PALAVRAS MAL DITAS: FILOLOGIA E PRECONCEITO

Para o Shmil

Profª Drª Jane Bichmacher de Glasman

Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica - USP, Professora Adjunta, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos -UERJ, escritora.

Introdução: A viagem das palavras

Permita-me iniciar com a epígrafe de minha tese de Doutorado, citando Bialik (1979), o poeta nacional hebraico, em Lo revelado y lo encubierto en la lenguaje:

“Os seres humanos esparramam ao vento, premeditada ou inadvertidamente, abundantes palavras em incontáveis combinações, porém são muito poucos os que sabem que aspectos tinham essas palavras em seus dias de grandeza. Algumas chegaram ao mundo depois de uma grande e difícil viagem através das gerações; outras brilharam como relâmpagos e iluminaram repentina e momentaneamente o mundo inteiro, algumas passaram várias transmutações, deixando atrás de si sua estrela e aroma, outras mais serviram de vasilhas para complexos mecanismos de pensamentos profundos e sentimentos exaltados em maravilhosas permutas”.

Um estudo etimológico possibilita a identificação da origem e da evolução das palavras. A filologia permite-nos seguir a trajetória histórica do desenvolvimento de uma língua, estudar sociedades e civilizações através de seu legado escrito. Vários vocábulos da língua portuguesa receberam conotação negativa, devido a processos históricos, sociológicos e culturais, tendo ficado assim perpetuadas no idioma.

Seu uso popular, literário ou na mídia, desvincularam-nos de sua origem semântica, tendo sido usados e consagrados de forma pejorativa e preconceituosa, a despeito da vasta gama de possibilidades sinonímicas.

Alguns exemplos: judeu, judiar, judiação, judiaria, marrano

Os dicionários oferecem-nos uma mostra destas possibilidades, através da polissemia. Utilizo a seguir Houaiss (2001) e Aurélio (Ferreira, 1986), em paralelo:

Houaiss Aurélio
Judeu adj. 1. relativo à antiga tribo de Judá ou indivíduo dessa tribo 2. relativo ao antigo reino hebreu de Judá (c 930-586 aC), na Palestina meridional, ou o que é seu natural ou habitante 3. Relativo à Judéia, região meridional da Palestina (sob o domínio persa, helênico ou romano) ou o que é seu natural ou habitante 4. relativo a ou descendente do povo originado dessa tribo, desse reino ou dessa região; hebreu, israelita 5. individuo nascido de mãe judia, ou de pai e mãe judeus; israelita 6. que ou aquele que segue a religião e/ou a tradição judaica; hebreu, israelita 7. judaico 8. individuo nômade;cigano9.Pej Pessoa usurária, avarenta 10.AM o natural ou habitante da Síria 11. nos trabalhos de mineração, feixe de capim, com pedras dentro, com que se formam tapumes 12. espécie de bolo de milho 13. MG espécie de virado de frango ao molho pardo, lombo de porco, arroz ou angu 14. MG ceia, refeição da noite15. betara16. SC alcunha dada pelos conservadores, ditos cristãos, aos liberais. Judeu do lat judaeu Adj.1.Da ou pertencente ou relativo à Judéia (Ásia).2.De ou pertencente ou relativo a Israel (Ásia): israelense. 3. Judaico 4. Natural ou habitante da Judéia. 5. Natural ou habitante de Israel; israelense. 6. Aquele que segue a religião judaica. 7. Pop. Indivíduo mau, avarento, usurário. 8. Espécie de virado ou tutu de feijão. 9. Bras.Espécie de bolo de milho. 10. Bras AM. Pop Sírio (2).11. Bras, MG cigano (1).12. Bras, MG Ceia (1): "As negras fazem para nós um judeu de frangos de molho pardo, lombo de porco, arroz e angu." (Helena Morley, Minha Vida de Menina, p. 32.) 13. Bras, SCAlcunha que os conservadores, ditos cristãos, davam aos liberais. 14. Bras. papa-terra (3). (fem. (nas acep. 1 a 7 e (bras.) 10 e 11): judia.] .
Judiar 1.judaizar adotar práticas judaicas 2. t.i. (1789) tratar com escárnio; zombar j. com a infelicidade alheia 3. t.i(1881) tratar mal, física ou moralmente; atormentar, maltratar: tem uma alma perversa, judia dos animais judiava dele provocando-lhe ciúmes Judiar. De judeu+i+ar2, 'tratar como antigamen­te se tratavam os judeus': escarnecer,maltratarvt.i.1.Escarnecer, mofar, zombar: judiar com alguém. 2. fazer judiaria2;fazer sofrer;atormentar, maltratar: judiar dos animais;
Judiação ato de judiar, de fazer de alguém alvo de escárnio ou de maus-tratos; judiaria etim judiar + -ção; ver judeu Judiação. S. f. Bras. V. judiaria2.
Judiaria s.f. (1529 Atenr 86) 1. grande número de judeus; judaria 2. bairro de judeus 3. (1858) fig. Ato de zombar de alguém; chacota; judiação, zombaria 4. fig. Ato de maltratar alguém, física ou moralmente; judiação # etim judeu + ária judiaria1. [De judia + -aria.] sf 1. Grande porção de judeus. 2. Bairro destinado aos judeus. judiaria2. [De judiar.] s f. Ato de judiar; maus-tratos; apoquentação. (Sin. Bras.: judiação.]
Marrano adj.s1. na Espanha e em Portugal, designação injuriosa que se dava outrora aos mouros e esp. aos judeus batizados, suspeitos de se conservarem leais ao judaísmo2. imundo, excomungado3. gado de má qualidade 4. porco de engorda, já crescido #etim Marrano (965) porco, cristão novo,designação pejorativa dada na Espanha aos judeus mouros convertidos, suspeitos de se conservarem fiéis às suas religiões por causa da repugnância à carne do porco alimento não permitido pelo judaísmo e islamismo ar Muharam coisa proibida Marrano. [Do esp. marrano] Adi. e s. m. 1. Diz-se de, ou designação injuriosa dada outrora aos mouros e judeus. 2. Diz-se de ou indivíduo excomungado, sujo, imundo, porco. 3. Bras RS. Diz-se de ou gado ruim.

A discussão sobre o que é “judeu”, apenas em termos filológicos, seria de tamanho incomensurável. Cabe, portanto, neste espaço limitado, somente uma crítica à definição de Aurélio, ao confundir, incorretamente, judeu com israelense. Indubitavelmente, judeu NÃO é sinônimo de israelense!

Acresça-se a surpreendente possibilidade polissêmica das definições 8 a 16 de Houaiss e das de 8 a 14 de Aurélio (sendo a 9 de Houaiss, correspondente ao uso pejorativo, como o 7 de Aurélio).

Assim, “judeu” é identificado no imaginário popular e perpetuado no vernáculo e nos dicionários, como “nômade, avarento, usurário, mau”. Nosso espaço, neste trabalho, não permite esclarecer as origens medievais da exclusão sócio-econômica dos judeus no mundo cristão, levando muitos, por falta de opção, a dedicarem-se a atividades de câmbio, comércio e empréstimo (origem das atuais estruturas bancárias) e suas constantes andanças devidas à impossibilidade de sua fixação como judeus dentro das estruturas feudais estabelecidas, seja para sua sobrevivência econômica, ou - principalmente - devido às suas constantes expulsões do mundo europeu medieval.

As outras definições citadas contêm um ambíguo significado relativo à comida, que abrange o legado de marranos e de judeus, cujas perseguições e expulsões, deveram-se, em grande parte, aos famigerados ‘libelos de sangue’ e ‘acusações de assassinatos rituais’: judeus eram acusados de, entre outras práticas macabras, matar crianças cristãs para fazer matzot (pães ázimos), sendo que uma regra básica da kashrut (leis alimentares judaicas) proíbe a ingestão de sangue, além do consumo de animais como o porco (como observamos em marrano, com o mesmo caráter antitético). Chega a ser tragicômico que as definições transformem ‘judeu’ em “refeição completa”: prato típico, sobremesa e ceia!

As definições dos verbetes judiar, judiação e judiaria, demonstram um percurso histórico subliminar, transformando os judeus de vítimas em algozes - tendo assim se fixado e permanecido no imaginário vocabular do povo.

Analisando os vocábulos, seguindo seu percurso

Segundo Lesser (1985 p.37):

“No século dezenove e principio do século vinte, a maioria dos brasileiros sabia pouco a respeito dos judeus; a maior parte dos judeus sabia igualmente pouco sobre o Brasil. Se quaisquer imagens existiam entre qualquer desses grupos, elas não resultavam de contato humano; não havia ocorrido nenhuma imigração judaica significativa para o Brasil desde a Inquisição, quando os judeus tiveram que fugir da península Ibérica. Esses judeus, denominados de forma variada como judaizantes, marranos, conversos e cristãos-novos, chegaram em quantidade reduzida, para escapar das perseguições econômicas, sociais e religiosas da Igreja e da Coroa. Sua presença, contudo, jamais incentivou uma imigração judaica em larga escala para o Brasil colonial, mesmo apesar de os cristãos-novos poderem ter constituído 20% da população branca da capital colonial de Salvador, na Bahia”.

O termo “marrano” possui uma etimologia diversificada e antitética, como já foi mencionado. Unterman (1992, p.166), conceitua como “nome em espanhol para judeus convertidos ao cristianismo que se mantiveram secretamente ligados ao judaísmo. A palavra tem conotação pejorativa geralmente aplicada a todos os cripto-judeus, particularmente aos de origem ibérica. Em 1391 houve uma maciça conversão forçada de judeus espanhóis, mas a maioria dos convertidos conservou sua fé”.

Cordeiro (1994) afirma que a tradução por “porco” em espanhol tornou-se secundária diante das várias interpretações existentes na histografia do marranismo.

“Dicionários rabínicos hebraicos como o de J. Buxdorf (1640) e de Schindler (1653), assim como os mais atuais, explicam o termo como ‘consagrar a Deus, destruir, anatematizar’, com seus derivados, indicando para o árabe harama, traduzível por ‘proibir, declarar sagrado ou inviolável’”.

Também é curioso que o termo tem similares no siríaco e no etiópico. O professor Zanolini, em seu livro Lexicon Chaldaicum et Rabbinicum comenta a palavra mar, o doutor nas academias da Babilônia. “Em sua origem significa o termo siríaco (aramaico) maranath (o senhor veio), pelo qual se designa uma excomunhão de condenação muito grave, o qual leva o excomungado a ser expulso de uma sociedade e ao qual se reserva unicamente a punição divina. Queriam dizer que tal era o crime de alguém, que nesta vida, nenhum castigo ou suplício era suficiente para poder expiá-lo”.

Maeso (1977) comenta que a fórmula de excomunhão “maranata”, embora sem comprovação lingüística, pode mesmo ter sido usada pelos cristãos contra os judeus, vítima de intenso ódio dos povos espanhóis no final do século XIV e durante o século seguinte, ou seja, cerca de um século antes do decreto de expulsão dos judeus de Castela, em 1492. Graetz, em sua História dos judeus, completa essa teoria dizendo que a palavra maranata é de origem neo-hebraica, de maharam at (maharamt, em sua forma aramaica), ou seja, “você foi excomungado”, o que corresponde ao anátema, adaptado ao grego pelos primeiros cristãos. Nessa linha, o judeu espanhol e português (sefaradi) recebeu a designação de marrano, latinizando o termo.

Outro historiador a estudar o vocábulo foi Cecil Roth:

“A palavra marrano é um velho termo espanhol que data do início da Idade Média e significa porco. Aplicada aos recém-convertidos, a princípio ironicamente devido à aversão judaica `a carne de porco do citado animal, tornou-se enfim um termo geral de repúdio, que no século XVI se estendeu e passou a todas as línguas da Europa ocidental. A designação expressa a profundidade do ódio que o espanhol comum sentia pelos conversos com quem conviviam. Seu uso constante e cotidiano, carregado de preconceito, turvou o significado original do vocábulo”.

Lipiner (1977), define em Santa Inquisição: terror e linguagem:

“Marranos: As derivações mais remotas e mais aceitáveis sugerem a origem hebraica ou aramaica do termo. Mumar: converso, apóstata. Da raiz hebraica mumar, acrescida do sufixo castelhano ano derivou a forma composta mumrrano, abreviado: Marrano. Tratar-se-ia, pois de um vocábulo hebraico acomodado às línguas ibéricas. Marit-áyin: aparência, ou seja, cristão apenas na aparência. Mar-anús: homem batizado à força. Mumar-anus: convertido à força. Contração dos dois termos hebraicos, mediante a eliminação da primeira sílaba”.

Convém acrescentar que mar, em hebraico, significa amargo, amargurado e anús, violentado, forçado. Conquanto a filologia permite-nos observar o percurso dos vocábulos, estamos lidando com o percurso histórico de um povo. Ou mais, haja vista que envolve os mouros, que também eram chamados de marranos!

Utilizando as palavras de Samuel Szerman, Diretor Cultural da ACIB e da Federação Israelita do Centro-Oeste (o Shmil a quem dedico este trabalho):

“Vamos à analise dos termos judiar, judiação e judiaria. O primeiro, como poucos sabem, aí incluindo os próprios judeus, significava "maltratar os judeus". Era um verbo intransitivo. O objeto direto estava subentendido. Hoje, judiar, pela semelhança do vocábulo com judeu, judia, Judas e Judá, cria uma natural associação de idéias, considerando o judeu como o agente da crueldade. Curiosidade: Tornou-se verbo transitivo indireto. "Judiaram dele". É claro que, se o verbo pede um complemento na afirmação, está subentendido o agente.

A palavra já está tão arraigada no uso popular que há quem nem faça a associação. Entretanto, a ofensa aos judeus permanece. É subliminar. Contribui enormemente para incrementar o anti-semitismo.

Judiação pede menos explicação. É um derivado gramaticalmente correto de judiar. Gramaticalmente. Politicamente, NÃO!

Judiaria: Outra forma gramaticalmente correta que pode significar um sinônimo de judiação (...) Pouquíssimas pessoas, judias ou não, têm ciência que Judiaria era o nome dado ao bairro Judeu, tal como Mouraria era o dos mouros.

(...)a discussão sobre o sentido pejorativo ou não dos termos na berlinda não é uma questão doutrinária ou religiosa. É do idioma. É gramatical. (...) Creio que, com esta exposição, consegui explicar minha luta que reconheço quixotesca contra o uso de tais ofensas subliminares. Não tenho a pretensão de elidir do vocabulário popular esses verdadeiros palavrões. Quero, sim, suprimí-los dos principais meios de comunicação de massa. Vários jornais de elevado conceito proíbem este uso em suas páginas. Fernando Levisky, Z'L, grande brasileiro, grande judeu, grande advogado e, também, vereador no Rio de Janeiro, fez uma campanha que foi vitoriosa para eliminar termos pejorativos e/ou injuriosos contra grupos étnicos, profissionais, regionais, religiosos, etc. Se muitos de nós vigiássemos, reagindo imediatamente a esta verdadeira provocação, ainda que, às vezes, inconsciente, eliminaríamos o mau uso de tais palavras do rádio e da televisão. Finalizo dizendo que as palavras valem pelo seu sentido atual, e não, pelo histórico ou primitivo. Só se entende o significado anterior em texto da respectiva época”.

Concordo com Szerman, solidária em sua quixotesca luta, como ele mesmo define. Todavia, estando em um foro acadêmico lingüístico deste porte, ouso trazer esta questão ao mesmo, mais uma vez, apresentando propostas de esclarecimento público e de resgate do sentido original, como forma de através da filologia, eliminarmos preconceitos, conferindo-lhe um papel de mudança social positiva.

Conclusão

A linguagem é um organismo vivo, em constante transmutação e evolução. Dicionários refletem sempre posteriormente as mudanças vocabulares. A expressão “politicamente correto” vem se desgastando, tanto por seu uso irrestrito, quanto por efeitos hiperbólicos na conduta lingüística social, gerando distorções. Exemplo: hoje, no Brasil, chamar alguém de “crioulo” de forma pejorativa e discriminatória pode gerar prisão inafiançável, enquanto que matar um indivíduo negro, não necessariamente!

Usando outra expressão em voga, não proponho um “patrulhamento ideológico”, uma “caça às bruxas”-até porque esta também reflete uma perseguição inquisitorial, por ignorância ou política, como no macarthismo americano da década de 50.

Tenho plena consciência da dificuldade de eliminar preconceitos subliminares reforçados durante centenas de anos. Para citar idiomas neolatinos, em italiano utiliza-se o termo “hebraico” para se referir a judeu; em francês - “israelita”. Em português e em espanhol o uso de “judeu” e seus cognatos adquirem tamanho vigor pejorativo e teor discriminatório e preconceituoso devido aos séculos de Inquisição Ibérica e sua terminologia, que poderia ser sinônimo de morte.

Não sei se necessitaremos de mais trezentos anos para erradicar esta postura. Tampouco tenho a ilusão que um trabalho, apresentado em foro acadêmico, seja capaz de fazê-lo, por si, assim como cartas e e-mails criticando o uso indevido e agressivo, especialmente de judiar e judiação na mídia. Mas tenho clara a idéia que NÃO fazê-lo certamente NADA IRÁ MUDAR.

Concluindo, apenas a insistência, o trabalho de formiga, alertando, esclarecendo e demonstrando nosso incômodo, surtirá, a longo prazo, os efeitos sociais desejados.

Referências Bibliográficas

BIALIK, J. N. Lo revelado y lo encubierto en el linguaje. In: Ariel nº 50, Jerusalém, Jerusalém Publishing House, 1979.

CORDEIRO, Hélio Daniel. Os Marranos e a Diáspora Sefaradita. São Paulo: Israel, 1994.

FERREIRA, Aurélio B. de H. Dicionário da Língua Portuguesa. RJ: Nova Fronteira, 1986.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de J: Objetiva, 2001.

LESSER, Jeffrey. O Brasil - a questão judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

LIPINER, Elias. Santa Inquisição: Terror e linguagem. RJ. Documentário, 1977.

MAESO, David. “Etimologia do vocábulo marrano” In:Os Marranos. SP: CEJ, 1977.

SZERMAN, Samuel. Judiar, judiação, judiaria. Texto enviado por e-mail em 20/07/2003.

ROTH, Cecil (ed.) Enciclopédia Judaica. Rio de Janeiro. Tradição, 1967.

UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. RiJ: Zahar, 1992.