PIGUARAS DA CULTURA MESTIÇA

Itana Nogueira Nunes (UNEB, FTC e UFBA)

 

Enquantofenômeno” de natureza literária, o regionalismo, como sabemos, figura nos textos ficcionais brasileiros desde o Romantismo.

No entanto, embora tenhamos notícia do grande número de autores originários das mais diferentes partes do país, que contribuíram para avolumar o montante das obras regionalistas de reconhecido valor documental, apenas apontaremos para esta discussão alguns textos fundamentais na construção do caráter identitário do povo brasileiro.

Na intenção de delinear uma evolução desse regionalismo e de se fazer uma interpretação mais aprofundada da sua aparição nos discursos ficcionais, muitos exegetas da nossa literatura têm se empenhado em produzir conclusões sobre algumas das suas causas e dos seus efeitos. Os resultados destes estudos refletem que a grande diversidade de interpretações e concepções acerca desta significativa manifestação literária é fato merecedor de especial atenção.

Estando incluído neste projeto de esclarecimento sobre tal temática, o crítico baiano David Salles (1948-1986) apresenta, como resultado de seus estudos sobre o regionalismo grapiúna (manifestação considerada como uma das vertentes do regionalismo nordestino), a sua tese de doutoramento Romance e Regionalismo na Saga do Cacau (1982) apontando cinco variantes mais conhecidas, consideradas como conseqüências de uma transformação literária deste regionalismo ao longo da sua trajetória:

Pode-se falar de uma práxis regionalista. Por conseguinte, há vários regionalismos e, pelo menos, cinco variantes regionalistas brasileiras de articulação das formas literárias com a matéria que lhe é própria. Excluída a sua matriz nativista ou indianista de diferenciação, podem ser detectadas, e o foram, as seguintes variantes, a partir de meados do século XIX: a) regionalismo romântico; b) regionalismo realista-naturalista; c) regionalismo “verista”; d) regionalismo “nordestino”, ou de trinta, ou modernista; e) regionalismo contemporâneo, ou metafísico.[1]

Excluindo o regionalismo de fundação empreendido por José de Alencar como categoria à parte, David Salles afirma que cada uma dessas variantes demonstra conter as suas próprias especificidades, muito embora estejam todas elas interligadas por questões intencionais muito próximas e tenham sido originadas de uma mesma família.

Em linhas gerais, o regionalismo brasileiro, pela amplitude das suas manifestações, pelo largo período de sua duração na história literária, assim como pela importante elaboração lingüística, temática e geográfica que resultou numa “revelação” do Brasil aos brasileiros, alcançou um teor qualitativo de grande importância.

No ciclo baiano, a zona cacaueira representada principalmente por Adonias Filho e Jorge Amado apresenta uma produção regionalista de grande significância. Também Euclides Neto ficcionalizou a saga dos trabalhadores e dos proprietários da lavoura do cacau dando continuidade, em alguns aspectos, em alguns aspectos, à obra de Jorge Amado. Iararana é a obra de escritor grapiúna Sosígenes Costa que atribui à região cacaueira a gênese da identidade nacional a partir de uma lenda da Iara.

Junto a estes, outros nomes como os de Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar seriam injustiçados no caso de um esquecimento natural de um ou outro nome. Portanto, sem intentar citar todos, ressaltamos aqui a grande contribuição dada por estes escritores à nossa literatura, não somente àquela de feição regionalista, mas à literatura brasileira como um todo.

Ainda na esteira da produção baiana temos o escritor Herberto Salles, autor de Cascalho, publicado em 1944, que, segundo Sergio Milliet, em nota à terceira edição, é, na literatura, “o primeiro grande romance da região diamantífera da Bahia”, tendo como foco de análise a figura do garimpeiro. O baiano Xavier Marques é reconhecido também como um regionalista de grande destaque, tendo a sua literatura praieira se revelado como o ponto alto da sua produção literária através de Jana e Joel (1899). O sertão, representado por Eurico Alves, em Feira de Santana, também colabora com relevância na construção de uma tradição regionalista na Bahia.     Assim, a participação da baiana no cenário brasileiro soma uma forte representação dos costumes locais ou regionais como documentos vivos da nossa gente, fato que se confirma nas palavras do crítico Adonias Filho no prefácio dos Novos Contos da Região Cacaueira onde diz:

(...) parte de uma literatura com identidade própria, a ficção grapiúna é por demais conhecida para que a expliquemos nas causas e como presença indiscutível na ficção. Isso na verdade seria chover no molhado.[2]

a tradição regionalista gaúcha tem em Apolinário Porto Alegre a fonte maior da sua ficção. Como seu maior herdeiro, destaca-se no regionalismo sulino João Simões Lopes Neto, gaúcho de Pelotas, que viveu sempre em sua província, mesmo numa época em que somente na capital teria o seu merecido reconhecimento como escritor. Em suas histórias elegeu como herói o gaúcho-pobre, o tropeiro, o humilde peão da estância, destacando-se na literatura regionalista como um dos escritores mais populares. Entre as obras de maior destaque, temos o Cancioneiro Guasca (1910) e Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Ao lado deste escritor podemos citar também nomes como, Augusto Meyer (na poesia) e Alcides Maya, entre outros.

Como estas duas vertentes, utilizadas apenas para ilustrar esta multiplicidade de regionalismos, são conhecidas diversas outras manifestações de escritores brasileiros que, em seus textos regionalistas, expressam (muitos com êxito) a essência do nosso povo. Podemos aqui lembrar alguns destes mestres regionalistas, que, “aberta a picada para a construção de uma estrada que daria na consolidação dos valores nacionais do povo brasileiro, souberam, através do seu engenho literário, demonstrar estes espaços históricos, sociais, culturais, ideológicos, étnicos, de forma diferenciada, como: Aluísio Azevedo, Monteiro Lobato, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Adonias Filho, Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa e mais tantos outros. Estes escritores demonstram em suas obras um conhecimento íntimo e pleno do seu povo, não como um saber frio e científico, mas como um saber sensível e artístico essencial à inspiração. Diríamos melhor: cada um deles é o próprio povo brasileiro.

Silviano Santiago, no seu Vale Quanto Pesa, refere-se a estes textos, tanto os que descrevem quanto os que ficcionalizam o território brasileiro e os seus habitantes (ou personagens), utilizando uma “metáfora do farol”, por serem estes vistos como luzes que serviram para clarear os valores sociais, políticos e econômicos do país. Para Santiago:

Ou por serem filhos adotivos, ou por serem filhos de terra desconhecida, se sentiam os brasileiros sem estatuto sócio-econômico definido, em situação amorfa e negativa, portanto. Tudo isso propiciava aos que empunhavam a pena abordar os problemas da identidade, da liderança e da hierarquia.[3]

Retomemos, porém, o regionalismo no seu início.

Nos diz David Salles, em direta concordância com as idéias de Silviano Santiago, que os primeiros textos que descreveram a região do Brasil[4] e os seus habitantes são de origem portuguesa, sendo o primeiro destes a Carta de Pero Vaz de Caminha, onde os valores verdadeiramente indígenas ao invés de serem destacados são recalcados. Daí a idéia de serem os primeiros habitantes do Brasil considerados comotábula rasa oupapel em branco”, onde se poderiam imprimir todos os desejos de crenças e costumes do europeu.

Assim, para que se formasse o que hoje chamamos de identidade nacional foi preciso dedicar esforços, tanto no sentido de “lembrar” (traços da nossa identidade destacados através da valorização de uma paisagem local) quanto no sentido de “esquecer” (qualquer referência que remetesse a uma herança cultural colonialista). Recordando o que interessasse ser recordado e deletando da memória aquilo que não contribuísse para uma história gloriosa, fomos, num conhecido jogo dialético, tentando construir o esboço de uma tradição pré-romântica que assegurasse uma confiabilidade aos intelectuais brasileiros dos períodos subseqüentes, o que significava um tipo de invenção retroativa da literatura brasileira, como quis Antônio Cândido.

Estes aspectos fizeram parte da construção de um processo histórico de onde emergiriam o sentimento nacionalista, de um lado, e a primeira figura representativa da nossa cultura, sob forma de herói nacional, o índio, do outro.

Todavia, marcada pelas trágicas lembranças da colonização, a nossa cultura seguia o seu caminho sem uma delineação clara, ao menos no sentido de uma independência ou de uma liberdade de expressão que permitisse à nossa gente contar a sua própria história. Por conta deste estado de total falta de autonomia é que muitos autores ao longo deste período, o do Romantismo, se mantiveram em posições vacilantes, ora tentando destacar os valores ou as cores locais, ora desviando-se totalmente para a cultura do colonizador, quase sempre em favor de uma tentativa utópica de conciliação de culturas.

Nessa busca de um lugar sob o sol da civilização ocidental, regida pelas nações cultural e economicamente independentes, a vida literária brasileira teve, no Romantismo, alguns intelectuais que tomaram para si o propósito de fundação desta identidade, dentre os quais um de maior destaque se fez indelével na nossa história: José de Alencar. Para Araripe Júnior, Alencar “adivinhou”, como bom charadista que reconhecidamente foi, um passado para a nação brasileira.

A propósito disto, retomemos neste ponto o título deste artigo com o intuito de esclarecer o seu valoroso empréstimo ao texto de Elvya Pereira intitulado Piguara: Alencar e a invenção do Brasil sobre o importante papel do autor de O Guarani no processo de construção identitária nacional. Neste texto, o polêmico escritor, crítico e teórico das nossas letras românticas, é chamado de piguara, vocábulo indígena que significa “guia”, “senhor dos caminhos”, de onde podemos concluir os motivos da utilização de tal termo. É a própria autora quem diz sobre o escritor romântico:

É incontestável o caráter programático de sua obra, sobretudo a vertente indianista, na qual ele avança investido de sua condição de piguara, senhor dos caminhos de uma literatura nacionalista estreitamente vinculada a um projeto cultural de nação emergente.[5]

Assim, para Elvya Pereira,

Alencar vai definir o seu projeto literário nacionalista tendo como pressuposto básico ‘a invenção do passado’. [...] Contrapondo um estado de natureza inspirado, no nível da fábula pela mitologia do povo da floresta, mas inevitavelmente conduzido, no nível do discurso, pela ideologia do colonizador.[6]

Neste projeto literário do escritor romântico é criado nosso maior representante, eleito herói das nossas selvas e da nossa cultura (apesar das adaptações sofridas para que pudesse se transformar em herói), importante elemento fundador da identidade nacional: o índio, protagonizado nas personagens emblemáticas de Peri, Iracema e Ubirajara, respectivamente, expostos aqui na ordem cronológica das suas criações.

A partir do cruzamento deste representante primeiro da nossa gente, cantado e ilustrado em páginas lendárias pertencentes ao seu veio indianista, com o elemento europeu, o branco, Alencar propõe a criação de uma raça, de uma nação essencialmente brasileira.

Para a ensaísta Lúcia Helena, Alencar cria o novocidadão que, primeiramente ficcionalizado na imagem do índio Peri, representa os “sobreviventes das águas turvas das revoluções identitárias” incumbidos de construir o futuro da nova nação:

Suas obras, que surpreendem pela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dão forma e conteúdo à representação do país nascente, buscando construir a memória do cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem. Preside esta empresa a intenção de dizer o que era ser brasileiro no século XIX.

A colônia em que se era o outro, dera lugar ao país que não sabia o que era. Entre esses dois momentos, gente nascera, trabalhara e morrera, com um mal estar semelhante a uma doença crônica(...).[7]

Este estado doentio de que fala Lúcia Helena faz referência ao mal-estar e a melancolia a que são acometidos muitos personagens alencarianos, pela dificuldade de inserção no processo de construção de uma cultura estabelecida, representando, com isso, a angústia do homem romântico.

Em História e Literatura (1999) o escritor Flávio Loureiro Chaves refere-se ao projeto de aquisição da identidade nacional empreendido por Alencar como uma busca de um modelo de herói para a sua pátria. Para ele, através deste modelo o escritor romântico vai destacar não somente no índio, mas no mestiço, no sertanejo, no gaúcho ou no bandeirante, “o novo homem surgido na América cujos atributos essenciais serão a força, a beleza, a coragem, a nobreza, fundidos enfim na solda moral proporcionada pela consciência da liberdade’ ”. [8]

Alencar buscava nestas formas um diferencial para esse homem que pudesse imprimir definitivamente uma marca peculiar para o povo brasileiro.

Para Loureiro, “a súmula do projeto identitário formulado na segunda metade do século XIX” se dá na fase intelectual mais madura de José de Alencar, quando publica Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, por estarem juntas nesta etapa da sua obra política e literatura. Para uma complementação do mito, Alencar reuniu história e literatura no terreno da ficção. Se antes Alencar havia desenhado a nossa literatura, o fez depois com a história e estaria por último acrescentando aspectos da vida política do nosso país concluindo assim o seu projeto.[9]  Com isso o autor aponta O Gaúcho (1870) como o ponto culminante da instauração de uma tradição e de um tipo que fosse ao mesmo tempo brasileiro e americano, regional e nacional, numa relação de complementaridade necessária ao projeto alencariano.   

 Entretanto, não foram estas as únicas empreitadas às quais se propôs Alencar, o representante maior do nosso romantismo. Também crítica e teoria literárias produzidas por Alencar foram matérias de discussões e polêmicas conhecidas, travadas com diversos intelectuais, a exemplo das Cartas sobre a Confederação dos Tamoios[10] (1856), nas quais se contrapõe às idéias de Gonçalves de Magalhães. Mais outros dois textos também polêmicos: “Benção Paterna[11] e “Os Sonhos D’ouro[12], foram escritos como sínteses teóricas da literatura e da crítica brasileira daquele período. Nestes últimos, o autor vai se ocupar do tema da nacionalidade brasileira, além de traçar uma autodefesa às críticas da época.

Assim, para Elvya Pereira:

O eixo central dessa crítica de Alencar movimenta sempre elementos que, argumentava ele, deveriam caracterizar a cultura e a literatura brasileiras, como a questão da liberdade lingüística do português falado no Brasil, a temática indianista e o sentimento da natureza como a emanadora da própria idéia de nacionalidade. Também na crítica e na teoria literárias, Alencar proclamava-se um piguara.[13]

Escritor, crítico e teórico se fundem em Alencar com o único propósito de gerar a nação brasileira, escrevendo sob o pretexto de lenda, de mito ou de fábula aquilo que acreditava poder representar a história da sua própria gente.  

Percebemos até aqui que o projeto nacionalista de Alencar deixava de acomodar o negro e o problema da escravidão, dentro do cenário cultural brasileiro, pois nas suas obras de maior relevância, a preocupação com a contextualização destes não chega a ser significativa, deixando transparecer uma postura às vezes contraditória em algumas questões, a exemplo do romance O Tronco do Ipê, de 1871. Também no teatro, ensaia aqui e ali alguns papéis para o negro, mas nenhum que tivesse a relevância dada ao indígena brasileiro, não permitindo, assim, que este protagonizasse a cena romanesca ou representasse ma parcela da identidade nacional.

Assim, embora tivesse aparição conhecida na criação do cenário nacional brasileiro em diversos outros espaços, somente temos uma inserção da figura do negro como herói e representante de nossa cultura de forma mais definida ou definitiva na vertente que se chamou de “regionalismo nordestino”. Nas páginas do escritor Jorge Amado, para tomar como referência um regionalismo geograficamente mais determinado, o negro pôde enfim ser visto como um verdadeiro modelo de força, virilidade e sensualidade que traduz de uma forma quase que encantada os traços do homem brasileiro

Assim como Alencar, o escritor baiano, em boa parte da sua produção, toma para si a responsabilidade de fundador de uma identidade nacional. Ao complementar a tríade formadora da nossa identidade, assegura definitivamente um espaço para o negro no imaginário do povo brasileiro, pois, tendo sido este último um elemento considerado inferior pelas correntes ideológicas evolucionistas e deterministas da nossa cultura, o que é sabido de todos, esteve o negro fadado muito tempo ao total esquecimento na literatura. Entretanto, a atração por esta que é uma das mais fortes matrizes da alma e da cultura brasileira, a raça negra, fez com que o escritor baiano, esteamigo dos homens” (como quis chamá-lo o ensaísta alemão Günter Lorenz), se voltasse de forma tão apaixonada à descrição viva e realística da cultura, da religião e dos costumes deste povo, paradoxalmente tão alegre e oprimido.

A prática da religião negra ou do culto afro-brasileiro foi durante muito tempo submetida à repressão e à perseguição pela nossa sociedade, assim como pela polícia, que invadia os terreiros de Candomblé sob o pretexto de limpar a cidade com a coibição de tal crença. Jorge Amado, como deputado pelo partido comunista, conseguiu através de um projeto de lei em 1946, a legalização deste culto, do qual então passou a ser também freqüentador, podendo com isso, segundo o próprio escritor, acompanhar de perto as atrocidades cometidas contra o povo negro. Foi assegurada assim, a liberdade religiosa no Brasil.

Em Jubiabá (1935), São Jorge dos Ilhéus (1944), Os Pastores da Noite (1964), Dona Flôr e seus Dois Maridos (1966), Tenda dos Milagres (1969) e em tantos outros seus romances, as cenas da crença afro-brasileira são recriadas em passagens descritas com emoção e realidade pelo escritor, a exemplo de Dona Flor assistindo a negra Andreza de Oxum, empunhando o estandarte da rainha das águas dançarum passo deslumbrante ou em Os Pastores da Noite onde o padrinho do filho de Massu e Benedita, Felício, é o próprio Ogun.

Nas descrições dos seus pretos, Amado não poupava generosidade. Estes são na maior parte, fortes, espertos, camaradas, centenários e estão sempre a exibir umriso alvar”, “com seus dentes brancos, magníficos como os de Honório, personagem de Cacau (1933). 

O crítico e ensaísta Cid Seixas, em seu texto produzido pela passagem do aniversário de oitenta anos do escritor Jorge Amado, nos um depoimento dessa exaltação do povo negro, percebida no seu universo ficcional, apresentando em medida exata a dimensão desse herói:

Ao contar os feitos da gente do povo, especialmente do negro, Amado é generoso e pródigo em exaltação. O dominado, quer pelas antigas leis da escravidão, quer pelas modernas leis do liberalismo econômico, é herói incondicional, numa inversão violenta da perspectiva da tradição literária. (...) Como na velha Cidade da Bahia, o homem do povo se confunde com o negro e o mestiço, este, como suas crenças, seus valores, sua cultura, portanto, é o herói permanente da gesta amadiana.[14]

Na visão de Antonio Candido, apesar de uma deformação inevitável na forma de descrição e poetização dos sentimentos e emoções do negro ao serem estes narrados por um homem de outra cor, “... Jorge Amado trouxe os negros da Bahia para a arte e deu existência estética, isto é, permanente à sua humanidade”.[15]   

A este representante da literatura brasileira podemos atribuir a partir disso grande contribuição para a formação daquele “cidadão brasileiro” ao qual se referia Lúcia Helena em ensaio aqui citado.  Jorge Amado é, por sua vez, também um contador de histórias de sua gente, do povo baiano e, em maior projeção, do povo brasileiro. De outras histórias, é certo, situadas num outro espaço, num espaço povoado pelos mais diversos tipos humanos ou sociais, mas que certamente teve como intenção maior a representação de uma cultura que, mesmo tendo atravessado mais alguns séculos desde o seu nascimento ainda se encontra em estágio de cognição da sua verdadeira identidade

Por isso tomamos de empréstimo o termo piguara para tentar designar apenas mais um dos maioresguias que se revelaram em nossas letras: Jorge Amado.

Este representante maior do povo baiano e brasileiro ocupou, não à toa, na Academia Brasileira, a cadeira de nº 23, fundada por Machado de Assis, cujo patrono foi José de Alencar, para a qual a academia o elegeu, por ser Alencar seu legítimo antecessor e também, de certo modo, paradigma na fundação da nacionalidade brasileira. Ambos, Alencar e Amado, cada um a seu tempo, séculos XIX e XX, expressaram com imensa propriedade a vontade de “ser nação da nossa gente brasileira. É o próprio criador de Gabriela quem diz sobre Alencar e a sua relação com o povo brasileiro:

Alencar é a força do povo, bravia, descontrolada, enchente e enxurrada, árvore nunca podada, jequitibá gigante, floresta enredada de cipós, grávida de cores violentas, rumorosa de vozes de pássaros, espalhando-se sem fronteiras como um rio em cheia, banhada de sol e de luar, de verdes mares bravios de nossa terra natal, excessiva e deslumbrante.[16]

E, a respeito da crítica a Alencar, diz ainda:

Que importa a Alencar o persistente silêncio de nossos ensaístas e de nossos críticos, a desconfiança com que olham o mundo por ele criado, amedrontados ante as picadas por ele abertas, que importa a Alencar esta conspiração do silêncio, se suas edições crescem e multiplicam-se com o passar dos anos, se cada homem do povo conhece e estima seu nome, se a cada dia batizam-se dezenas de Iracemas, se os índios de seus romances viraram folclore, lenda e carnaval e habitam para sempre nossos corações?[17]

que se observar nessa uma outra coincidência: uma auto-referência do escritor baiano, que, ao sustentar assumidamente o seu desafeto com a crítica literária, defende mais a si mesmo que ao outro das maledicências sofridas em determinadas épocas da sua carreira de escritor através deste disfarçado espelhamento.

Sendo assim, podemos dizer que a fusão destes discursos fundadores da nossa cultura estava traçada desde o início. Mas o tempo teria que fazer o seu papel. Hoje, no alvorecer deste século, embalado pelos ruídos produzidos por essa avalanche dos estudos culturais, se percebe com mais clareza a importância desses escritores-desbravadores da nossa história. Nas suas descrições fabulosas e encantadas que povoarão para sempre o imaginário do povo brasileiro, passeiam índios, negros e brancos, seres de todas as cores e formas, caricaturas e beldades, com as suas manhas, manias e sabedorias que, de forma também encantada, deram à luz a figura de Macunaíma (alegoria da impossibilidade de tipificação do “ser nacional), nem preto, nem branco, nem índio, nem nada...

Simplesmente o herói da nossa gente.

“Tem mais não”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. Sonhos D’Ouro. São Paulo: Ática, 1981.

BENÏCIO, Itazil. Jorge Amado: Retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993.

CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.

CASTELLO, J. Aderaldo.  A Polêmica sobre a Confederação dos Tamoios. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953.

CHAVES, F. Loureiro. História e Literatura. 3. ed. ampl. Porto Alegre: Editora universidade/ UFRGS, 1999.

HELENA, Lúcia. Identidades em curso: José de Alencar e a hipótese Brasil. In.: Légua e Meia. Revista de literatura e diversidade cultural. UEFS: Feira de Santana. v. 01, 2001-2002.

NETO, Euclides (org.). Novos contos da região cacaueira. Brasília/ Itabuna: Horizonte Editora Ltda / PACCE, 1987.

PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil. Feira de Santana: UEFS, 2002.

SALLES, David. Romance e Regionalismo na saga do cacau. Tese de doutoramento apresentada a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1982.

SANTIAGO, Silviano.Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: notas sobre a literatura na Bahia.  Salvador: EGBA, 1996.


 

[1] SALLES, David. Romance e Regionalismo na saga do cacau. Tese de doutoramento apresentada a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1982 , p..25.

[2] FILHO, Adonias. O Nosso reino. In.: NETO, Euclides (org.). Novos contos da região cacaueira. Brasília/ Itabuna: Horizonte Editora Ltda / PACCE, 1987. p. 05.

[3] SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In.: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.89.

[4] A expressão região foi utilizada nas primeiras descrições da nossa terra pelos cronistas europeus e é retomada por David Salles e por Silviano Santiago.

[5] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil. Feira de Santana: UEFS, 2002. p. 33.

[6] Idem. p.34.

[7] HELENA, Lúcia. Identidades em curso: José de Alencar e a hipótese Brasil. In.: Légua e Meia. Revista de literatura e diversidade cultural. UEFS: Feira de Santana. v. 01, 2001-2002. p. 11.

[8] CHAVES, F. Loureiro. História e Literatura. 3. ed. ampl. Porto Alegre: Editora universidade/ UFRGS, 1999. p. 17.

[9] Ide. P. 15.

[10]ALENCAR, José de. Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. In: CASTELLO, J. Aderaldo.  A Polêmica sobre a Confederação dos Tamoios. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953.

[11] ALENCAR, José de. Benção Paterna. In: –  Sonhos D’Ouro. São Paulo: Ática, 1981.

[12] Idem. op. Cit.

[13] Idem. p.37-38.

[14] SEIXAS, Cid. O sumiço da santa: síntese do romance urbano de Jorge Amado. In.: Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: notas sobre a literatura na Bahia.  Salvador: EGBA, 1996. p. 92.

[15] CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In.: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 52.

[16] AMADO, Jorge. Conversations avec Alice Rillard. Paris: Gallimard, 1990, apud BENÏCIO, Itazil. Jorge Amado: Retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 74.

[17] Ibidem.