PIGUARAS DA
CULTURA
MESTIÇA
Itana
Nogueira
Nunes (UNEB, FTC e UFBA)
Enquanto “fenômeno”
de
natureza
literária, o
regionalismo,
como sabemos,
figura
nos
textos
ficcionais
brasileiros
desde o
Romantismo.
No
entanto,
embora
tenhamos
notícia do
grande
número de
autores
originários
das
mais
diferentes
partes do
país,
que
contribuíram
para
avolumar o
montante das
obras
regionalistas de reconhecido
valor
documental,
apenas
apontaremos
para esta
discussão
alguns
textos
fundamentais
na
construção do
caráter
identitário do
povo
brasileiro.
Na
intenção de
delinear uma
evolução desse
regionalismo e
de se
fazer uma
interpretação
mais
aprofundada da
sua
aparição
nos
discursos
ficcionais,
muitos
exegetas da
nossa
literatura têm se
empenhado
em
produzir
conclusões
sobre algumas
das
suas
causas e dos
seus
efeitos. Os
resultados
destes
estudos
refletem
que a
grande
diversidade de
interpretações
e
concepções
acerca desta
significativa
manifestação
literária é
fato
merecedor de
especial
atenção.
Estando incluído neste
projeto de
esclarecimento
sobre
tal
temática, o
crítico
baiano David Salles
(1948-1986) apresenta,
como
resultado de
seus
estudos
sobre o
regionalismo
grapiúna (manifestação
considerada
como uma das
vertentes do
regionalismo
nordestino), a
sua
tese de
doutoramento
Romance
e
Regionalismo
na
Saga
do
Cacau
(1982) apontando
cinco
variantes
mais
conhecidas, consideradas
como
conseqüências
de uma transformação
literária
deste
regionalismo
ao
longo da
sua
trajetória:
Pode-se
falar de uma
práxis
regionalista.
Por
conseguinte,
há
vários
regionalismos
e,
pelo
menos,
cinco
variantes
regionalistas brasileiras de
articulação
das
formas
literárias
com a
matéria
que
lhe é
própria.
Excluída a
sua
matriz
nativista
ou
indianista de
diferenciação,
podem
ser detectadas, e
já o foram, as
seguintes
variantes, a
partir de
meados do
século XIX: a)
regionalismo
romântico; b)
regionalismo
realista-naturalista; c)
regionalismo “verista”;
d)
regionalismo
“nordestino”,
ou de trinta,
ou modernista;
e)
regionalismo
contemporâneo,
ou
metafísico.
Excluindo o
regionalismo
de
fundação
empreendido
por José de
Alencar
como
categoria à
parte, David
Salles afirma
que
cada uma
dessas
variantes
demonstra
conter as
suas próprias
especificidades,
muito
embora estejam
todas
elas
interligadas
por
questões
intencionais
muito próximas
e tenham sido originadas de uma
mesma
família.
Em
linhas
gerais, o
regionalismo
brasileiro,
pela
amplitude das
suas
manifestações,
pelo
largo
período de
sua
duração na
história
literária,
assim
como
pela
importante
elaboração
lingüística,
temática e
geográfica
que resultou
numa “revelação”
do Brasil aos
brasileiros,
alcançou
um
teor
qualitativo de
grande
importância.
No
ciclo
baiano, a
zona
cacaueira
representada
principalmente
por Adonias
Filho e Jorge
Amado
apresenta uma
produção regionalista de
grande
significância.
Também
Euclides
Neto
ficcionalizou a
saga dos
trabalhadores
e dos
proprietários
da
lavoura do
cacau dando
continuidade,
em
alguns
aspectos,
em
alguns
aspectos, à
obra de Jorge
Amado.
Iararana é a
obra de
escritor
grapiúna Sosígenes
Costa
que atribui à
região
cacaueira a
gênese da
identidade
nacional a
partir de uma
lenda da
Iara.
Junto a
estes,
outros
nomes
como os de
Hélio
Pólvora, Cyro
de Mattos, Jorge Medauar seriam
injustiçados
no
caso de
um
esquecimento
natural de
um
ou
outro
nome.
Portanto,
sem
intentar
citar
todos,
ressaltamos
aqui a
grande
contribuição
dada
por
estes
escritores à
nossa
literatura,
não
somente àquela de
feição
regionalista,
mas à
literatura
brasileira
como
um
todo.
Ainda na
esteira da
produção
baiana temos o
escritor
Herberto Salles,
autor de
Cascalho,
publicado
em 1944,
que,
segundo Sergio
Milliet,
em
nota à
terceira
edição, é, na
literatura, “o
primeiro
grande
romance da
região
diamantífera
da Bahia”, tendo
como
foco de
análise a
figura do
garimpeiro. O
baiano Xavier Marques é
reconhecido
também
como
um
regionalista de
grande
destaque,
tendo a
sua
literatura praieira se
revelado
como o
ponto
alto da
sua
produção
literária
através de
Jana e Joel (1899). O
sertão,
representado
por Eurico
Alves,
em
Feira de
Santana,
também
colabora
com
relevância na
construção de uma
tradição
regionalista na Bahia.
Assim, a
participação da
baiana no
cenário
brasileiro
soma uma
forte
representação
dos
costumes
locais
ou
regionais
como
documentos
vivos da
nossa
gente,
fato
que se
confirma nas
palavras do
crítico
Adonias
Filho no
prefácio dos
Novos
Contos
da
Região
Cacaueira
onde diz:
(...)
parte de uma
literatura
com
identidade
própria, a
ficção
grapiúna
já é
por
demais
conhecida
para
que a
expliquemos nas
causas e
como
presença
indiscutível
na
ficção.
Isso na
verdade seria
chover no
molhado.
Já a
tradição
regionalista
gaúcha tem
em Apolinário
Porto
Alegre a
fonte
maior da
sua
ficção.
Como
seu
maior
herdeiro, destaca-se no
regionalismo
sulino João
Simões Lopes
Neto,
gaúcho de
Pelotas,
que viveu
sempre
em
sua
província,
mesmo numa
época
em
que
somente na
capital teria
o
seu merecido
reconhecimento
como
escritor.
Em
suas
histórias
elegeu
como
herói o
gaúcho-pobre, o
tropeiro, o
humilde
peão da
estância,
destacando-se na
literatura regionalista
como
um dos
escritores
mais
populares.
Entre as
obras de
maior
destaque,
temos o
Cancioneiro
Guasca (1910) e
Contos
Gauchescos
(1912) e
Lendas
do
Sul (1913). Ao
lado deste
escritor
podemos
citar
também
nomes
como,
Augusto Meyer
(na
poesia) e
Alcides Maya,
entre
outros.
Como estas
duas
vertentes,
utilizadas
apenas
para
ilustrar esta
multiplicidade de
regionalismos,
são conhecidas
diversas outras
manifestações
de
escritores
brasileiros
que,
em
seus
textos
regionalistas, expressam (muitos
com
êxito) a
essência do
nosso
povo. Podemos
aqui
lembrar
alguns destes
mestres
regionalistas,
que, “aberta
a
picada”
para a
construção de uma
estrada
que daria na
consolidação dos
valores
nacionais do
povo
brasileiro, souberam,
através do
seu
engenho
literário,
demonstrar
estes
espaços
históricos,
sociais,
culturais, ideológicos,
étnicos, de
forma diferenciada,
como: Aluísio
Azevedo, Monteiro Lobato, Raquel de Queiroz, José Lins do
Rego, Euclides da
Cunha,
Graciliano
Ramos, Jorge
Amado, Adonias
Filho, Érico
Veríssimo, João Guimarães
Rosa e
mais
tantos
outros.
Estes
escritores
demonstram
em
suas
obras
um
conhecimento
íntimo e
pleno do
seu
povo,
não
como
um
saber
frio e
científico,
mas
como
um
saber
sensível e
artístico
essencial à
inspiração. Diríamos
melhor:
cada
um deles é o
próprio
povo
brasileiro.
Silviano Santiago, no
seu
Vale
Quanto
Pesa,
refere-se a
estes
textos,
tanto os
que descrevem
quanto os
que
ficcionalizam o
território
brasileiro e os
seus
habitantes (ou
personagens),
utilizando uma “metáfora
do
farol”,
por serem
estes
vistos
como
luzes
que serviram
para
clarear os
valores
sociais,
políticos e
econômicos do
país.
Para Santiago:
Ou
por serem
filhos
adotivos,
ou
por serem
filhos de
terra
desconhecida,
se sentiam os
brasileiros
sem
estatuto
sócio-econômico
definido,
em
situação
amorfa e
negativa,
portanto.
Tudo
isso
propiciava aos
que empunhavam
a
pena
abordar os
problemas da
identidade, da
liderança e da
hierarquia.
Retomemos,
porém, o
regionalismo
no
seu
início.
Nos diz David
Salles,
em
direta
concordância
com as
idéias de
Silviano Santiago,
que os
primeiros
textos
que
descreveram a
região
do Brasil
e os
seus
habitantes
são de
origem
portuguesa, sendo o
primeiro destes a
Carta de Pero
Vaz de
Caminha,
onde os
valores
verdadeiramente
indígenas ao
invés de serem
destacados
são
recalcados. Daí a
idéia de serem
os
primeiros
habitantes do
Brasil considerados
como “tábula
rasa”
ou “papel
em
branco”,
onde se
poderiam
imprimir
todos os
desejos de
crenças e
costumes do
europeu.
Assim,
para
que se
formasse o
que
hoje chamamos
de
identidade
nacional foi
preciso
dedicar
esforços,
tanto no
sentido de “lembrar”
(traços
da
nossa
identidade
destacados
através da
valorização de uma
paisagem
local)
quanto no
sentido de “esquecer”
(qualquer
referência
que remetesse
a uma
herança
cultural colonialista). Recordando o
que
interessasse
ser recordado e deletando
da
memória
aquilo
que
não
contribuísse
para uma
história
gloriosa,
fomos, num
conhecido
jogo
dialético, tentando
construir o
esboço de uma
tradição
pré-romântica
que
assegurasse uma confiabilidade aos
intelectuais
brasileiros
dos
períodos
subseqüentes,
o
que
significava
um
tipo de
invenção
retroativa da
literatura
brasileira,
como quis
Antônio
Cândido.
Estes
aspectos
fizeram
parte da
construção de
um
processo
histórico de
onde
emergiriam o
sentimento
nacionalista, de
um
lado, e a
primeira
figura
representativa da
nossa
cultura,
sob
forma de
herói
nacional, o
índio, do
outro.
Todavia,
marcada pelas trágicas
lembranças da
colonização, a
nossa
cultura seguia
o
seu
caminho
sem uma
delineação
clara, ao
menos no
sentido de uma
independência
ou de uma
liberdade de
expressão
que permitisse
à
nossa
gente
contar a
sua
própria
história.
Por
conta deste
estado de
total
falta de
autonomia é
que
muitos
autores ao
longo deste
período, o do
Romantismo, se mantiveram
em
posições
vacilantes,
ora tentando
destacar os
valores
ou as
cores
locais,
ora
desviando-se
totalmente
para a
cultura do
colonizador,
quase
sempre
em
favor de uma
tentativa utópica de
conciliação de
culturas.
Nessa
busca de
um
lugar
sob o
sol da
civilização
ocidental,
regida pelas
nações
cultural e economicamente
independentes,
a
vida
literária
brasileira
teve, no
Romantismo,
alguns
intelectuais
que tomaram
para
si o
propósito de
fundação desta
identidade,
dentre os
quais
um de
maior
destaque se
fez
indelével na
nossa
história: José
de Alencar.
Para Araripe
Júnior,
Alencar “adivinhou”,
como
bom
charadista
que
reconhecidamente foi,
um
passado
para a
nação
brasileira.
A
propósito disto, retomemos
neste
ponto o
título deste
artigo
com o
intuito de
esclarecer o
seu
valoroso
empréstimo ao
texto de Elvya
Pereira
intitulado Piguara: Alencar e a
invenção
do Brasil
sobre o
importante
papel do
autor de
O
Guarani
no
processo de
construção identitária
nacional.
Neste
texto, o
polêmico
escritor,
crítico e
teórico das
nossas
letras
românticas, é chamado de piguara,
vocábulo
indígena
que significa
“guia”,
“senhor dos
caminhos”, de
onde podemos
concluir os
motivos da
utilização de
tal
termo. É a
própria autora
quem diz
sobre o
escritor
romântico:
É
incontestável
o
caráter
programático de
sua
obra,
sobretudo a
vertente indianista, na
qual
ele
avança
investido de
sua
condição de
piguara,
senhor dos
caminhos de
uma
literatura nacionalista
estreitamente
vinculada a
um
projeto
cultural de
nação
emergente.
Assim,
para Elvya
Pereira,
Alencar vai
definir o
seu
projeto
literário
nacionalista tendo
como
pressuposto
básico ‘a
invenção do
passado’.
[...] Contrapondo
um
estado de
natureza
inspirado, no
nível da
fábula
pela
mitologia do
povo da
floresta,
mas
inevitavelmente conduzido, no
nível do
discurso,
pela
ideologia
do colonizador.
Neste
projeto
literário do
escritor
romântico é
criado
nosso
maior
representante, eleito
herói das
nossas
selvas e da
nossa
cultura (apesar
das
adaptações
sofridas
para
que pudesse se
transformar
em
herói),
importante
elemento
fundador da
identidade
nacional: o
índio, protagonizado nas
personagens
emblemáticas de Peri, Iracema e Ubirajara,
respectivamente,
expostos
aqui na
ordem
cronológica das
suas
criações.
A
partir do
cruzamento
deste representante
primeiro da
nossa
gente, cantado
e ilustrado
em
páginas
lendárias pertencentes ao
seu
veio
indianista,
com o
elemento
europeu, o
branco,
Alencar propõe a
criação de uma
raça, de uma
nação
essencialmente
brasileira.
Para a
ensaísta Lúcia
Helena,
Alencar
cria o
novo “cidadão”
que,
primeiramente
ficcionalizado na
imagem do
índio Peri, representa os
“sobreviventes das
águas turvas
das
revoluções
identitárias” incumbidos de
construir o
futuro da
nova
nação:
Suas
obras,
que
surpreendem
pela
perspicácia
disfarçada de
histórias
palatáveis,
dão
forma e
conteúdo à
representação
do
país
nascente,
buscando
construir a
memória do
cidadão
que ocuparia o
lugar das
mitologias da
origem.
Preside esta
empresa a
intenção de
dizer o
que
era
ser
brasileiro no
século XIX.
A
colônia
em
que se
era o
outro, dera
lugar ao
país
que
não sabia o
que
era.
Entre
esses
dois
momentos,
gente nascera,
trabalhara e morrera,
com
um
mal
estar
semelhante a
uma
doença
crônica(...).
Este
estado
doentio de
que
fala Lúcia
Helena faz
referência ao
mal-estar e a
melancolia a
que
são acometidos
muitos
personagens
alencarianos,
pela
dificuldade de
inserção no
processo de
construção de uma
cultura
estabelecida, representando,
com
isso, a
angústia do
homem
romântico.
Em
História
e
Literatura
(1999) o
escritor
Flávio
Loureiro
Chaves
refere-se ao
projeto de
aquisição da
identidade
nacional
empreendido
por Alencar
como uma
busca de
um
modelo de
herói
para a
sua
pátria.
Para
ele,
através deste
modelo o
escritor
romântico vai
destacar
não
somente no
índio,
mas no
mestiço, no
sertanejo, no
gaúcho
ou no
bandeirante,
“o
novo
homem surgido
na América
cujos
atributos
essenciais
serão a
força, a
beleza, a
coragem, a nobreza,
fundidos
enfim na
solda
moral
proporcionada
pela ‘
consciência da
liberdade’
”.
Alencar buscava nestas
formas
um diferencial
para
esse
homem
que pudesse
imprimir
definitivamente
uma
marca
peculiar
para o
povo
brasileiro.
Para
Loureiro, “a
súmula do
projeto
identitário formulado na
segunda
metade do
século XIX” se
dá na
fase
intelectual
mais
madura de José
de Alencar,
quando publica
Tronco
do
Ipê,
Til e
O
Gaúcho,
por estarem
juntas nesta
etapa da
sua
obra
política e
literatura.
Para uma complementação do
mito, Alencar
reuniu
história e
literatura no
terreno da
ficção. Se
antes Alencar
já havia
desenhado a
nossa
literatura, o fez
depois
com a
história e
estaria
por
último acrescentando
aspectos da
vida
política do
nosso
país
concluindo
assim o
seu
projeto.
Com
isso o
autor aponta
O
Gaúcho (1870)
como o
ponto
culminante da instauração
de uma
tradição e de
um
tipo
que fosse ao
mesmo
tempo
brasileiro e
americano,
regional e
nacional, numa
relação de
complementaridade
necessária ao
projeto
alencariano.
Entretanto,
não foram
estas as únicas
empreitadas às
quais se
propôs Alencar, o representante
maior do
nosso
romantismo.
Também
crítica e
teoria
literárias produzidas
por Alencar
foram
matérias de
discussões e
polêmicas
conhecidas, travadas
com
diversos
intelectuais,
a
exemplo das
Cartas
sobre
a
Confederação
dos
Tamoios
(1856), nas
quais se
contrapõe às
idéias de
Gonçalves de Magalhães.
Mais
outros
dois
textos
também
polêmicos: “Benção
Paterna”
e “Os
Sonhos D’ouro”,
foram
escritos
como
sínteses
teóricas da
literatura e da
crítica
brasileira
daquele
período. Nestes
últimos, o
autor vai se
ocupar do
tema da
nacionalidade
brasileira,
além de
traçar uma
autodefesa às
críticas da
época.
Assim,
para Elvya
Pereira:
O
eixo
central dessa
crítica de
Alencar
movimenta
sempre
elementos
que,
argumentava
ele, deveriam
caracterizar a
cultura e a
literatura brasileiras,
como a
questão da
liberdade
lingüística do
português
falado no
Brasil, a
temática
indianista e o
sentimento da
natureza
como a
emanadora da
própria
idéia de
nacionalidade.
Também na
crítica e na
teoria
literárias, Alencar proclamava-se
um
piguara.
Escritor,
crítico e
teórico se
fundem
em Alencar
com o
único
propósito de
gerar a
nação
brasileira,
escrevendo
sob o
pretexto de
lenda, de
mito
ou de
fábula
aquilo
que acreditava
poder
representar a
história da
sua
própria
gente.
Percebemos
até
aqui
que o
projeto
nacionalista de Alencar deixava de
acomodar o
negro e o
problema da
escravidão,
dentro do
cenário
cultural
brasileiro,
pois nas
suas
obras de
maior
relevância, a
preocupação
com a
contextualização destes
não
chega a
ser
significativa,
deixando
transparecer uma
postura às
vezes
contraditória
em algumas
questões, a
exemplo do
romance
O
Tronco
do
Ipê, de
1871.
Também no
teatro,
ensaia
aqui e
ali
alguns papéis
para o
negro,
mas
nenhum
que tivesse a
relevância
dada ao
indígena
brasileiro,
não
permitindo,
assim,
que
este
protagonizasse a
cena romanesca
ou
representasse ma
parcela da
identidade
nacional.
Assim,
embora
já tivesse
aparição
conhecida na
criação do
cenário
nacional
brasileiro
em
diversos
outros
espaços,
somente temos uma
inserção da
figura do
negro
como
herói e
representante de
nossa
cultura de
forma
mais
definida
ou
definitiva na
vertente
que se chamou
de “regionalismo
nordestino”. Nas
páginas do
escritor Jorge
Amado,
para
tomar
como
referência
um
regionalismo
geograficamente
mais
determinado, o
negro pôde
enfim
ser
visto
como
um
verdadeiro
modelo de
força,
virilidade e
sensualidade
que traduz de
uma
forma
quase
que encantada
os
traços do
homem
brasileiro.
Assim
como Alencar,
o
escritor
baiano,
em boa
parte da
sua
produção,
toma
para
si a
responsabilidade
de
fundador de uma
identidade
nacional. Ao
complementar a
tríade
formadora da
nossa
identidade,
assegura
definitivamente
um
espaço
para o
negro no
imaginário do
povo
brasileiro,
pois, tendo sido
este
último
um
elemento
considerado
inferior pelas
correntes
ideológicas
evolucionistas
e
deterministas
da
nossa
cultura, o
que é
sabido de
todos, esteve
o
negro fadado
muito
tempo ao
total
esquecimento
na
literatura.
Entretanto, a
atração
por esta
que é uma das
mais
fortes
matrizes da
alma e da
cultura
brasileira, a
raça
negra, fez
com
que o
escritor
baiano,
este “amigo
dos
homens” (como
quis chamá-lo o
ensaísta
alemão Günter Lorenz), se
voltasse de
forma
tão apaixonada
à
descrição
viva e
realística da
cultura, da
religião e dos
costumes deste
povo,
paradoxalmente
tão
alegre e
oprimido.
A
prática da
religião
negra
ou do
culto
afro-brasileiro foi
durante
muito
tempo
submetida à
repressão e à
perseguição
pela
nossa
sociedade,
assim
como
pela
polícia,
que invadia os
terreiros de
Candomblé
sob o
pretexto de
limpar a
cidade
com a
coibição de
tal
crença. Jorge
Amado,
como
deputado
pelo
partido
comunista,
conseguiu
através de
um
projeto de
lei
em 1946, a
legalização
deste
culto, do
qual
então passou a
ser
também
freqüentador,
podendo
com
isso,
segundo o
próprio
escritor,
acompanhar de
perto as
atrocidades
cometidas
contra o
povo
negro. Foi
assegurada
assim, a
liberdade
religiosa no
Brasil.
Em Jubiabá
(1935),
São
Jorge dos
Ilhéus
(1944), Os
Pastores
da
Noite
(1964),
Dona
Flôr e
seus
Dois
Maridos
(1966),
Tenda
dos
Milagres
(1969) e
em
tantos
outros
seus
romances, as
cenas da
crença
afro-brasileira
são recriadas
em
passagens
descritas
com
emoção e
realidade
pelo
escritor, a
exemplo de
Dona
Flor
assistindo a
negra Andreza
de
Oxum,
empunhando o
estandarte da
rainha das
águas
dançar “um
passo
deslumbrante”
ou
em
Os
Pastores
da
Noite
onde o
padrinho do
filho de Massu
e Benedita, Felício, é o
próprio Ogun.
Nas
descrições dos
seus
pretos,
Amado
não poupava
generosidade.
Estes
são na
maior
parte,
fortes,
espertos,
camaradas,
centenários e
estão
sempre a
exibir
um “riso
alvar”, “com
seus
dentes
brancos,
magníficos”
como os de
Honório,
personagem de
Cacau
(1933).
O
crítico e
ensaísta Cid Seixas,
em
seu
texto
produzido
pela
passagem do
aniversário de
oitenta
anos do
escritor Jorge
Amado,
nos dá
um
depoimento
dessa
exaltação do
povo
negro,
percebida no
seu
universo
ficcional, apresentando
em
medida
exata a
dimensão desse
herói:
Ao
contar os
feitos da
gente do
povo,
especialmente
do
negro,
Amado é
generoso e
pródigo
em
exaltação. O
dominado,
quer pelas
antigas
leis da
escravidão,
quer pelas
modernas
leis do
liberalismo
econômico, é
herói
incondicional, numa
inversão
violenta da
perspectiva da
tradição
literária.
(...)
Como na
velha
Cidade da
Bahia, o
homem do
povo se
confunde
com o
negro e o
mestiço,
este,
como
suas
crenças,
seus
valores,
sua
cultura,
portanto, é o
herói
permanente da
gesta
amadiana.
Na
visão de
Antonio Candido,
apesar de uma
deformação
inevitável na
forma de
descrição e
poetização dos
sentimentos e
emoções do
negro ao serem
estes narrados
por
um
homem de
outra
cor, “...
Jorge
Amado trouxe
os
negros da
Bahia
para a
arte e deu
existência
estética,
isto é,
permanente à
sua
humanidade”.
A
este
representante da
literatura
brasileira
podemos
atribuir a
partir disso
grande
contribuição
para a
formação
daquele “cidadão
brasileiro” ao
qual se
referia Lúcia
Helena
em
ensaio
aqui citado.
Jorge
Amado é,
por
sua
vez,
também
um
contador de
histórias de
sua
gente, do
povo
baiano e,
em
maior
projeção, do
povo
brasileiro. De outras
histórias, é
certo,
situadas num
outro
espaço, num
espaço
povoado
pelos
mais
diversos
tipos
humanos
ou
sociais,
mas
que
certamente
teve
como
intenção
maior a
representação
de uma
cultura
que,
mesmo tendo
atravessado
mais
alguns
séculos
desde o
seu nascimento
ainda se
encontra
em
estágio de
cognição da
sua verdadeira
identidade.
Por
isso tomamos
de
empréstimo o
termo
piguara
para
tentar
designar
apenas
mais
um dos
maiores “guias”
que
já se
revelaram
em nossas
letras: Jorge
Amado.
Este
representante
maior do
povo
baiano e
brasileiro ocupou,
não à
toa, na
Academia
Brasileira, a
cadeira de nº 23, fundada
por
Machado de
Assis,
cujo
patrono foi
José de Alencar,
para a
qual a
academia o
elegeu,
por
ser Alencar
seu
legítimo
antecessor e
também, de
certo
modo,
paradigma na
fundação da
nacionalidade
brasileira.
Ambos, Alencar
e
Amado,
cada
um a
seu
tempo,
séculos XIX e
XX, expressaram
com
imensa
propriedade a
vontade de “ser”
nação da
nossa
gente
brasileira. É
o
próprio
criador de
Gabriela
quem diz
sobre Alencar
e a
sua
relação
com o
povo
brasileiro:
Alencar é a
força do
povo,
bravia,
descontrolada,
enchente e
enxurrada,
árvore
nunca podada,
jequitibá
gigante,
floresta
enredada de
cipós, grávida
de
cores
violentas,
rumorosa de
vozes de
pássaros,
espalhando-se
sem
fronteiras
como
um
rio
em
cheia,
banhada de
sol e de
luar, de
verdes
mares
bravios de
nossa
terra
natal,
excessiva e
deslumbrante.
E, a
respeito da
crítica a
Alencar, diz
ainda:
Que importa a
Alencar o
persistente
silêncio de
nossos
ensaístas e de
nossos
críticos, a
desconfiança
com
que olham o
mundo
por
ele
criado,
amedrontados
ante as
picadas
por
ele
abertas,
que importa a
Alencar esta
conspiração do
silêncio, se
suas
edições
crescem e multiplicam-se
com o
passar dos
anos, se
cada
homem do
povo conhece e
estima
seu
nome, se a
cada
dia batizam-se
dezenas de
Iracemas, se os
índios de
seus
romances
viraram
folclore,
lenda e
carnaval e
habitam
para
sempre
nossos
corações?
Há
que se
observar nessa uma
outra
coincidência:
uma auto-referência do
escritor
baiano,
que, ao
sustentar assumidamente o
seu
desafeto
com a
crítica
literária,
defende
mais a
si
mesmo
que ao
outro das
maledicências
sofridas
em
determinadas
épocas da
sua
carreira de
escritor
através deste
disfarçado espelhamento.
Sendo
assim, podemos
dizer
que a
fusão destes
discursos
fundadores da
nossa
cultura estava
traçada
desde o
início.
Mas o
tempo teria
que
fazer o
seu
papel.
Hoje, no
alvorecer deste
século,
embalado
pelos
ruídos
produzidos
por essa
avalanche dos
estudos
culturais, se percebe
com
mais
clareza a
importância
desses escritores-desbravadores da
nossa
história. Nas
suas
descrições
fabulosas e encantadas
que povoarão
para
sempre o
imaginário do
povo
brasileiro, passeiam
índios,
negros e
brancos,
seres de todas
as
cores e
formas,
caricaturas e
beldades,
com as
suas
manhas,
manias e
sabedorias
que, de
forma
também
encantada, deram à
luz a
figura de
Macunaíma (alegoria
da impossibilidade de tipificação do “ser”
nacional),
nem
preto,
nem
branco,
nem
índio,
nem
nada...
Simplesmente o
herói da
nossa
gente.
“Tem
mais
não”.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS