SANTO AGOSTINHO E T. S. ELIOT
DA FRAGMENTAÇÃO À RECONCILIAÇÃO

André Luiz Lacerda Deschamps (UERJ)

O objetivo desta apresentação, cujo tema faz parte do meu projeto de dissertação no qual venho trabalhando sob a orientação da professora Fernanda Medeiros no programa de Mestrado em Literaturas de Língua Inglesa da Pós-graduação em Letras da UERJ, consiste em analisar comparativamente três poemas de T. S. Eliot que são significativos por marcarem fases distintas de sua carreira poética, The Waste Land, Ash Wednesday e The Four Quartets com as Confissões de Santo Agostinho. Minha hipótese é que existe a possibilidade de explorar o tema da trajetória da fragmentação à reconciliação encontrada nas Confissões como uma leitura da produção poética de T. S. Eliot como um todo, tomando os três poemas citados como pontos de referência.

Antes de analisarmos cada autor a fim de traçar as possibilidades de comparações e semelhanças entre eles, torna-se indispensável enfatizar o escopo do trabalho. Em primeiro lugar, não se propõe aqui estabelecer a obra agostiniana como fonte de inspiração para a produção eliotiana; pretende-se, sim, pensar na leitura de uma mesma temática tratada por dois autores que vivendo em épocas distantes entre si - Eliot viveu entre 1888 e 1965 e Agostinho entre 354 e 430 - tiveram com a conversão ao cristianismo uma mudança em suas obras. Em segundo lugar, devemos ressaltas as diferenças encontradas nas obras de cada um. Agostinho, nas Confissões, narra sua própria trajetória, fazendo sua confissão a Deus na 1a pessoa. Esta obra-prima é considerada por muitos a primeira autobiografia. A fragmentação e reconciliação apresentadas no texto correspondem de fato ao processo de conversão do bispo de Hipona. Eliot, por sua vez, de forma alguma utiliza sua poesia como meio de expressão pessoal; muito pelo contrário, sua poesia é uma construção objetiva de símbolos e imagens, característica essa que reflete sua “Impersonal Theory” defendida em sua famosa obra crítica “Tradition and The Individual Talent.” Como afirma a crítica Nancy Hargrove em seu livro Landscape as Symbol in the poetry of T. S. Eliot , Eliot utiliza em seus poemas paisagens, transformando-as em símbolos que refletem estados da alma. Ainda sendo possível traçar um paralelo entre a poesia de Eliot e o seu próprio processo de conversão, é importante ter em mente que a voz que fala em seus poemas é a de um eu-lírico construído.

A escolha dos três poemas, The Waste Land, Ash Wednesday e The Four Quartets, segue uma tendência encontrada na crítica eliotiana de dividir sua obra poética em três fases. A fase inicial, que tem como expoente The Waste Land , publicado em 1922, é a fase de maior experimentação, com novas formas poéticas e a caracterização de uma vida moderna urbana sem sentido e esperança. A fase intermediária, com Ash Wednesday, publicado em 1930, como seu representante, é a fase que vem após à sua conversão em 1927 em que temas religiosos começam a ser tratados, onde se acentua a busca do divino por um homem dividido em si mesmo. A última fase, representada por The Four Quartets, publicado em 1943, não mais apresenta as inovações estilísticas das outras fases, porém de uma certa forma traz a reconciliação e possibilidade de realização das buscas estéreis anteriores.

A trajetória de Agostinho. Agostinho vive no quarto século depois de Cristo, nos tempos da queda do Império Romano, quando, de acordo com Danilo Marcondes em sua Iniciação à história da filosofia, a Europa assiste a “uma fragmentação política, cultural e lingüística, sem estabilidade social e econômica.”( Marcondes, 2001: 114) Ele vive em um momento de ruptura que também se refletiria nas formas de comunicação. Jeffrey Schnapp , em suas “Lições de Leitura: Agostinho, Proba e o Détournement cristão da Antiguidade”, destaca que a teoria comunicativa da retórica que havia dominado até a Antiguidade Tardia devia ser desmantelada para dar vez a uma nova cultura livresca. Em Agostinho, esta mudança é descrita nas Confissões de uma maneira simbólica. O retórico Agostinho primeiramente não aceita a simplicidade das Sagradas Escrituras, que não seguem os altos padrões do discurso retórico, discurso esse que se apresenta como forma de se utilizar da linguagem para a persuasão e o deleite próprio. Ao descobrir a leitura silenciosa pelo testemunho de Ambrósio, Agostinho encontra enfim a pré-condição para sua conversão. Será portanto através da leitura silenciosa de um texto bíblico que ele terá sua própria iluminação, que o faz abraçar de vez o cristianismo.

Esta ruptura com o sistema de leitura anterior acontece juntamente com outra busca: a busca pela integridade interior. Agostinho experimenta não só um momento de crise e fragmentação na sociedade , mas também em sua alma encontra esterilidade e incerteza. Como afirma Hannah Arendt, em sua tese de doutorado O Conceito de Amor em Santo Agostinho, a narrativa das Confissões dá testemunho do “reino da interioridade”, interioridade “cheia de mistérios e desconhecido” que se encontra a caminho da redenção. As Confissões são portanto a caracterização deste caminho, uma peregrinação em direção à reconciliação:

Eu quero recordar minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, (...) para te amar, ó meu Deus. A recordação é amarga, mas espero sentir tua doçura(...) e eu quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos interiores que sofri, (...) ao afastar-me de tua Unidade. (Confissões II, 1, 1) ( meu grifo)

Este dilaceramento interior encontra-se desde cedo na vida de Agostinho. Como demonstra William Mallard em seu Language and Love: introducing Augustine’s religious thought through the Confessions story Agostinho vive sua infância, adolescência e juventude dividido entre mundos separados. Como criança e adolescente, ele se encontra diante de dois discursos opostos: o discurso da fé de sua mãe e o discurso da ambição de seu pai. O primeiro fala de lealdade, perseverança e sacrifício não combinando com o segundo, usado na escola e no mundo, que privilegia a competição, os prazeres e a ambição. Aderindo ao Maniqueísmo na juventude, ele participa de uma seita que crê em um mundo governado por forças opostas - Luz e Trevas - e tal divisão engloba também a alma. As Confissões representam a busca pela reconciliação de um mundo e uma alma divididos. O ápice de sua fragmentação ocorre em Cartago, onde Agostinho realiza seus estudos universitários. Nesta cidade da África do norte, ele encontra sua alma dividida, “Ainda não amava, e já gostava de ser amado.”( Confissões- III,1,1) Ele busca todas as paixões, “cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos.”(id.), para tentar preencher sua alma vazia, “doente, coberta de chagas, ávida de contato com as coisas sensíveis.”(id.) Ele vive uma existência sem significado e experimenta um paradoxo terrível interiormente: “como foste bom em derramar tanto fel sobre meus prazeres! (...) mas, na alegria, eu me via amarrado por laços de sofrimento.”(id.) Entretanto, no meio de toda escuridão e desespero, raios de esperança começam a despontar. Durante seus estudos de retórica, ele se depara com a obra Hortensius de Cícero, que trata do amor à sabedoria, estabelecendo os princípios para uma verdadeira filosofia. Esta leitura lança novas luzes na mente do jovem estudante de retórica. Porém, logo após esta primeira transição em sua vida, ele se torna um maniqueísta, tornando ainda pior a divisão interior de sua alma.

Após nove anos de luta interior, decepção e sofrimento, os escritos dos Neoplatonistas o libertam do pesado jugo de superstição e contradição maniqueístas. Pela primeira vez, ele é capaz de realizar Deus como um princípio implícito em todas as coisas, ao invés de uma substância física, como ensinava a gnose maniqueísta. Mesmo assim, esta nova transformação não se mostra forte o suficiente para lhe alcançar uma plena reconciliação, como ele próprio declara: “Eu estava certo de que existes e de que és infinito (...) Eu estava certo de tudo isso, mas era ainda muito fraco para saber gozar de ti.” ( Confissões , VII,20,26)

A esta altura, Agostinho sente que ao mesmo tempo em que ele busca um comprometimento total com Deus, “algo me fazia recuar” (id.) É o tempo de uma luta interior contra todos os obstáculos que o atrapalham: hesitação, medo e orgulho.

Finalmente, acontece o grande momento de sua conversão em um lugar simbólico, cercados de outros elementos também carregados de simbolismo. Em um jardim, sob uma figueira, Agostinho clama a Deus, para que Ele venha trazer uma solução para o seu sofrimento. “De repente,” Agostinho relata, “ ouço uma voz vinda de uma casa vizinha. Parecia de um menino ou uma menina repetindo continuamente uma canção: “Toma e lê, toma e lê. “( Confissões VIII,12 29) Ele obedece a inspiração, toma a bíblia e lê a passagem da Epístola aos Romanos, que clareia suas dúvidas e lhe concede forças para entregar-se a Deus.

A trajetória de T. S. Eliot. T. S. Eliot escreve seus primeiros poemas no início do século vinte, quando o horror de uma guerra mundial e as profundas mudanças no pensamento humano e na organização sócio-econômica do Ocidente balançavam os fundamentos da sociedade. Eliot consegue de uma forma brilhante captar o espírito de seu tempo com sua obra-prima, o longo poema The Waste Land, publicada em 1922, uma revolução na poética. Uma das maiores realizações de Eliot é sua perfeita descrição em seus poemas do exasperado caos de um mundo moderno fragmentado e deteriorado

Em The Waste Land é representado o horror de uma civilização que rejeita o amor divino e humano e que conseqüentemente se encontra estéril física, emocional e espiritualmente. A fragmentação é visível, como se percebe nos versos 20 a 22 da primeira parte “The Burial of the Dead”, “Son of man,/ You cannot say or guess, for you know only/ A heap of broken images.” Toda expectativa é frustrada, em um total estado de paralisia: “And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief,/ And the dry stone no sound of water.”( id. 23-24) A vida moderna nas grandes cidades é contemplada como em uma aterrorizante visão do inferno, como se as multidões estivessem caminhando em direção à própria condenação: “A crowd flowed over London Bridge, so many,/ I had not thought death had undone so many.” (id.62-63) No fim da terceira parte, somos transportados da Londres contemporânea a Cartago agostiniana: “To Carthage then I came/ Burning burning burning burning.” Hargrove afirma que

[A Cartago pagã] é intimamente ligada à Londres contemporânea. No entanto, implícito na própria menção de Cartago está a subseqüente conversão de Agostinho ao amor de Deus e sua renúncia às chamas da luxúria.(...) Cartago então também sugere a salvação das chamas da purificação. Ela expressa o amor-próprio sacrificado sobre o altar do amor de Deus e funciona portanto como um símbolo de uma possível redenção na terra desolada. ( Harggrove, 1978:81)

Ash Wednesday, primeiro grande poema após sua conversão à Igreja Anglicana, trata da luta entre os apelos do mundo e o chamado à fé. Margaret Clarke, em seu “O Resgate do Logos na época moderna: A Poesia Religiosa de T. S. Eliot e Murilo Mendes”, aponta que neste poema “Eliot desenvolve o método poético que ele havia apresentado no artigo sobre James Joyce [,] o método mitológico.”( Clarke, 1999:7) Em Ash Wednesday, Eliot emprega esta técnica utilizando o padrão mitológico da morte e renascimento simbólico. Este padrão não está somente presente em quase todas as culturas, mas consiste no “conteúdo simbólico do cristianismo.”( Clarke, 1999:8)

O próprio título do poema já contém a imagem da peregrinação, da trajetória, pois Ash Wednesday, a Quarta-feira de cinzas, é o primeiro dia da quaresma, período de purificação e renovação espiritual que precede a celebração da Páscoa. Ao longo do poema, apesar de o objetivo do eu-lírico ser claro, a atmosfera predominante é de tensão e hesitação entre a fé e o mundo. O poeta se encontra”Wavering between the profit and the loss/ In this brief transit where the dreams cross.”( Ash Wednesday, 4-5)

Em Four Quartets, a último grande poema de Eliot, é desenvolvido o tema do tempo como prisão, conduzindo toda realidade humana à morte. Todavia, a Encarnação de Cristo pode trazer sentido ao tempo, pois este é “The point of intercession of the timeless/ With time”( The Dry Salvages”, V, 18-19), onde “the impossible union/ of spheres of existence is actual,/ Here the past and the future/ Are conquered, and reconciled.”( “The Dry Salvages”, V, 35-38) ( meu grifo) Segundo Hargrove, “ os poemas finais retomam e reconciliam todos os poemas anteriores.”( Hargrove, 1979: 131)

Em relação às paisagens simbólicas, há também nos poemas de Eliot uma intercessão com as Confissões de Agostinho. Se a cidade, quer a Cartago de Agostinho, quer a Londres de Eliot, é o local de fragmentação e desespero, o jardim é o local de reconciliação e realização. Em The Four Quartets, é no jardim da casa de Burnt Norton onde o eu-lírico tem sua primeira experiência mística, uma entrada momentânea da eternidade no tempo: “Dry the pool, dry concrete, brown edged,/ And the pool was filled with water out of sunlight.” ( Burnt Norton, V, 35-36) Também neste jardim, escutam-se vozes de crianças, assim como na narrativa de Agostinho, “There rises the hidden laughter/ Of children in the foliage”( “Burnt Norton”, V, 35-36) Tanto o jardim como as crianças possuem vários significados, todos eles relacionados à vida, imortalidade e esperança.

Podemos concluir que apesar das várias diferenças existentes entre as obras de Agostinho e Eliot, ainda assim percebe-se semelhanças em suas histórias e obras. Ambos são homens de profundo conhecimento e penetração filosófica que buscaram através do estudo a compreensão e o significado do mundo em tempos diversos mas igualmente críticos. Ao se defrontarem com a fé, mais especificamente o cristianismo, permitiram que este processo de conversão se refletisse em suas obras. Dessa maneira, usando o tema da trajetória da fragmentação à reconciliação, Agostinho e Eliot revelam a peregrinação da humanidade através do tempo rumo à eternidade.

BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO, Santo. Confissões Tradução de Maria Luiza Amarante. 3a ed. São Paulo: Paulinas, 1984.

ARENDT, Hannah. O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

CLARKE, Margaret Anne. “O Resgate do Logos na época moderna: A Poesia Religiosa de T. S. Eliot e Murilo Mendes.” In: Registros do SEPLIC. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 1999.

ELIOT, Thomas Stearns. Collected poems 1909-1962. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, Publishers, 1988.

HARGROVE, Nancy Duvale. Landscape as Symbol in the poetry of T. S. Eliot. Jackson: University Press of Mississipi, 1978.

MALLARD, WILLIAM. Language and Love: introducing Augustine’s religious thought through the Confessions story. University Park: The Pennsylvania State University Press, 1994.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia - dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SCHNAPP, Jeffrey T. “Lições de Leitura: Santo Agostinho, Proba e o Détournement cristo da Antiguidade.” Tradução de Erick Felinto. In: Cadernos da Pós/ Letras. Rio de Janeiro: UERJ/IL, 1995.