS DE RASKÓLNIKOFF”.

Reunida, por Francisco de Assis Barbosa, em dois volumes, a Correspondência (ativa e passiva) de Lima Barreto, publicada pela Editora Brasiliense, em 1956, possui uma seqüência cronológica de 1892-1922, isto é, a trajetória do ainda estudante secundarista ao romancista, em seus últimos dias de vida. Às cartas publicadas é preciso acrescentar as minutas e manuscritos, existentes na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

Se as cartas guardam um roteiro do escritor - ainda criança em missivas ao pai, as camaradagens de infância e também as primeiras observações sobre a política e o país, o drama da loucura paterna, o sonho logrado de ser doutor, a experiência como amanuense da Secretaria da Guerra - permitem, em contrapartida, o fio condutor para a elaboração de um painel sobre o início do século e os conflitos entre modernidade e modernização na cultura brasileira. Como tecer e analisar essa rede complexa, em que se sustentam as contradições culturais, através de cartas?

A carta é um texto cuja estética se caracteriza pela descontinuidade e fragmentação, mantendo-se na linha tênue entre a configuração objetiva e precisa - por datas e locais freqüentemente registrados - e a exposição desse momento histórico sujeito às imprecisões e fragilidades da experiência individual. Representam as cartas, portanto, diversos olhares e interpretações dos protagonistas (ou intelectuais) sobre as atuações culturais, sua eficácia, abrangência, impasses e limites, expressos em confissões, entusiasmos, projetos, sonhos, teorias, discussões erguendo um palco onde desfilam seus signatários.

Na Correspondência de Lima Barreto temas como o nacionalismo, teorias científico-sociais, a crítica, o artista e o mercado estão presentes e indicam o debate em torno das reestruturações culturais, norteadas por questões tais como: - é possível a experiência da ordem em meio a um conjunto formado de partes tão díspares entre si ? - como viver, enfim, a heterogeneidade multitemporal da cultura, conseqüência de uma história na qual a modernização não pôde levar a termo a substituição do tradicional e do antigo ? Nesta perspectiva, entre o passado colonial e o presente de velocidade e progresso, o tempo destinado à periferia, na racionalidade moderna, é o do futuro. O Brasil define-se como o “país do futuro ou como ironiza Monteiro Lobato em carta a Lima Barreto, de 31-05-1920: “... a verdade verdadeira é que não somos ainda nem sequer presente - mero futurozinho, apenas”.

O escritor Lima Barreto assume, como intelectual, a responsabilidade de discutir sobre as relações entre cultura e literatura, registrando em carta, de 1918, ao confrade mineiro Almeida Magalhães suas várias frentes de atuação: “... todo me voltei para a Literatura, para a História e para as questões econômicas e sociais, sobretudo agora para estas.”[2] Nas cartas, também, lembra aos interlocutores que é precisodiscutir qualquer questão que nos interesse como nação, como indivíduos e particularmente como brasileiros[3].

O intelectual brasileiro transita numa zona de ambíguas inter-relações culturais, por considerar-se um intérprete da modernidade para a massa inculta do país. O lugar da periferia, frente à tradição Ocidental, é angustiante, tenso, porém, fonte de vantagens culturais, porque torna possível o conhecimento e usufruto dos bens intelectuais do centro. Nessa perspectiva, tomar para si a reflexão dos dilemas gerados pelos processos de homogeneização, em conflito com os anseios de crítica e diferenciação local, significa estar no centro de um difícil impasse. Um dos exemplos desse impasse está no confronto do intelectual com a expansão urbana, uma das formas de fixar-se o cenário moderno.

O jovem Lima Barreto parece seduzido pela sereia da ordem que anuncia a modernização como forma de organizar as descontinuidades da vida urbana: almeja participar de um projeto do desvio do rio Paraíba para a baía da Guanabara, pois assim a cidade, como acontecia às capitais européias, ficaria à margem de um rio. As dificuldades econômicas, por que passava o escritor, podem, talvez, explicar o desejo de participar da comissão de tal projeto, como expressa em carta ao amigo Otávio Inglês de Sousa, que estagiava nos Estados Unidos.

O Rio, como mais ou menos deves adivinhar, continua na senda do progresso,e velozmente ! O governo, conhecendo que é uma falta grave à nossa cidade, a falta de um rio que a corte, como acontece em Paris, Londres, com as primeiras capitais européias, enfim, cujo efeito estético ninguém discute, pretende desviar o curso do Paraíba para a nossa baía. Os estudos ainda não estão feitos; mas a comissão está indicada e se fala nas indenizações. Escusado é dizer-te que ambiciono um lugar na sobredita comissão[4].

A avaliação desses intelectuais é, portanto, complexa porque, traduziam a diferença e o singular na busca de uma identidade para apresentar à cultura Ocidental, ao mesmo tempo em que eram entusiastas colaboradores da modernização, o que parecia aproximá-los de seus contemporâneos europeus. No entanto, no caso específico de Lima Barreto, sua percepção crítica acerca da dramatização ideológica das relações sociais será afinada para superar as armadilhas da homogeneização. Suas cartas expressam, gradativamente, a suspeita em relação aos projetos de ordenação linear da história e essa suspeita tornar-se-á constante em seus textos ficcionais.

Um exemplo interessante aparece na correspondência com Monteiro Lobato, onde se destaca o reconhecimento da não significância dos exacerbados sentimentos nacionalistas ou patrióticos, especialmente num contexto em que a hibridez possui um longo trajeto.

O que acho é que rescendes muito a patriotismo e pretendes criar de assentada muitas coisas nestes Brasis. Pode ser... Uma coisa, porém, eu te observo: é que uma terra tão antiga como a nossa (sabes bem a que parte me refiro), onde não vestígios de civilizações passadas, por mais rudimentares que sejam; onde o achado de um fóssil é mais precioso do que o diamante, parece estar fadada a não criar nada de seu.[5]

A ambigüidade e a tensão caracterizam o lugar do intelectual e a trajetória do autor de Policarpo Quaresma não poderia ser diferente. Se, por um lado, o jovem escritor em 1906 aprova o desvio do curso de um rio para a modernização da cidade, por outro, realiza críticas que se caracterizam como uma visão anticolonial, contrária às assimetrias generalizadoras entre as formas culturais européias e a dos países periféricos. Em carta ao sociólogo francês Célestin Bouglé (1870-1940), discípulo de Durkheim e professor de Sociologia na Sorbonne, Lima Barreto contesta “os juízos falsos com que o mundo civilizado envolve os homens de cor”.

Ao ler seu belo livro, observei que o senhor está a par das coisas da Índia e pouco sabe sobre os mulatos do Brasil. Nas letras brasileiras, florescentes, os mulatos ocuparam lugar de destaque. O maior poeta nacional Gonçalves Dias, era mulato; o mais erudito dos nossos músicos, espécie de Palestrina, José Maurício, era mulato; os grandes nomes atuais da nossa literatura - Olavo Bilac, Machado de Assis e Coelho Neto - são mulatos[6].

Ao expor sua crítica às distorções mecânicas e precipitadas, que analisam da mesma forma a Índia e o Brasil, o escritor dá o tom de seu perfil de intelectual: crítico das generalizações e fanatismos, defensor da heterogeneidade e da hibridação como características inerentes à nossa formação social. Realiza, de fato, um percurso de “Policarpo”às avessas - reconhece que a cultura ganha, e não perde, em comunicação e conhecimento quando não atrelada exclusivamente a seu território.

Entre os dilemas agravados pela modernização, encontram-se os temas relativos à influência norte-americana sobre a cultura brasileira. Discutia-se, em torno disso, o modo como as elites lidavam com a intersecção de diferentes temporalidades históricas para elaborar a integração a um projeto global. Dito de outra forma, refletiam os escritores sobre como tornar compatível a experiência internacional de intelectual com as tarefas que lhes apresentava a sociedade brasileira em desenvolvimento. A Correspondência registra o diálogo entre Oliveira Lima e Lima Barreto, nessa direção.

A minha tenção era perguntar-lhe, ao senhor, mais esclarecido e inteligente do que eu, mais culto e mais viajado do que eu, conhecendo bem a evolução das idéias e a sua transformação em sentimentos, a ditar atos quase automáticos - se eu, homem de cor, mulato, etc., posso e devo concorrer de alguma forma para reforçar a influência ou o predomínio, no Brasil, dos Estados Unidos; e também, se não é minha obrigação de modesto homem da pena combater de todas as maneiras essa influência [7]

A resposta de Oliveira Lima esclarece-nos o teor da discussão: em nome de uma equivocada democracia racial como saída para as desigualdades sociais no Brasil, defende uma concepção de pan-americanismo que anuncia uma igualdade fundada numa concepção vertical e bipolar de poder, contestada por Lima Barreto que aponta a obliqüidade inerente aos dilemas culturais.

As cartas, também, polemizam acerca de um complexo sentido de ‘pátria’, a partir de comentários sobre a conferência do diretor e jornalista do Rio-Jornal, Georgino Avelino, pronunciada na Biblioteca Nacional com o título “A Necessidade das Pátrias”, em 02 de setembro de 1916. Ao questionar o teor da conferência, Lima Barreto historiciza e apresenta os frágeis alicerces que sustentam a noção de ‘pátria’.

A idéia de Pátria é puramente religiosa; tu sabes como ela nasceu na Grécia e em Roma e porque se ligou ao solo. o teu Fustel de Coulanges e tu verás como eu tenho razão. Com o tempo, apagou-se de todo a memória da origem desse sentimento (...) O meio não justifica a pátria. (...) As nossas atuais pátrias não têm outra base senão na política que, desde a Renascença, tem determinado e regulado toda a nossa atividade[8].

Lima Barreto não se deixa envolver pelas armadilhas nacionalistas, tão em voga à sua época, que assistiu à fortificação de um sentimento nacionalista, para controle social, em nome da ilusão de ‘pátria’, defendida em narrativas nas quais fala-se do tempo histórico numa linguagem de irreversibilidade, em séries cronológicas e lineares, que sintetizam progresso e evolução. A resposta do escritor, entretanto, instaura a dúvida no lugar das propostas afirmativas sobre a idéia de tempo, formador da nação: um tempo homogêneo que abafa, num estranho esquecimento, a violência envolvida nos escritos justificativos de civilização.

A complexidade desse papel do intelectual como intérprete da cultura, em intersecção com a tradição Ocidental, pode ser sintetizada no desabafo do escritor, em carta ao amigo Antonio Noronha Santos, que estava em Paris, com data de 18 de maio de 1905: “Quando penso em Paris, Antonio, tenho pesadelos de Raskólnikoff[9].

Dividida, mas criativa, angustiada e crítica, tensa, enfim, - como o personagem de Dostoiévsky - configura-se a interlocução do intelectual Lima Barreto com os dilemas culturais, significativos à sua época, e que, ainda nos afligem.

Se a Correspondência permite-nos acompanhar, de perto, o debate entre intelectuais, é na ficção que se constrói, intensa e sutilmente, uma rede de diálogo entre Lima Barreto e seus contemporâneos quando reconhecem que produzir literatura brasileira implica tratar da nacionalidade e procuram, por isso, pensar intensamente o país, mas num compromisso às avessas com o nacional.

Ao ampliar a reflexão sobre a linguagem, a ciência, o homem, os seus textos encontram os bastidores da invenção do Brasil: a inumanidade inerente aos conceitos de verdade única das narrativas do historicismo e do ufanismo cientificista. Na mesma medida, quando se recusam a,somente, representar o real e expõem a fragilidade da representação, tornam o texto literário artisticamente mais elaborado e coerente à fragmentação do homem e seu cotidiano, feito de fracassos, reformas e promessas de um futuro melhor.

A tensão desequilibradora contida nas obras, corrói a tradição literária e cultural, mas reinventa a literatura porque deixa, sob suspeita, seu material de composição: a linguagem.

 

2. PALAVRA, PAÍS, PAISAGEM DILEMAS DA LITERATURA

Um dos signos mais fortes da invenção do Brasil pode ser percebido na construção da paisagem . Encontramos na cultura brasileira o registro por meio da memória coletiva de uma rede de códigos culturais para a percepção da paisagem, uma tradição construída por um vasto conjunto de lembranças, mitos e lendas que, além de acompanhar extensos períodos da história social, também molda instituições e valores.

Sob esse aspecto, paisagem constitui um lugar de apropriação visual e um foco para a formação de identidade, o que supera a concepção estética de gêneros fixos (sublime, pitoresco, pastoral) da literatura, pintura ou fotografia e lugares considerados objeto de interpretação visual e meramente contemplativa. Compreendida como uma cena natural, mediada pela cultura, a paisagem revela-se um meio de troca no qual confluem uma formação histórica particular, e seus valores, em relação à tradição ocidental e suas inter-relações.

Imagens como a da terra de fertilidade ímpar, com árvores de copas altíssimas, carregadas de saborosos frutos, numa eterna primavera ao ritmo alegre dos cantares de pássaros de mil cores direcionaram os primeiros olhares para o Novo Mundo. Apesar de atenuantes, expressos nos documentos escritos, os colonizadores incorporaram o sentido de milagre à natureza e, debaixo do equador, o extraordinário tornou-se a regra.

A convenção romântica também ensinou ao homem brasileiro a ver a terra rica, exuberante, dadivosa; uma paisagem que paralisa a vida, na construção do país homogêneo, unívoco, linear, na palavra ambígua da ficção. Arrancar a imagem balsâmica, paradisíaca, alienante da paisagem incrustada no fluxo contínuo da tradição constitui o enorme desafio para poetas e romancistas, do início do século.

é bastante conhecida a incursão pela cultura brasileira feita pelo mais famoso personagem de Lima Barreto, o “Policarpo Quaresma”, que empreende uma viagem em direção à riqueza e exuberância da terra simbolizada, no romance, pelas aventuras do personagem num sítio, ironicamente chamado de “Sossego”, local, segundo o narrador, quenão era feio, mas não era belo.” “Quaresma”, autodidata e muito lido e sabido em cousas brasileiras, às imagens paradisíacas de referência à terra acrescenta os recursos cientificistas de interpretação e análise. Integrou às sólidas noções de Botânica, Mineralogia, Geologia e Zoologia o aparato técnico e instrumental necessários para comprovar a prodigalidade da terra.

Será necessária a visita de Olga - a afilhada do protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma ao sítioSossego” – com sua lucidez, para provocar uma reflexão crítica primeiro junto ao leitor e, depois, iluminar as noções do padrinho sobre pitoresco, terra, homem e trabalho no campo, auxiliando sua aquisição de conhecimento crítico. O que mais impressionou Olga foi o “ar abatido da gente pobre” e o espetáculo não animador de pobreza, tristeza e doença. No lugar de roceiros alegres, felizes e saudáveis a urbana afilhada encontrou sapês sinistros, casas soturnas de habitantes sorumbáticos, acusados de preguiçosos ou indolentes.

O mais interessante é o recurso do autor para tratar do tema, sem panfletarismo ou didatismo, questiona - através da personagem feminina Olga - instaura a dúvida, faz interlocução com o leitor, transferindo-lhe a pergunta: “Seria a terra? Que seria?” ou, ainda, “Por que esse acaparamento, esses latifúndios inúteis e improdutivos?”[10]. Esses mesmos questionamentos da personagem propiciam uma interlocução com os escritores contemporâneos a Lima Barreto.

A imagem do homem do campo forjada pelo cientificismo projetou a miséria e a doença sobre o indivíduo, sem relacioná-lo às condições sociais : seu abandono, desqualificação e, portanto, a ausência de perspectivas explicavam-se por fundamentos biológicos e raciais. Logo, se o romântico silencia o homem no cenário paradisíaco, o naturalismo culpa-o pelas ruínas do paraíso. Apesar de protestos de intelectuais como Manoel Bonfim que alertava “ é verdadeiramente fértil, a terra semeada pelo trabalho inteligente[11] , ao resíduo romântico de interpretação da terra e do homem foram acrescidos os dados cientificistas. Justificava-se, dessa forma, o alijamento de enorme contingente de brasileiros, ditos desqualificados tecnicamente, da construção da nação progressista e transfere-se tal poder aos imigrantes.

A síntese desse processo pode ser vista na bela imagem elaborada por Monteiro Lobato em Urupês, que à fantástica natureza insere desânimo, lassidão infinita, solidão, dor, após uma inteligente e criativa seqüência de episódios irônicos que esvaziam os fundamentos naturalistas sobre terra e homem.

No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. ele no meio de tanta vida, não vive... [12]

Interessado em uma releitura da paisagem e, conseqüentemente, do homem Euclides da Cunha viaja pelo país para identificar a imagem do brasileiro, perdido num paraíso muito dissipado, e o escritor registra que em seu percurso a maior ruína encontrada foi o próprio homem - marcado por profundos sulcos de abandono, sob asas de paternalismo. Este sim corroía-lhe as forças, tornando-o dependente e desqualificado.

Há, no entanto, no romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto, um personagem pouco conhecido, intitulado pelo narrador de “historiador artista”, referência curiosa para uma época que, sob a inspiração de Nietzsche, questiona-se sobre o excesso de história, capaz de paralisar a faculdade plástica da vida. Tanto os aspectos que definem o personagem, quanto a sua concepção de história e cultura, movimentam-se do individual ao social, do particular ao geral, ligam a memória individual à sociedade em imagens simultâneas de passado e presente, integrando o fluxo do tempo num conjunto de experiência acumulada.

Na forma da narrativa do romance do “historiador artista Gonzaga de Sá” é o olhar, de narrador e personagem, quem direciona, num constante vaivém espacial e temporal, os temas narrados; no conteúdo da narrativa nega-se o tratamento global e ordenado na apresentação do tema e privilegia-se o instante em pequenos acontecimentos cotidianos.

Serão, portanto, os passeios para contemplar a paisagem urbana e comentar a beleza da natureza, as longas conversas à mesa do jantar, o olhar que acompanha o movimento das nuvens, da fumaça de um cigarro, das botas de um soldado na pompa de um desfile militar, o foco da narrativa guiada porAugusto Machado”, o narrador, que se desvia da grandiosidade dos eventos para os insignificantes detalhes do cotidiano. Assim, de uma cena banal de observação de um jardim desenvolve-se uma profunda reflexão sobre cultura, arte, literatura: esta, promovendo ao indivíduo a consciência de si mesmo e da realidade que o cerca.

A esse tempo, passava, olhando tudo com aquele olhar que os guias uniformizaram, um bando de ingleses, carregando ramos de arbustos - vis folhas que um jequitibá não contempla! Tive ímpetos de exclamar: doidos! Pensam que levam o tumulto luxuriante da mata nessa folhagem de jardim! Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas, o clima, o eito, para que possam sentir nas baixas células do organismo a beleza da senhora - desordenada e delirante natureza do trópico de Capricórnio!... E vão-se, que isto é meu![13]

Se, por um lado, a reflexão do narrador Augusto Machado revela o conteúdo da estereotipia cultural, por outro, supera a visão maniqueísta para o estrangeiro numa clara afirmação de que a cultura brasileira está imersa no movimento do mundo, e suas influências, demonstrando, especialmente, o intercâmbio de valores e idéias, através da arte, importante para o conhecimento e autoconhecimento. Mostra-nos o texto literário o duplo processo, na ordem do imaginário, que literatura e história constroem juntas, em torna da palavra que expressa a idéia que fazemos de nós mesmos, do país, da paisagem.

Logo me recordei, porém, dos meus autores - de Taine, de Renan, de M. Barrès, de France, de Swift, e Flaubert - todos de , mais ou menos da terra daquela gente! Lembrei-me gratamente de que alguns deles me deram a sagrada sabedoria de me conhecer a mim mesmo, de poder assistir ao raro espetáculo das minhas emoções e dos meus pensamentos[14].

Nessa perspectiva, tanto os poemas como a narrativa desses autores, exigirão do leitor uma aprendizagem para lidar com a insólita criação forjada no cosmopolitismo de sentidos e linguagens. Um poeta como Augusto dos Anjos, a exemplo, pertence ao ideário da estética moderna que, desde Baudelaire, compreende todo o mundo visível, apenas, como um reservatório de imagens e de signos aos quais a imaginação deverá atribuir um lugar e um valor relativos. Na mesma medida em que abre a sensibilidade para captar a beleza extravagante do inorgânico, das vozes subterrâneas, de doentes, prostitutas, bêbados, do homem na sua pequenez diante do cosmos, estabelece um léxico violente e banal, concreto e compacto de expressões como cuspo, escarro, tosse, bacia, escarradeira, ferro, esterquilínio, numa inserção, de termos prosaicos, que dialoga com o melhor da tradição poética brasileira, aquela que, com o romântico Álvares de Azevedo incorporou imagens do cotidiano na poesia, através da irreverência e coloquialismo. É importante, para o poeta, a rejeição à sintaxe e vocabulário convencionais, porque sugerem exaustão, sofrimento, decrepitude (e isto é revelado ao leitor) para que a “idéia” “não esbarre no mulambo da língua paralítica”[15]. A linguagem da tradição é a das sombras, alucinações ou de animais a “ganir incompreendidos verbos” no duelo secreto “Entre a ânsia de um vocábulo completo / E uma expressão que não chegou à língua.”[16]

 Um dos traços essenciais da modernidade está na concepção de arte vista como alternativa de conhecimento e libertação, mas expressa pela melancolia não redime o poeta e inquieta o leitor. Essa “dor estética que “consiste essencialmente na alegria” é, simultaneamente, motivo de crescimento libertador e dilaceração - do artista e leitor - explicando os gemidos, lamentos e mágoas nos poemas de Augusto dos Anjos, num processo intenso de consciência crítica e auto-referencialidade.

Diabo! Não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

Vou amarrar um pano na cabeça,

Molhar a minha fronte com vinagre.

 

Mas tudo é ilusão de minha parte!

Quem sabe se não é porque não saio

Desde que 6a. feira, 3 de Maio,

Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?![17]

Estabelece-se com o leitor o acordo tácito de fascínio e choque, numa relação paradoxal com as verdades estabelecidas: a musicalidade encantatória dos seus versos, a estruturação em decassílabos e a singularidade dos termos científicos realizam uma aproximação com aquilo que o público intelectualizado acreditava ser um misto de lirismo e termos do conhecimento cientificista dominante (o haeckelianismo e evolucionismo). A junção de tais aspectos atrai o leitor, organiza-lhe o quadro de expectativas antes de introduzir o dado perturbador, deformante, anulando, ironicamente, o sentido do provável ou do esperado. Para o artista, é essencial renovar os códigos literários, lingüísticos, culturais falando, todavia, de dentro desses próprios códigos, a corroer-lhes a unidade para fazer brotar uma forma crítica, fragmentária, instigante, não necessariamente transformadora, nem certamente niilista. Apenas o paradoxo a caracteriza !

Essa contradição aponta o fascínio do artista pela consciência em desenvolvimento, no âmbito estético, psicológico ou histórico e permite um diálogo com as reflexões de Mário de Andrade, em Prefácio Interessantíssimo, no sentido de queescrever arte moderna não implica somente a apresentação de problemas figurativos, mas crucialmente estéticos, tais como a elaboração de estruturas, o uso da linguagem e o papel do artista como propõe a ficção de Lima Barreto que realiza uma sofisticada reflexão sobre a natureza da ficção na literatura, na cultura, na história humana.

No entanto, esse mesmo leitor, percebe nas obras de Lima Barreto, Augusto dos Anjos, M.Lobato, Euclides da Cunha um diálogo com a tradição literária, romântica e naturalista, para discutir o papel da literatura, do artista, e, simultaneamente, incutir tensão nos sentidos de brasilidade. Quer no conjunto de temas tais como o pobre, o índio, o negro, a barbárie do homem civilizado, a cultura popular, quer, especialmente, na forma literária que, ao dobrar-se sobre si mesma, expõe suas fissuras, no desejo de manter tudo sob suspeita!

Ao lidar com a tradição, em Contrastes e Confrontos, Euclides da Cunha critica nos intelectuais o ‘exílio subjetivo que ainda procura “nas velhas páginas de Saint-Hilaire...notícias do Brasil” . Sugere, ainda, um estado de supressão temporária da historicidade, das ocupações e valores estabelecidos pela memória, de perfil passivo, para a leitura do homem, da terra, do país. Apresenta, na sua argumentação, o exemplo da escrita sedimentada por camadas de estereótipos - levada a termo pela Sociologia de seu tempo - que, misturando Hegel com Cervantes, identifica o brasileiro como “ povo pródigo, doudivanas, que anda na história a esperdiçar uma herança[18].

O escritor produz uma reflexão sobre o quanto a desmedida da história prejudica o vivo, o presente, a possibilidade do novo. A radicalidade desta tensão história-presente efetiva-se na modernidade e é inseparável da desconstrução da tradição. Suas reflexões indicam que se, de um lado, a modernidade tem uma relação radicalmente nova com a linguagem, por outro, acentua a tensão entre história e presente e redimensiona a memória, a partir dos impasses entre esquecer e lembrar. O que esquecer e o que lembrar, no âmbito da tradição, são as questões desses intelectuais, marcadas por uma lucidez crítica para trazê-las sem o ressentimento histórico, mas com o viés da memória criadora.

Lima Barreto e seus contemporâneos reconhecem ser necessário lembrar que a própria Literatura é, em si, histórica, como resultado de um longo processo que deve ser rememorado e, até, comemorado. No entanto, precisam esquecer seus valores instituídos, estabelecendo uma relação profundamente nova com a linguagem, para transmitir o que a tradição, afinal, não recorda, mas a modernidade traz à cena – o conteúdo desumano que reveste o progresso, a fragilidade de suas certezas e a dimensão da dor, silenciada pela ordem!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BONFIM, M.América Latina:males de origem. 2ª ed. Rio de Janeiro: A Noite, 1939.

CUNHA, Euclides da. Contrastes e Confrontos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

FIGUEIREDO, C.L.N de. Trincheiras de sonho: ficção e cultura em Lima Barreto. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

LIMA BARRETO,A .H. de. Obras de Lima Barreto. São Paulo: Brasiliense, 1956. 17 v.

LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1967.

NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas. Trad. de Lemos de Azevedo. Lisboa, São Paulo: Martins Fontes, [s/d.].


 

[1] ANJOS, A. Poema negro. Obra completa.Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 286.

[2] LIMA BARRETO, A .H. de. Correspondência.II. São Paulo, Brasiliense,1956,pp.45-46. (Todas as demais obras do escritor, a serem citadas, fazem parte da mesma edição, motivo pelo qual apenas indicaremos título e páginas.)

[3] Idem, Correspondência II, p.136.

[4] Idem, Correspondência I, p. 146.

[5] Idem, Correspondência,II, p. 74.

[6] Idem, Correspondência, II,p.158.

[7] Idem, Correspondência II, p. 39.

[8] Idem, Correspondência II, p. 280.

[9] Idem, Correspondência I,p. 77.

[10] Idem, Triste fim de Policarpo Quaresma, p.160.

[11] BONFIM, M. América Latina: males de origem. 2.ed. Rio de Janeiro, A Noite, 1939, p. 210.

[12] LOBATO,M. Urupês. São Paulo, Brasiliense, 1967,pp.291-292.

[13] LIMA BARRETO, A .H. de. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.,p.42.

[14] Idem, ibidem.

[15] ANJOS, A . dos. Obra completa, p.204.

[16] Idem, Obra completa, p.215.

[17] Idem, Obra completa, p.300.

[18] CUNHA, E. Contrastes e confrontos. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p. 158